Devushkin, funcionário pobre, tem uma alma esfarrapada
como suas roupas e sapatos.
E eu, que alma tenho?
Não estou esfarrapado
porque hoje me chegam aos pés sapatos
feitos do outro lado do mundo por garotas-escravas de 14
anos
que vivem sob a sombra de cassetetes
balas, braços e quepes.
Tenho sapatos novos porque a economia
do meu país
depende de mim, necessita que eu seja
o consumidor: esta minha profissão.
A alma de Devushkin era esfarrapada
o que significa dizer
formada de materiais muito usados,
a ponto de perder a integridade,
com suas costuras se desfazendo,
apresentando descontinuidades em sua cor
e superfície:
mas era, antes de tudo, composta por bom material.
Por material de verdade:
couro
madeira
linho
algodão
cânhamo
material que havia sido cortado, cosido, conformado
pelas mãos de pessoas de verdade,
sentadas fumando cachimbo, às portas de suas oficinas
em ruelas estreitas,
conversando;
pessoas com piolhos, tuberculose, e estômagos
forrados de repolho
batatas
centeio
e talvez alguma carne.
Eu, minha alma é composta por um material de mentira:
novo e brilhante, mas falso,
um químico petróleo: plástico.
Um material conformado por máquinas
operadas por fantasmas humanos.
Por outros iguais a mim com suas almas de plástico
sonhando com coisas de plástico
que eles ainda não tem
mas que vão ter em breve
só pra poder perceber que há outras
novas e melhores
coisas de plástico
que é preciso também ter.
Estômagos forrados de anidrido
azocorantes
flavorizantes
pirofosfato de sódio (“composto químico levemente tóxico e medianamente
irritante”)
proteínas termoplásticas pressurizadas temperadas com
hexeno.
Minha alma de plástico quer sentir o mundo
quer penetrá-lo
mas só consegue informações de plástico
imagens de plástico
sensações de plástico.
Não há nada senão o plástico: o plástico me habita
o plástico sou eu.
Devushkin:
invejo sua alma esfarrapada.
Seus sapatos rotos.
Suas calças puídas.
Sua tuberculose.
Seus piolhos.
Sua alma de carne.