Já publiquei esse material antes, em outro blog, mas acho que ele merece estar aqui... De tudo o que faço profissionalmente, essa é a parte que mais me dá prazer: ouvir as pessoas. Melhor que ler uma análise erudita, melhor que saborear uma fonte histórica documental. Conversar com os que viveram e sentiram as coisas é o que dá carne e sangue à História. Aqueles fatos relatados com precisão, mas com aridez, nos livros, ganham cor, cheiro, som, ao serem proferidos pelas vozes de suas testemunhas. Pobres historiadores "científicos", que desprezam os relatos por considerá-los "subjetivos". Deixam de ter contato com o que há de mais rico, complexo e revelador...
Entrevista com JOSÉ DAVID DO ESPÍRITO SANTO, 83 anos, um dos mais antigos moradores da nossa região, realizada no dia 30 de junho de 2006, pelos alunos da 8º série “B”.
Jornal do Jofre: Seu José, conte para nós como era a vida no bairro, no passado.
José David: Ah, era muito difícil, muito mesmo. Para chegar até a cidade, fazer nossos negócios, demorava 3 dias. Eu lutava, tinha um patrão lá na cidade que comprava minha produção. Ele mandava uma “lancha” pelo rio Peroupava, que buscava nossas coisas aqui. No começo nós sofremos muito aqui.
JJ: O transporte era feito pelo rio?
JD: Tudo de canoa.
JJ: E qual era o principal produto da região?
JD: Nós vivíamos de arroz, nossa produção era o arroz. Nós íamos na cidade, fazia compra com os negociantes, fiado, aí plantava o arroz, colhia, batia. Depois de cinco ou seis meses, o arroz tava pronto, e aí o negociante mandava a lancha e os sacos para transportar o produto, e nós acertávamos as contas. Nossos mantimentos nós comprávamos em grandes fardos, pra durar o ano inteiro. Mas comprávamos apenas o que não era produzido aqui: café, sal, querosene e sabão, tudo em grande volume. As outras coisas nós produzíamos aqui mesmo: criação, farinha, feijão, milho.
JJ: O senhor freqüentou escola?
JD: Eu fiquei só onze meses na escola, não cheguei a inteirar um ano. A escola era no posto do Itacurumim, no Peroupava.
JJ: E como era o dinheiro naquela época?
JD: Era a época do “réis”, 20 réis, 50 réis, mil réis... Eu ainda tenho guardado lá em casa umas notas dessas antigas.
JJ: Como era o cultivo do arroz?
JD: Plantava-se em outubro, novembro e dezembro. Lá pra abril, maio, nós colhíamos e quando chegava junho a gente batia. O arroz era batido no sistema de “puxirão”: as pessoas da vizinhança eram chamadas para pisar o arroz, que era espalhado pelo chão da casa, e sempre tinha um sentado com o tambor, tocando pra turma manter o ritmo. Até meia-noite batia o arroz, depois da meia-noite o pessoal dançava (risos). Depois de limpo o arroz, a gente avisava o patrão para mandar os sacos, e depois a lancha vinha buscar.
JJ: O senhor se lembra de quando foi que abriram essa estrada aqui (Rodovia Casimiro Teixeira)?
JD: Foi por volta de 1961, 62, que fizeram a primeira estrada, que era ainda de barro. Só tinha uma pessoa que passava por aqui, um japonês apelidado de “Segunda-feira”, que tinha um caminhão e levava nossas coisas pra Iguape. Lembro que ele tinha que colocar correntes nos pneus pra conseguir passar.
JJ: O que o senhor acha da vida nos dias de hoje.
JD: Hoje ta tudo muito fácil, mas mesmo assim ninguém tem nada. Antigamente, ninguém tinha dinheiro, dinheiro não existia. O sujeito que tinha 40 mil réis era considerado rico. A gente não via dinheiro, mas tinha fartura. Hoje ta tudo muito fácil. Aqui da casa da minha filha eu posso ir em Iguape, buscar a mistura do almoço, e ainda voltar em tempo de almoçar. Mesmo assim, ninguém tem nada...
JJ: Por que as coisas estão assim?
JD: Porque os homens trocaram o sistema de trabalhar. Hoje um homem sozinho trabalha por 50, por 100, usando o maquinário. Muita gente ficou sem emprego, e agora um rouba e mata o outro porque não tem meio de viver. Naquela época ninguém se preocupava com nada, as portas vivam abertas, uma tranqüilidade só. Hoje por causa de 5 reais batem em você.
JJ: O senhor se casou, teve filhos?
JD: Fui casado, mas já faz trinta anos que sou viúvo. Tive 5 filhos, 2 homens e 3 mulheres, mas os meus filhos já morreram. Um foi atropelado, com 49 anos, aqui nessa estrada, e o outro morreu afogado numa represa. Moro com uma de minhas filhas aqui perto da escola, e as outras duas vivem em São Vicente.
JJ: Como era a religião no passado?
JD: Naquela época só tinha o Catolicismo. Nos sítios tinha as capelas, pra rezar, e sempre se faziam novenas. Uma vez por ano nós íamos para a Festa de Agosto. Era bonita essa época. A gente levava tudo de canoa pra lá: lenha, farinha, tudo que era de mistura, matava uma criaçãozinha, pra não gastar dinheiro com comida. O dinheirinho que a gente levava era pra comprar alguma coisinha dos turcos, que naquela época só tinha turcos vendendo coisas na feira. A luz acabava cedo. Por volta das 11:30h o gerador desligava e ficava tudo escuro.
JJ: E quando alguém ficava doente?
JD: As pessoas mais velhas conheciam coisas do mato, ervas. A gente os chamava de curador, porque eles sabiam as plantas certas pra fazer remédio.
JJ: O senhor sabe a origem do nome Coveiro?
JD: Muita gente acha que é por causa de um cemitério que tem lá, mas antes de existir o cemitério já se chamava assim. Esse nome é porque existia ali um rio muito cheio de peixes, e o pessoal colocava muitos covos nele. Essa é a origem do nome.
JJ: E como era a política antigamente?
JD: Tinha duas bandas, o PSP e o PDC. No dia da eleição, cada um mandava uma lancha buscar a turma aqui. Lá na cidade eles davam lanche pro pessoal, matavam dois ou três bois. Mas se você subia numa lancha, estava comprometido: tinha que votar na turma dela (risos).
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