terça-feira, 19 de junho de 2012

Trecho de "Junky" - William S. Burroughs


Houve um tempo em que minha pressão sanguínea se elevava de prazer ante a visão do Velho Ike. Quando você está na droga, o traficante é como o ser amado para o amante. Você aguarda aquela pisada especial no corredor, a batida especial na porta, examina todos os rostos que se aproximam nas ruas. Pode até ter alucinações com todos os detalhes de sua aparência, como se ele estivesse em pé ali à porta, contando a velha piada dos traficantes (“Desculpe mesmo, mas hoje não deu pra comprar”), observando o teatro da esperança e da ansiedade se desenrolar no rosto do outro, saboreando a sensação do prazer benevolente, do poder de conceder ou de negar. Pat, em Nova Orleans, sempre fazia esse jogo, assim como Bill Gains, em Nova York. O Velho Ike juraria que estava sem nada só para depois enfiar um papelote no meu bolso e dizer: “Escute, você tinha o seu garantido o tempo todo”.
Mas agora eu estava de cara limpa. Ainda assim, uma picada de morfina mais tarde seria bacana, quando eu estivesse me preparando para dormir; ou, melhor ainda, uma speedball, metade cocaína, metade morfina. Surpreendi Ike à porta do apartamento. Pus a mão no seu ombro e ele se virou. Seu rosto de drogado, de velha sem dentes, abriu-se num sorriso quando me reconheceu.
- Oi – cumprimentou.
- Não vejo você há milênios. Onde se meteu?
Ele riu. “Estava em cana. De qualquer forma, não queria dar as caras porque sabia que você estava limpo, Tá limpo mesmo?”
- É, total.
- Não quer uma picada, então? - O Velho Ike sorriu.
- Bem... – senti uma pontada da velha excitação, como quando se encontra alguém com quem você costumava ir para a cama e de repente a excitação reaparece: vocês dois sabem que vão dormir juntos de novo.
Ike fez um gesto de desculpas. “Tenho mais ou menos dez centigramas aqui comigo. Nada suficiente para me deixar legal, mesmo. Tenho um pouco de coca também.”
- Entre aí – convidei.
Abri a porta. O apartamento estava escuro e bolorento. Roupas, livros, jornais, pratos e copos sujos espalhavam-se em cima de cadeiras e no chão imundo. Afastei uma pilha de revistas de um sofá caindo aos pedaços.
- Sente-se. O bagulho está aí com você?
- Está sim, aqui entocado comigo. Abriu a braguilha e tirou um pacote de papel retangular: o envelope do drogado, com uma ponta encaixando na outra. Dentro do pacote havia dois pacotes menores, cada um fechado de forma similar. Colocou-os sobre a mesa. Ike me observava com seus brilhantes olhos castanhos. A boca desdentada e firmemente fechada, dava impressão de ter sido costurada.
Fui ao banheiro pegar meus instrumentos. Agulha, conta-gotas e um pedaço de algodão. Pesquei uma colher de chá de uma pilha de louça suja na pia da cozinha. O Velho Ike rasgou uma tira de papel e umedeceu-a com a língua, enrolando-a na boca do conta-gotas. Encaixou a agulha em cima do colarinho de papel molhado. Abriu um dos papelotes, tomando cuidado para não derrubar o conteúdo com um movimento em falso do papel encerado.
- Esta é a coca – avisou. – Vá com calma, é das fortes.
Esvaziei o papelote de morfina na colher, adicionando um pouco de água. Ali havia mais ou menos trinta miligramas, pelos meus cálculos. Mais fácil serem quatro centigramas do que dez. Segurei um fósforo sob a colher até a morfina dissolver-se. Nunca se aquece coca. Pus um pouco de coca com a ponta da lâmina de uma faca e ela se dissolveu instantaneamente, como a neve ao atingir a água. Amarrei uma gravata rasgada no braço. Minha respiração estava superficial por causa da excitação. As mãos tremiam.
- Injete em mim, sim, Ike?
O Velho Ike pressionou o dedo gentilmente ao longo da veia, segurando o conta-gotas entre o dedão e os dedos. Ike era bom nisso. Mal senti a agulha deslizar para dentro da veia. Sangue vermelho-escuro espirrou dentro do conta-gotas.
- Ok. Pode soltar.
Desamarrei a gravata e o conta-gotas se esvaziou na minha veia. A cocaína bateu na minha cabeça, proporcionando uma tontura e uma tensão prazerosas, enquanto a morfina espalhou-se pelo meu corpo em ondas relaxantes.
- Tudo bem? - perguntou Ike, sorrindo.
- Se Deus fez alguma coisa melhor, guardou para Ele mesmo.



Tradução: Ana Carolina Mesquita
Foto: http://www.listal.com/viewimage/2981467

terça-feira, 12 de junho de 2012

Canção da Alegria - Jacinta Passos



Urupemba
urupemba
mandioca aipim!
peneirar
peneirou
que restou no fim?
Peneira massa peneira,
peneira peneiradinha,
(Ai! vida tão peneirada)
peneira nossa farinha.
Olhe o rombo
olhe o rombo
olhe o rombo arrombou!
olhe o cisco
olhe o risco
urupemba furou!
Eh! sai espantalho
da ponta do galho!
Escorra! Escorra!
Tirai essa borra!
Urupemba
urupemba
mandioca aipim!
peneirar
peneirou
que restou no fim?
Farinha fininha
peneiradinha!
Ai! vida, que vida
nuinha! nuinha!


Sobre a autora: http://jacintapassos.com.br/02biografia.html
 

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Não somos deficientes, somos diferentes: a trajetória da cultura e da linguagem das pessoas surdas e os dez anos da lei nº 10.436.

 

 

Os seres humanos se diferenciam das outras formas de vida pela capacidade de criar cultura, ou seja, de conferir significado ao universo ao seu redor, o que lhes permite atuar conscientemente na transformação do mundo. A cultura, por sua vez, se constitui necessariamente através da linguagem, que é a ferramenta básica com a qual nos relacionamos com o universo e com os outros seres humanos. Durante muito tempo, um grupo minoritário foi cerceado do direito a uma linguagem própria: as pessoas surdas.
A trajetória das pessoas surdas ao longo do tempo foi difícil e dolorosa. No passado, elas foram marginalizadas, vistas como portadoras de maldições divinas, como criaturas não dotadas de almas, segregadas do resto da sociedade, mantidas enclausuradas nas casas de familiares, em hospitais e instituições especiais, empregadas em funções subalternas e degradantes, classificadas como intelectualmente incapazes e inferiores aos ouvintes. Receberam apelidos e rótulos ridicularizantes e diminutivos: “mudinho”, “idiota”, “deficiente”.
Sua história foi marcada por avanços e retrocessos. Após séculos de esquecimento e exclusão, experimentaram o início de uma sistematização educacional no final da Idade Média. Entre os séculos XV e XIX, em partes diferentes da Europa e da América, estudiosos se dedicaram a observar o processo educacional dos surdos, criando e aperfeiçoando sistemas de sinais, contribuindo para a formação de uma cultura própria. Concluiu-se, finalmente, que os surdos tinham a mesma capacidade de aprendizado que os ouvintes, e que as linguagens de sinais eram formas legítimas e eficientes de atingir o desenvolvimento das pessoas surdas.
Todo esse florescimento foi abortado no final do século XIX quando, no Congresso Internacional de Milão (1880), condenou-se o uso dos sinais como forma de comunicação e passou-se a insistir no oralismo como meio mais adequado de comunicação das pessoas surdas. Essa decisão tornou clandestina a linguagem de sinais, sufocando a cultura das pessoas surdas, que deveriam se integrar à sociedade circundante, tentando apagar suas diferenças o máximo possível. Seguiu-se quase um século de virtual proibição da linguagem dos sinais. A retomada ocorreu a partir das décadas de 1960 e 70, na esteira da grande revolução cultural que abalou o Ocidente. Especialistas e surdos passaram a questionar as antigas concepções oralistas e assimilacionistas, reivindicando o direito a uma cultura própria. Reunidos em associações e grupos organizados, os surdos lutaram, nas últimas décadas, para se inscrever na categoria de “minoria”, somando-se assim a mulheres, negros, homossexuais, trabalhadores, entre outros, com o objetivo de serem reconhecidos e respeitados. Não queriam mais ser vistos como deficientes, mas como diferentes
É nesse sentido que a lei nº 10.436 deve ser compreendida e analisada. Junto com o decreto nº 5626 ela representa não só a aceitação oficial da Linguagem Brasileira de Sinais como legítima forma de expressão e comunicação, mas também sinaliza o reconhecimento da existência de uma cultura própria das pessoas surdas. Além disso a lei e, principalmente, o decreto, viabilizam a criação de mecanismos que buscam assegurar o acesso das pessoas surdas aos serviços de educação e saúde, e que lhes abram as portas do mercado de trabalho. A LIBRAS, finalmente, foi elevada à categoria de língua, um “sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria”, capaz de realizar a “transmissão de ideias e fatos”.
Em 2012 se comemoram dez anos da promulgação da lei nº 10.436. É um marco que deve ser festejado, mas que também deve ser aproveitado como momento de reflexão. Uma das infelizes características de nosso país é a existência de leis que “não pegam”, que não se traduzem em modificações reais nas práticas do cotidiano. É o caso de pensarmos nas condições atuais da comunidade das pessoas surdas do país e analisarmos se a lei gerou benefícios práticos, se significou modificações positivas nas suas vidas e nas de seus familiares. Uma lição que a história nos ensina é que as conquistas das minorias, dos oprimidos, dos esquecidos e dos marginalizados acontecem não pela benevolência dos poderosos, mas pela luta constante, pela organização e união, pela insistência e perseverança daqueles que desejam conquistar mudanças na sociedade. Nesse momento celebrativo é oportuno realizar um balanço das transformações experimentadas nesta última década, comparando-se a situação atual com a anterior. Desse diálogo deve surgir a percepção dos pontos positivos da lei e das áreas em que não houve ainda os avanços necessários. Essa reflexão deve resultar em propostas de correção de rumos e na adoção de estratégias de luta para que se alcancem os objetivos coletivos da comunidade das pessoas surdas.  


DRC
Curso Libras - básico
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