Houve um tempo em que minha pressão sanguínea se elevava de
prazer ante a visão do Velho Ike. Quando você está na droga, o traficante é
como o ser amado para o amante. Você aguarda aquela pisada especial no
corredor, a batida especial na porta, examina todos os rostos que se aproximam
nas ruas. Pode até ter alucinações com todos os detalhes de sua aparência, como
se ele estivesse em pé ali à porta, contando a velha piada dos traficantes (“Desculpe
mesmo, mas hoje não deu pra comprar”), observando o teatro da esperança e da
ansiedade se desenrolar no rosto do outro, saboreando a sensação do prazer
benevolente, do poder de conceder ou de negar. Pat, em Nova Orleans, sempre
fazia esse jogo, assim como Bill Gains, em Nova York. O Velho Ike juraria que
estava sem nada só para depois enfiar um papelote no meu bolso e dizer: “Escute,
você tinha o seu garantido o tempo todo”.
Mas agora eu estava de cara limpa. Ainda assim, uma picada
de morfina mais tarde seria bacana, quando eu estivesse me preparando para
dormir; ou, melhor ainda, uma speedball, metade cocaína, metade morfina. Surpreendi
Ike à porta do apartamento. Pus a mão no seu ombro e ele se virou. Seu rosto de
drogado, de velha sem dentes, abriu-se num sorriso quando me reconheceu.
- Oi – cumprimentou.
- Não vejo você há milênios. Onde se meteu?
Ele riu. “Estava em cana. De qualquer forma, não queria dar
as caras porque sabia que você estava limpo, Tá limpo mesmo?”
- É, total.
- Não quer uma picada, então? - O Velho Ike sorriu.
- Bem... – senti uma pontada da velha excitação, como quando
se encontra alguém com quem você costumava ir para a cama e de repente a excitação
reaparece: vocês dois sabem que vão dormir juntos de novo.
Ike fez um gesto de desculpas. “Tenho mais ou menos dez
centigramas aqui comigo. Nada suficiente para me deixar legal, mesmo. Tenho um
pouco de coca também.”
- Entre aí – convidei.
Abri a porta. O apartamento estava escuro e bolorento. Roupas,
livros, jornais, pratos e copos sujos espalhavam-se em cima de cadeiras e no
chão imundo. Afastei uma pilha de revistas de um sofá caindo aos pedaços.
- Sente-se. O bagulho está aí com você?
- Está sim, aqui entocado comigo. Abriu a braguilha e tirou
um pacote de papel retangular: o envelope do drogado, com uma ponta encaixando
na outra. Dentro do pacote havia dois pacotes menores, cada um fechado de forma
similar. Colocou-os sobre a mesa. Ike me observava com seus brilhantes olhos
castanhos. A boca desdentada e firmemente fechada, dava impressão de ter sido
costurada.
Fui ao banheiro pegar meus instrumentos. Agulha, conta-gotas
e um pedaço de algodão. Pesquei uma colher de chá de uma pilha de louça suja na
pia da cozinha. O Velho Ike rasgou uma tira de papel e umedeceu-a com a língua,
enrolando-a na boca do conta-gotas. Encaixou a agulha em cima do colarinho de
papel molhado. Abriu um dos papelotes, tomando cuidado para não derrubar o
conteúdo com um movimento em falso do papel encerado.
- Esta é a coca – avisou. – Vá com calma, é das fortes.
Esvaziei o papelote de morfina na colher, adicionando um
pouco de água. Ali havia mais ou menos trinta miligramas, pelos meus cálculos. Mais
fácil serem quatro centigramas do que dez. Segurei um fósforo sob a colher até
a morfina dissolver-se. Nunca se aquece coca. Pus um pouco de coca com a ponta
da lâmina de uma faca e ela se dissolveu instantaneamente, como a neve ao
atingir a água. Amarrei uma gravata rasgada no braço. Minha respiração estava
superficial por causa da excitação. As mãos tremiam.
- Injete em mim, sim, Ike?
O Velho Ike pressionou o dedo gentilmente ao longo da veia,
segurando o conta-gotas entre o dedão e os dedos. Ike era bom nisso. Mal senti
a agulha deslizar para dentro da veia. Sangue vermelho-escuro espirrou dentro
do conta-gotas.
- Ok. Pode soltar.
Desamarrei a gravata e o conta-gotas se esvaziou na minha
veia. A cocaína bateu na minha cabeça, proporcionando uma tontura e uma tensão
prazerosas, enquanto a morfina espalhou-se pelo meu corpo em ondas relaxantes.
- Tudo bem? - perguntou Ike, sorrindo.
- Se Deus fez alguma coisa melhor, guardou para Ele mesmo.
Tradução: Ana Carolina Mesquita
Foto: http://www.listal.com/viewimage/2981467