sábado, 12 de dezembro de 2009

Resenha: Movimentos Sociais - novas tendências

Resenha final do curso "Movimentos Sociais, novas tendências" do lato senso da PUC-SP.

Uma breve explicação

“Deus está morto” decretou Nietzsche no século XIX. Junto com Ele, sucumbiram também seus sucedâneos materiais, as grandes metanarrativas apoiadas na crença racionalista inaugurada pelos renascentistas e consolidada pelos iluministas. Esse cataclisma na base mental do Ocidente, detectado pelos filósofos há mais de um século, se disseminou para as outras esferas do pensamento, contagiando progressivamente a arte, a ciência e, a esta altura, até o senso comum. Essa nova configuração intelectual, identificada como relativismo pós-moderno, tem sido analisada pelos impactos negativos que provoca, sendo atacada por pensadores oriundos de setores tão díspares quanto a Igreja e o marxismo.
Hoje não é tão simples, para o profissional de história, se posicionar metodologicamente, ideologicamente, politicamente. Não há grandes eixos aos quais se alinhar comodamente, sem reflexão. As dúvidas profundas que se impõe a respeito da validade dos conceitos absolutos levam à necessidade de se repensar as bases sobre as quais se fundamentam as contruções mentais.
Esse estudo tem como objetivo desenvolver reflexões sobre os impactos dessas mudanças no trabalho do historiador. Ele foi suscitado pela leitura do artigo[1] de Irma A. Antognazzi, exigida para o curso “História dos Movimentos Sociais: Novas Abordagens”. A contundência de suas afirmações provocou um movimento de reavaliação de valores, práticas e ideias que precisou se alimentar de outras fontes para esboçar algumas prematuras conclusões. Outras formas de encarar a questão foram encontradas em Ciro Flamarion Cardoso[2] e Keith Jenkins[3]. Ainda há um grande volume de obras a ser percorrido antes de se chegar a considerações mais conclusivas. A estratégia de abordagem desse texto é descrever e comparar as ideias desses três autores, havendo algum espaço para reflexão pessoal. Nesses momentos, optei pelo uso da primeira pessoa, recurso que facilita a construção das sentenças baseadas em minhas ideias. Ao final, além de considerações finais sobre a questão discutida, reservei uma seção para considerações subjetivas e impressionistas sobre o impacto do relativismo no ensino da história.



Análise das Ideias de Irma A. Antognazzi, Ciro Flamarion Cardoso e Keith Jenkins a respeito do posicionamento do historiador
em sua atividade profissional.


No filme brasileiro “Narradores de Javé”[4] esboçam-se algumas críticas ao processo de escrita da história que podem servir de introdução ao debate que se inicia. Na obra de Eliana Caffé conta-se a história de um vilarejo, Javé, prestes a submergir nas águas de uma represa criada para alimentar uma hidrelétrica. Frente a essa ameaça, os moradores se reunem e discutem uma forma de evitar a tragédia, chegando à conclusão que o único caminho possível para salvar a cidade é provar que ela tem valor histórico, elevando-a à categoria de “patrimônio”. Como não há registros da sua história, resolvem produzir um, convocando para tal tarefa Antônio Biá, único letrado da região. Este, munido de um caderno onde objetiva escrever a história “científica”, passa a colher as provas do valor histórico de Javé, trazidas à tona através de relatos de alguns de seus habitantes. Os fatos narrados, no entanto, variam de acordo com o entrevistado, que dão ênfase hora a um, hora a outro vulto do passado javélico. Os realizadores dessa obra acabaram criando uma metáfora poderosa que desnuda os mecanismos de produção e consumo do saber histórico, entrando na discussão acirrada que atualmente se impõe aos que se dedicam a esse ramo do saber. Afinal a história ainda é, para alguns, uma ciência objetiva, que é capaz de apreender fidedignamente a realidade de seu objeto (o passado) e ainda, aos moldes das ciências da natureza, é meio de “descobrir” as leis que regem os movimentos das sociedades no tempo e das classes entre si. É essa a visão que se questiona no filme. Que fatos são esses, que cambiam ao sabor dos interesses de cada um dos narradores? Que imparcialidade é essa, uma vez que os produtores da história já têm uma conclusão pronta a ser corroborada pelo manuseio hábil do passado? Que critérios objetivos são esses que elegem determinados narradores como porta-vozes do passado, em detrimento de outras vozes? Como, afinal, se pretende científica uma história que agrega em seu processo de constituição elementos tão subjetivos, aleatórios e imprevisíveis como os citados acima? Qual é, então, a verdadeira natureza da história, e como deve o historiador se posicionar nesse pântano de incertezas?
Para a argentina Irma A. Antognazzi, a história é uma ciência capaz de desvendar a realidade do mundo. Em artigo recente, ela expõe suas ideias a respeito das alterações ocorridas no campo historiográfico e das ciências sociais. Fundamenta seu texto na defesa das teorias de Marx e do materialimo histórico; é a partir dessa posição que erige seus argumentos. Ela reconhece o abandono dessas concepções, atribuindo-o a ações intencionais de grupos ligados ao grande capital transnacional, que ao mesmo tempo fomentam as ideias relativistas. Tal estado de coisas interessaria a esses grupos, uma vez que a ausência de um paradigma totalizante explicativo da realidade social e a adoção de chaves de compreensão fragmentárias impedem a formação da consciência, tolhem o entendimento dos mecanismos do mundo e, em consequência, obstam as ações reformadoras ou revolucionárias.
No que tange especificamente à historiografia, Irma defende que as “novas tendências” (estudos que contemplem mentalidades, cultura, cotidiano, etc. ) devem ser vistos como complementares ao marxismo. Retira deles o caráter de “novidade”, uma vez que aponta a existência de abordagens desse tipo desde o século XIX, que eram feitas sem o abandono da perspectiva totalizante.
Sobretudo, o que a autora defende é a tomada de posição por parte do historiador, que deve compreender a possibilidade de atuação no presente e servir de “guia consciente” das forças do povo, revestindo de ciência os esforços, evitando o método de ensaio e erro. A exortação é para que o trabalho do historiador seja voltado para a revolução, para a melhoria nas condições sociais via combate aos dominadores/exploradores. Todos esses esforços, fica evidente, devem ser embasados teoricamente por orientações marxistas.
A visão de mundo que se subentende a partir da análise desse artigo é bastante simplificadora: existem dois pólos contraditórios, a massa que é explorada e que ignora os mecanismos e as causas que a devoram, e uma camada de exploradores que age intencional e conscientemente no sentido de dominar e manter a dominação mediante a ocultação dos sistemas de controle. Nesse contexto entra em cena o historiador, que desvenda tudo com seu olhar treinado. Ele deve então fazer sua escolha: seguir o caminho do bem e resgatar a massa de sua ignorância ou aventurar-se pelo caminho do mal, juntando esforços com os dominadores para produzir teorias diversionistas que encubram no lugar de descobrir. Nesse universo de forças tão bem definidas, existe apenas uma trajetória de luta, que é o da compreensão, sob a ótica do materialismo histórico, da realidade social e a consequente revolução proletária. Essa é a única verdade aceita, e todo o resto é equívoco, intencional ou inconsciente.
O objetivo do texto é claro. Trata-se de tentar convencer da necessidade de não se abandonar o paradigma marxista, defendendo-o como o único caminho verdadeiro. Trata-se também de sugerir que essa visão permeie os cursos de formação das novas gerações de profissionais de história e cientistas sociais. Em última análise, o que se sugere é a doutrinação do historiador, que deve sair de sua etapa formativa fiel às diretrizes do prisma marxista.
Ciro Flamarion Cardoso situa a discussão num outro nível. Apesar de crer na necessidade da existência das visões holísticas do social, único meio de propor mudanças, percebe o descrédito delas como oriundo de outros fatores. Não há aqui o maniqueísmo de Antognazzi, não se apontam “mãos invisíveis” tramando deliberadamente pela queda do marxismo. Ciro vê um movimento maior, uma contestação mais profunda que leva de arrasto não só o marxismo, mas todas as teorias fundadas no paradigma iluminista. A crença na razão e na ciência como promotores do progresso entram em declínio, entre outros fatores, em função da desilusão que o contato com as mazelas geradas por elas produziu nos indivíduos ao longo do século XX. O futuro brilhante projetado pelos arautos do cientificismo dos séculos XVIII e XIX se consolidou num cenário de morte e miséria no século XX. O abandono dessa visão marca o fim de uma era, momento do qual se aproveitam elementos conservadores e neoliberais para impor configurações favoráveis aos seus interesses. Elementos que se beneficiam do contexto, mas que, ao contrário do que sustenta o texto de Irma Antognazzi, não o engendraram. Ciro aponta ainda um fenômeno concomitante, uma transformação profunda que nos coloca com “um pé no mundo das primeiras revoluções industriais, outro no mundo nascente”. Esse movimento rumo ao indefinido põe em xeque visões holísticas. O futuro, no entanto, tempo de estabilização, trará um novo paradigma totalizante, que carregará “elementos do marxismo”, mas que será novo e singular. Se a realidade está sempre mudando, é impossível criar uma visão holística absoluta, senão circunstancial e temporária. E a nova visão holística não surgirá enquanto o novo não emergir e se estabelecer: é impossível teorizar o casual.
Os escritos de Irma Antognazzi e Ciro Flamarion Cardoso têm em comum a crença na necessidade de uma visão holística do social e a crítica ao modelo pós-moderno; divergem quanto aos motivos do ocaso das visões holísticas, e também no apego ao marxismo: Antognazzi reafirma sua validade, Ciro se despede dele.
Keith Jenkins, no obrigatório “A História Repensada”, enxerga a emergência do pós-modernismo como fruto de uma nova fase de desenvolvimento do capitalismo, onde as forças do mercado são tomadas como valor máximo. Diante dessa nova baliza, tudo perde seu valor intrínseco e passa a ser avaliado mediante sua relação com as outras coisas. É a morte do absoluto. Ao contrário de Ciro e de Antognazzi, Jenkins percebe o relativismo como algo positivo, benéfico e potencialmente renovador.
No que se refere à história, ele parte da demonstração da cisão fundamental entre a ciência e seu objeto para evidenciar a impossibilidade de se atingir a objetividade. O principal obstáculo à cientifização da história é que seu objeto de estudo – o passado – é de natureza diferente, e o processo de transformação do passado em história é permeado por situações condicionantes que inviabilizam a invocação da “verdade”. Uma dessas condicionantes é o caráter ilimitado do passado: o que resta dele, através dos vestígios, é apenas uma fração, incapaz de fornecer uma visão completa do todo. Essa constatação obsta os esforços dos que pensam na história como a simples narração do passado como ele foi realmente: a perspectiva positivista. Além disso, o que nos chega do passado são relatos, já contaminados da subjetividade de seus produtores. Mesmo que os intérpretes desses relatos conseguissem se livrar de toda sua subjetividade (o que na prática é impossível), eles não conseguiriam expurgar a subjetividade inerente aos documentos do passado. O máximo que se pode fazer é comparar tais relatos, o que torna a história um exercício de interpretação dos discursos sobre o passado. Por fim, há a condicionante subjetiva, ou seja, o papel do historiador na intermediação entre passado e história, situação em que obrigatoriamente serão agregados ao resultado do trabalho os “constructos pessoais” do historiador, sua perspectiva.
Em suma, Keith Jenkins procura demonstrar que a história é um “campo de forças”, onde interesses dos diversos grupos e indivíduos combatem na tentativa de fazer prevalecer suas ideias e percepções. Eventualmente um deles predomina sobre os outros, e impõe aos outros o seu discurso como o verdadeiro, universalizando-o. No discurso de Jenkins o próprio conceito de verdade perde a validade, sendo também indentificado como um constructo parcial e subjetivo, sustentado por uma estrutura de poder.
Todo o trabalho de Jenkins, que desmonta conceitos tão caros e fundamentais para tantas pessoas, poderia levar a um posicionamento negativista: se nada é absoluto, se tudo é construção, se nada há de sólido além do simbólico, as possibilidades de compreender e transformar o mundo se anulam. Essa é, aliás, a crítica central que Ciro, Antognazzi e muitos outros dirigem ao pensamento pós-moderno, apontando seu aspecto desmobilizante e antirrevolucionário. Essa crítica, segundo Jenkins, é infundada, uma vez que ele deixa claro que a atuação política é amplificada no campo do relativismo, já que em essência esse tipo de raciocínio colabora para desvendar os jogos de poder manipulando os discursos e as verdades. Além disso, ao negar a existência de um centro interpretativo único, abre-se espaço para que mais pessoas e mais grupos possam produzir sua história e fazer-se ouvir, produzindo efeitos no mundo.
Dessas considerações se depreende que as ideias dos autores analisados ocupam posições diferentes no espectro intelectual. Ao que parece, o olhar pós-moderno de Jenkins engloba os outros e os demonstra como reflexos dos jogos de poder, coisa que seus autores não aceitam. Ciro sugere, em suas conclusões, um equilíbrio entre as perspectivas iluminista e pós-moderna, equilíbrio que, em minha opinião, é impossível de ser alcançado. Uma vez demonstrada a ausência de suportes lógicos e reais aos discursos, uma vez evidenciado seu aspecto parcial e sempre subjetivo, o único caminho a ser empregado pelo historiador que deseja realmente ser senhor de seu discurso é o da aceitação da impossibilidade de ser unânime e hegemônico. O caminho é perceber a natureza transitória dos postulados e a impossibilidade de alcançar uma explicação universal.

Considerações sobre os conflitos de paradigmas e
seus efeitos no ensino de história

Nesta seção, tentarei relacionar o conflito entre os paradigmas que se desenrola hoje com fenômenos manifestados no ensino de história. Estes escritos serão necessariamente inconclusivos e baseados majoritariamente em minha experiência pessoal, uma vez que não houve tempo hábil para realizar as leituras necessárias.
Ocorre um movimento de transformação na natureza e na essência do ensino de história, e ele se relaciona com uma transformação maior, no nível das mentalidades, a respeito da configuração ideal do conhecimento. O ensino baseado no paradigma iluminista ainda é hegemônico. Os livros didáticos, em sua imensa maioria, tendem a apresentar pastiches da história, explicações generalizantes de períodos, homogeneizando aspectos díspares numa tentativa de conferir certo sentido e lógica à narrativa. Busca-se a visão explicativa universal, criam-se categorias de compreensão, rótulos, compartimentos, onde é acondicionado o conhecimento histórico. Essa divisão começa na eurocêncentrica e arbitrária divisão da história em 5 etapas. Fala-se em “feudalismo” na Europa, por exemplo, sem se considerar as peculiaridades de cada tempo e espaço. A impressão final formada na mente do estudante é que a história evolui positivamente, e que o sistema civilizatório criado pelos europeus e disseminado pelo mundo é o ápice dessa evolução. Esse tipo de estudo cria a noção de que existem leis universais regendo os fatos. Sem contar a invisibilidade das massas: tudo é creditado a grandes personagens. O “povo”, quando aparece, é uma massa sem forma e sem cara, uma variável na equação.
O método de ensino dessa história distorcida é o tradicional, baseado na transmissão/recepção de informações.
Evidente que existem milhares de outras configurações, tanto de conteúdo quanto de método, no ensino de história, mas é esse o padrão desejado e exigido pelos vestibulares das grandes e prestigiosas instituições de ensino superior brasileiras, as mesmas, aliás, em cujos currículos constam autores e ideias que contrariam esse modelo.
Essa “história engessada” é usada também para a doutrinação política, por parte de professores que não se furtam de ser proselitistas, manejando os dados de maneira a criar no estudante uma visão sectária e dogmática do processo histórico, estimulante da “revolução”.
Novos ventos, entretanto, tem arejado o cenário. A adoção de novas formas de ingresso nas instituições de ensino superior simbolizam uma reorientação geral. Nessa nova configuração, o aluno é instado a trabalhar com as informações, compreendendo-as, interpretando-as, conectando-as. Trata-se de construir o conhecimento, no lugar de memorizar saberes já prontos. Além disso, a queda dos conceitos absolutos provocou uma revisão no próprio papel do professor e do currículo: se pensarmos de acordo com o novo paradigma, o que se ensinava antes nas aulas de história não era história, mas um discurso sobre o passado, amparado num determinado equilíbrio de poder, que tinha como finalidade justificar e conservar o status quo.

Considerações Finais

Comecei a refletir sobre esses assuntos em função de uma certa culpa que sentia por atuar de maneira despolitizada enquanto professor de história. Achava que faltava um alinhamento político claro permeando meu trabalho, mas ao mesmo tempo pensava ser incorreto doutrinar os estudantes numa determinada linha interpretativa. Ao ler o artigo de Irma Antognazzi estremeci: estaria eu sendo vítima da fragmentação intencional da visão social, imposta por forças terríveis para evitar a luta por igualdade e justiça? Busquei compreender melhor o que está se passando no campo das ideias, para decidir se o discurso de Irma é ou não válido. Descobri dois textos que aprofundaram gradualmente a questão. No de Ciro, descritivo, a queda do marxismo e das outras visões generalizantes é reputada não a forças intencionais, mas ao desenvolvimento histórico da sociedade. É um movimento natural. Mas ainda restava um ranço negativista em relação ao pós-moderno, e então busquei no texto filosófico de Jenkins uma visão otimista. E me convenci, afinal, de que a melhor postura que pode adotar um profissional de história é a de sempre desnudar e desconstruir os discursos, apontando os interessados em sustentar as “verdades”, e adotando simultaneamente, e em consequência, um respeito pelos discursos alheios, permitindo-lhes a existência e dialogando com eles.
Os textos discutidos, é evidente, possuem muitos outros ângulos de análise não abordados nessa simples resenha. E a discussão feita não se conclui aqui. Ainda precisa ser alimentada com muitas outras leituras. Mesmo assim, esse trabalho serviu como um ponto de partida para um processo de reposicionamento consciente dos fundamentos de minha atuação.


FONTES CONSULTADAS


ANTOGNAZZI, Irma A. Necessidade do Enfoque Historiográfico para Explicar os Processos Sociais do Presente. In: Projeto História (revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) nº29. São Paulo, dez/2004. Pág. 35 a 51. Tradução: Vera Lúcia Vieira.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Introdução: História e Paradigmas Rivais. In: Domínios da História.

JENKINS, Keith. A História Repensada. Tradução: Mário Vilela. São Paulo: Contexto, 2001.

NARRADORES DE JAVÉ. Dir. Eliane Caffé. Brasil. 2003

sábado, 28 de novembro de 2009

resenha - Paul Thompson

Esta resenha apresentei como trabalho de conclusão de curso da disciplina "Tendências da Historiografia Contemporânea", ministrada no primeiro semestre de 2009 pela professora Lilia, no Latu Senso da PUC-SP.
Paul Thompson - A Voz do Passado - História Oral
Introdução
Trata-se de uma obra multifacetada e de importância vital para todos os que se utilizam de reminiscências, memórias e relatos orais em suas atividades de pesquisa e escrita da história. A História Oral emergiu muito recentemente como possibilidade historiográfica. O primeiro projeto nominalmente ligado a esta corrente surgiu em 1948, nos EUA, liderado pelo professor Allan Nevis, criador do “Oral History Project”. Como toda novidade, causa certo desconforto entre os guardiões das tradições acadêmicas, e precisa provar sua validade para ser aceita plenamente. Ainda há um senso comum que descarta sumariamente a História Oral por considerá-la demasiadamente subjetiva e imprecisa.
Thompson parte justamente deste ponto, porque sabe que é a frente que exige os maiores esforços defensivos. E começa atacando: ao invés de perder tempo tentando provar que as fontes coligidas pelos métodos da história oral são objetivas, afirma e procura provar que a subjetividade é um dado real em todas as fontes históricas. O fato de ser escrito e oficial não torna o documento mais fiel à realidade. O único remédio para lidar com esses desvios é submeter as fontes a um rígido sistema crítico.
O autor demonstra, ao longo da obra, que a História Oral é um método que tem os mesmos problemas e limites de quaiquer outros, mas que apresenta vantagens muito grandes do ponto de vista da abrangência. A história oral permite uma escrita mais democrática, muito ligada ao movimento novo conhecido como “história vista de baixo”. Dá voz aos que, nos documentos tradicionais, não seriam considerados.
Thompson é um guerrilheiro da nova história, é um entusiasta das possibilidades que ela traz ao campo da história. Em muitos pontos, seu trabalho é quase panfletário, e o tom se aproxima, por vezes, daquele empregado nas campanhas publicitárias.
Ao mesmo tempo, ele é um apaixonado defensor da revolução social. Defende que a função de um historiador é contribuir para que se alcance esse ideal. Thompson vê a história como instrumento para agir na sociedade e provocar mudanças. Em suas palavras, “o que se requer é uma história que leve à ação, não para confirmar, mas para mudar o mundo”. Ainda que o leitor mais tradicionalista considere esse arroubos um tanto exagerados, a obra mantém seu valor porque não se resume a isso. Thompson faz uma profunda reflexão sobre o uso de fontes orais, memórias e relatos, apontando suas limitações e possibilidades.
História e Comunidade
Thompson faz uma discussão acerca dos métodos e fontes tradicionalmente empregados na escrita da história, buscando compará-los com aqueles obtidos através da história oral. Nesse processo, ele reafirma sua filiação às diretrizes da Nova História.
A afirmação inicial é um libelo em defesa da importância da história. A necessidade de conhecer e explicar o passado, e através dele compreender melhor o presente e se situar no mundo é descrita como universal e inerente à condição humana. Sempre houve história, em qualquer sociedade, a qualquer tempo.
Infelizmente, por muito tempo ela foi escrita por pessoas ligadas aos grupo dominantes das sociedades, fato que levou a uma seleção muito restrita do que deveria ser registrado e preservado. Era uma história etnocêntrica, elitista e que fechava os olhos para as mulheres e para os menos favorecidos. É a velha crítica que os historiadores da Nova História fazem à historiografia tradicional.
Thompson parte dessa constatação já aceita e estabelecida para reforçar sua defesa da história oral. Segundo ele, mesmo após a ampliação do campo de interesse da história, permaneceram problemas graves, uma vez que as fontes tradicionais refletem a distorção promovida pela historiografia tradicional. Apenas os documentos que interessavam aos propóstitos daquele tipo de história foram preservados. Mesmo que a abordagem seja nova, as fontes permanecem conservadoras. Para o autor, recorrendo-se à história oral pode-se resolver esse problema. Os relatos orais podem preencher essas lacunas deixadas pelas fontes tradicionais.
Thompson vai além, e aponta outras vantagens decorrentes do emprego da história oral. As constatações dele transcendem os campo historiográfico tradicional: a história oral é algo tão revolucionário que suas implicações transbordam da história para outras áreas de atuação humana. Ela promove a remoção das barreiras entre historiadores e público leigo, apaga as fronteiras entre instituições de ensino e comunidade, rompe o distanciamento entre professores e alunos. Uma de suas vertentes tem funções curativas: é a terapia da reminiscência, que ajuda pessoas idosas desalentadas diante da modernidade, recuperando pela memória sua identidade.
Essa expansão impressionante do campo de atuação da história oral, apontada triunfalmente por Thompson, merece uma discussão mais aprofundada, uma vez que esse processo provoca, inveitavelmente, um distanciamento das razões originais do método: alimentar as pesquisas históricas.
Historiadores e história oral
O autor faz um grande passeio pela historiografia, apontando o uso de relatos orais, memórias e reminiscências como fontes de informação histórica. É um importante e minucioso levantamento, uma compilação de todos os que fizeram uso desse tipo de fonte ao longo da história.
Thompson constata que a tradição oral foi a primeira espécie de história, que somente no século XIX deixou de ser considerada pelos historiadores. Diversas sociedades reservavam espaço para a existência de indivíduos que se dedicavam especificamente a memorizar e transmitir os conhecimentos históricos, como os skald na escandinávia, os rajput na Índia e os griot na África ocidental.
Grandes nomes da historiografia antiga e medieval, como Heródoto e Bede, recorreram preferencialmente às fontes orais. No século XVIII, os iluministas fizeram largo uso dos relatos. Voltaire não via diferenças entre as fontes orais e documentais.
Thompson demonstra que, em muitos casos, os testemunhos orais são vistos como mais confiáveis que os documentos escritos. É o que ocorre nos tribunais, onde as testemunhas devem ser ouvidas; essa exigência vem da convicção de que os documentos são mais fáceis de forjar. Os registros contábeis devem ser auditados anualmente, ou seja, lidos em voz alta.
Por que, então, os historiadores relegaram os relatos ao esquecimento? A profissionalização do historiador, no século XIX, contribuiu para isso. Leopold von Ranke foi um grande ator nesse processo. Ele procurou sistematizar a disciplina ao longo de seus 60 anos de atuação acadêmica. Buscava criar um método próprio à história, e passou a desprezar radicalmente tudo o que considerava subjetivo. A ele interessava descobrir as coisas “como realmente foram” (wie es eigentlich gewesen ist). Seu método se espalhou e fez adeptos, como os franceses C.V. Langlois e Charles Seignobos, que afirmavam sem reservas que “se não há documentos, não há história”. De fato, o objetivo foi alcançado: a abordagem documental deu aos historiadores seu método próprio, peculiar, diferenciando-os como especialistas num determinado campo. Como afirma Thompson, essa noção de propriedade profissional era muito importante no século XIX.
Outro motivo para o abandono das fontes orais foi a mudança de atitude dos próprios historiadores em relação a sua realidade social. Restringindo-se aos documentos os historiadores podiam isolar-se socialmente, arrogando uma “neutralidade objetiva” em função da ausência de contato com o mundo.
No começo do século XX essas convicções foram caindo por terra, num processo que acompanhou uma mudança de paradigmas geral e universal. As velhas chaves de compreensão não conseguiam mais explicar o moderno mundo multifacetado, aberto ao relativismo. Os historiadores passaram a aceitar que a diversidade de fontes contribuía para uma aproximação de seus trabalhos com a complexidade do mundo real.
Considerações Finais
Não vivemos em tempos fáceis para historiadores. A trajetória humana sofreu uma radical transformação no decorrer do século XX, num processo tão profundo que tornou obrigatória uma revisão geral na mentalidade e na estrutura do pensamento. Os velhos modelos de explicação histórica, que se pretendiam absolutos e aos quais nada escapava, tornaram-se obsoletos, incapazes de compreender a realidade. Tornaram-se objetos de culto de obstinados militantes, que agarram-se a eles de maneira desesperada, procurando extrair algum sentido de suas desgastadas engrenagens.
Frente a esse mundo complexo e multifacetado, uma abordagem histórica que considere, com método e critério, as informações adquiridas diretamente das testemunhas dos fatos tende a ser mais fiel à realidade.
A obra de Paul Thompson oferece bons argumentos de reflexão para o historiador que se utiliza de tais fontes em seu trabalho.

terça-feira, 17 de novembro de 2009


segunda-feira, 2 de novembro de 2009


terça-feira, 27 de outubro de 2009

Ilha das Flores


Em 1989 um filme de 13 minutos de duração, dirigido por um brasileiro, rodou o mundo chamando atenção para os problemas sócio-econômicos do país. O valor da obra foi oficialmente reconhecido através da concessão de vários prêmios de peso, na Europa, nos EUA e no Brasil. Seu idealizador, Jorge Furtado, apropriando-se das técnicas fílmicas de documentários construiu, através da saga de um tomate, uma narrativa analítica da cisão social e econômica do país. E o fez de maneira tão direta, objetiva e aparentemente simples que a tornou uma das mais usadas fontes de discussão sobre o tema, completando 20 anos de exibição garantida em salas de aula de todo o país. Trata-se, como já deve saber a esta altura o leitor, do curta metragem “Ilha das Flores”.
Qual o segredo do sucesso da obra, que projetou o nome do diretor para fora do Rio Grande do Sul? Que elementos a mantém viva no imaginário dos professores do ensino fundamental e médio, tornando-os seus divulgadores entre as novas gerações? Não há dúvida de que o tema é bastante atrativo, sobretudo num país que acabava de sair de um longo ciclo ditatorial onde tais verdades eram varridas para baixo do tapete. Os aspectos técnicos também ajudaram a alavancar a obra, sua edição eficiente e ao mesmo tempo inovadora, suas inusitadas inserções musicais, como o tema de “O Guarani”, facilmente reconhecível após décadas desgastando-se como vinheta de abertura da famigerada “Hora do Brasil”, ou a narração em tom entre compenetrado e irônico do ator Paulo José, que acentua as passagens impactantes com um forte apelo emocional. Mas creio que o que realmente marcou a obra com o signo do universal foi o recurso discursivo escolhido pelo diretor, que também assinou o roteiro.
“Ilha das Flores” procura fazer um novo olhar sobre os ítens mais básicos do cotidiano, coisas tão elementares que deixaram de ser postas sob o olhar crítico das pessoas, coisas que migraram para a categoria do axioma. Dinheiro, trabalho, família, entre outros, são elementos escrutinados a frio, como que por uma criança, despidos dos destroços que os encobrem e impedem a observação de sua essência. Depois de desnudados, são novamente apresentados ao telespectador através de definições diretas, saídas de dicionários, cínicas, antagonizando com as imagens, explicitando a distância hipócrita entre o dito e o real.
Esse exercício de revisão e ressignificação das coisas mais elementares é extremamente saudável e necessário, e deve fazer parte das atividades rotineiras do historiador. A ciência histórica, seus métodos, teorias e práticas são objeto de extensa discussão, preenchendo milhões de páginas de publicações nas mais diversas línguas. O profissional de história – professor, pesquisador, estudante – vive imerso nesse emaranhado de opiniões, visões, interpretações, teorias, que se acumulam ao longo dos séculos sobre a prática da história. Os conceitos tornam-se familiares, aclara-se na mente do estudioso a estrutura que sustenta toda essa produção, as linhas, correntes, escolas de produção historiográfica. Toda essa rede de elementos intelectuais é capaz de confundir o jovem iniciado, especialmente quando ele se depara com a bizarra estrutura organizacional dos cursos de formação acadêmica, onde a teoria é estudada como se fosse corpo autônomo dissociado de qualquer elemento real.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Você começa aceitando as pequenas coisas. Depois vem as médias e as grandes também. Aceita salas com 40, 45, 50 alunos; aceita receber alunos analfabetos na 5ª série; se acostuma com a falta de recursos, com os livros mal escritos; se acomoda com a sala de informática que não funciona, com a sujeira, com as carteiras depredadas, com o ventilador que não ventila, com o giz que não escreve. Passa a achar normal que, mesmo recebendo as verbas pertinentes, a Prefeitura não envie merenda adequada. Aceita as ausências e omissões... Transige com a ignorância, com a incompetência, com o barulho, com a falta de respeito, com a falta de interesse, com uma escola que se tornou tudo, creche, prisão, reformatório, centro social, clube, e que agora não tem espaço pra ser o que deveria ser, uma escola.
Você vive uma vida limitada, é mal remunerado, é mal visto e mal quisto, tem dezenas de turmas, nem sabe os nomes dos seus alunos, corre de uma ponta da cidade pra outra, almoça em 15 minutos, pega ônibus, trem, gasta as solas dos sapatos, gasta a saúde numa atividade execrada por todos, jornalistas, governadores, estudantes, autoridades educacionais, escritores, filósofos, frentistas de postos de gasolina, donos de mercearias...
Um dia você se cansa, vê que está exausto de tentar remar contra a maré, percebe que as forças contrárias superam as suas. Você se acomoda, para de lutar, de tentar, desiste, desanima. Torna-se um profissional burocrático, aprende a se esquivar dos percalços sacrificando a qualidade de seu trabalho.
E aí, se ainda tiver um pouco de brio, você começa a sentir culpa. Você começa a pensar que a culpa de toda essa tragédia monstruosa, nauseabunda, é sua. O peso do mundo cai em seus ombros. Você passa a se ver como mais um que contribui para a decadência, a queda.
E você é.

Clara dos Anjos - Lima Barreto

Esta descrição do subúrbio carioca, presente em "Clara dos Anjos", serviu para um gostoso trabalho em sala de aula. Mais do que transpirar beleza em cada frase, o trecho deu ensejo a uma boa reflexão sobre o Brasil, de ontem e de hoje...

“O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central.
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passamos por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, torna-se preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, "correres" de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos "avenida".
As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o "toque de reunir": "Mimoso"! É um bode que a dona chama. "Sereia"! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus — tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.
Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro, Um "belchior" de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.
Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.
Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais.
Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os caminhos são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que poderiam ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no campo-santo municipal. Quem passa por aqueles caminhos, quase sempre topa com um. Os de "anjos" são carregados por moças e os destas também pelas da sua idade. Não há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que para os bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de branco, carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando uma poeira de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão aos saltos, para evitar atoleiros e poças d'água.
Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há sempre uma modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros procuram roupas escuras, se não pretas; mas, às vezes, surge o escândalo da sua calça branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam, "quebram o corpo", isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado.
Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a seu destino. Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía da venda, olhava o caixão e dizia: Eles que estão lá dentro, que o carreguem. Chegaram ao cemitério e deram por falta do defunto. "Mas não era você que o vinha carregando?" — perguntava um. "Era você" — respondia o outro; e, assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansadíssimos e semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o camarada falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E o pobre homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos camaradas levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois, o resto do caminho para a última morada, ele a fez graças aos esforços de dois burros, que estavam habituados a puxar carga bem diferente e muito menos respeitável.
Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.
Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o Estado do Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a parte. O interior dos carros está apinhado e os vãos entre eles como que trazem quase a metade da lotação de um deles. Muitos viajam com um pé num carro e o outro no imediato, agarrando-se com as mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade sentados na escada de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais ousados, dependurados no corrimão de ferro, com um único pé no estribo do veículo.
Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário.
O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras;
nas casas, é raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à entrada.
Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d'água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na avenida Central.
O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica...”

Colhido em http://www.culturabrasil.pro.br/zip/claradosanjos.pdf

terça-feira, 1 de setembro de 2009


segunda-feira, 31 de agosto de 2009


domingo, 30 de agosto de 2009

Resenha Crítica elaborada como trabalho de conclusão de curso da disciplina "História: Novos Agentes Sociais, Etnia e Gênero"

A autora

Maria Izilda Santos de Matos possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1978) e doutorado em História pela Universidade de São Paulo (1991), tem pós doutorado Université Lumiere Lyon 2/França (1997). Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, colaboradora da Universidade Estadual do Ceará e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Participou de vários outros projetos de pesquisa, é pesquisadora 1do CNPq. Em 1994 recebeu o prêmio SESI-CNI de Teses Universitárias, com o trabalho Trama e Poder, em que estuda as indústrias paulistas, entre 1890-1934. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: historia, música, gênero, historia das mulheres e cidade. Entre suas obras destacam-se: Melodia e Sintonia: o masculino, o feminino e suas relações em Lupicínio Rodrigues. RJ, 2ª ed., Bertrand Brasil, 1999. Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50. RJ: Bertrand Brasil,2.ed,2002. O imaginário em debate. SP, Olho d'água, 1998. A Cidade em debate. SP, Olho D'água, 1999. Por uma história das mulheres, SP, EDUSC, 2000. Meu lar é o botequim, SP, Cia Editora Nacional, 2.ed., 2002. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho, SP, EDUSC, 2002. Ancora de Emoções, Bauru, EDUSC, 2005. Gênero e Terceiro Setor. Ed. Catavento, 2005. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo de Adoniran Barbosa. Bauru, EDUSC, 2008. História e Deslocamentos: os portugueses. Bauru/Porto, EDUSC/CEPESE, 2008[1].

A obra

“Âncora de Emoções” é uma obra que cruza dois universos: o do pensamento e discurso médicos dos fins do século XIX e início do XX, e o dos compositores de músicas populares do Brasil das décadas de 1930, 1940 e 1950. O objetivo desse encontro é estabelecer discussões sobre a questão dos gêneros, suas relações e conflitos. A análise desses dois campos, aparentemente irreconciliáveis, nos permite encontrar surpreendentes similaridades, assimilações e paralelismos. Parte do discurso médico foi absorvida e reproduzida nas noções de masculino e feminino expressas nas letras das canções, mesmo nas produzidas por artistas do sexo feminino, como Dolores Duran, o que mostra a penetração que tais idéias tinham na sociedade.
Além disso, a obra traz um conjunto de reflexões sobre os novos campos de análise histórica, bem como das novas técnicas de investigação, novas abordagens, novas metodologias e conceitos.


Outras histórias

A produção historiográfica se modifica ao longo do tempo, caminhando lado a lado com as transformações mais gerais ocorridas na sociedade e, principalmente, na forma de pensar e entender o Universo. O século XX foi pródigo em revoluções de paradigmas, levando a um profundo processo de reconstrução e revisão de mentalidades. A História, como “filha de seu tempo”, não passou incólume.
Apesar de algumas obras já contrariarem essa generalização, a produção historiográfica anterior ao século XX resumia-se a algo produzido dentro de uma determinada perspectiva, qual seja, a do homem de elite europeu. Tudo o que diferia desse escopo era visto como distorção, como exceção. Com o advento de novas correntes de análise, outras possibilidades passaram a fazer parte do trabalho do historiador. Descobriu-se a historicidade de todas as coisas humanas, de sentimentos a sensações, de pensamentos a técnicas. Dentro desse grande movimento, abriu-se espaço para os estudos voltados às minorias, às mentalidades, e, finalmente, análises visando as relações entre homens e mulheres ao longo do tempo, delimitando o campo de gênero. Os historiadores abriram os olhos para agentes históricos que estavam relegados à obscuridade nos escritos, mas que tinham importância capital na realidade, e assim a produção historiográfica ganhou profundidade e consistência.

Música: caixa de ressonância das sensibilidades

A produção musical de um determinado período, se analisada da maneira correta, pode servir como uma poderosa fonte de conhecimentos acerca de aspectos pouco abordados em outros tipos de documentos: a sensibilidade, a emoção, os padrões morais. É o público quem determina o que é sucesso ou não. É ele que mostra desejo por certas temáticas e rejeita outras. Dessa forma, muito se pode conhecer da sensibilidade de uma época através da análise das canções que estavam na “boca do povo”.

Mulheres e o discurso médico

Nos fins do século XIX e início do XX o Brasil passava por grandes transformações. Em processos que ocorriam concomitantemente, a República se instalava, a urbanização e a industrialização avançavam; a ciência ganhou espaço, e a medicina ganhou lugar de destaque. Socialmente, a burguesia ascendia e buscava normatizar a sociedade de acordo com seus ideais. Nessa trajetória, certos comportamentos foram condenados, outros foram elevados ao patamar de modelos.
O discurso médico da época, apesar de apresentar divergências e contradições, era relativamente convergente em alguns pontos, especialmente na delimitação das condutas ideais para homens e mulheres.
No que se refere ao feminino, os médicos estabeleceram dois arquétipos diametralmente opostos. De um lado, apresentavam o modelo mãe-esposa: frágil, assexuada, confinada ao mundo doméstico, com funções meramente reprodutivas. A esta se contrapunha a degenerada, mulher pública, sexuada, identificada com a prostituição. Os médicos buscavam conformar as mulheres com o primeiro modelo, apresentando argumentos “científicos” para tal imposição.
Do ponto de vista das enfermidades, os médicos desenvolveram um tratamento distinto para homens e mulheres. O útero era visto como a raiz de todos os males, e qualquer desequilíbrio nesse órgão levaria a patologias em outras áreas do corpo. Muitas vezes, os tratamentos tinham caráter punitivo, com o fim de penalizar a transgressão dos modelos e padrões impostos.

Perfil masculino: definição pelo discurso médico

Assim como definiu padrões positivos e negativos para a feminilidade, o discurso médico delimitou modelos também para o homem. O homem ideal era o marido-provedor, que deveria estar sempre apto para o trabalho, evitando hábitos e ambientes que dissipassem suas energias.
O alcoolismo era visto como fator esvaziante do poder do homem, capaz de impedi-lo de cumprir suas obrigações. O combate a esse mal e a tudo que a ele se associa (vida noturna, jogos, boemia), toma espaço central no discurso médico sobre a masculinidade.

A historicidade das sensibilidades

Com a abertura propiciada pela expansão do campo historiográfico, lançou-se luz sobre um aspecto pouco estudado até então, as sensibilidades. Percebeu-se que comportamentos, valores e sentimentos são elementos contruídos socialmente e que, portanto, variam ao longo do tempo. São, dessa forma, passíveis de análises históricas.

Copacabana nos anos 1950: território da boemia

Nos anos 1950, graças a obras de urbanização, a remota praia de Copacabana foi integrada à cidade do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o bairro tornou-se o ponto mais badalado da noite carioca. Avenidas foram traçadas ao longo da linha da praia, as famosas calçadas de pedra portuguesa facilitaram o caminhar dos pedestres. Um número crescente de automóveis passou a circular pela região.
Apesar da tomada de importância da sociabilidade de praia, onde corpos eram exibidos e admirados, a essência do bairro aparecia mais nitidamente no território da noite. Antônio Maria, cronista desse processo, descreveu a profusão de tipos que se cruzavam nas boates, cabarés, cassinos e casas de espetáculo: políticos, artistas, malandros, boêmios profissionais, homens de negócio. Nesses cenários, emergem novas relações entre os gêneros.
Apesar de ainda resistir o velho “espírito de bairro”, calcado na pequena solidariedade e na plena vigilância, surgia um modelo “moderno” de conviver em sociedade, uma certa impessoalidade nas relações, um certo individualismo privativista.
Copacabana acabou por sofrer um inchaço na sua vida boêmia a partir do governo do Marechal Dutra, quando as autoridades passaram a atacar redutos da malandragem em outras áreas da cidade, como a Lapa e a Praça Onze. Desalojados de seus locus costumeiros, esses boêmios se “transferiram” para Copacabana, o último bastião da vida noturna carioca.

Dolores Duran: intérprete das sensibilidades femininas

Autodidata, oriunda das camadas menos privilegiadas, Adiléia Silva da Rocha ficaria conhecida na noite carioca como Dolores Duran, a artista que deu voz à alma feminina. Após os anos iniciais como intérprete, Duran deu início, nos anos 50, a uma fase em que assumiu sua veia compositora. Nesse momento, afloraram em suas letras os sentimentos próprios das mulheres da época, uma vívida contradição entre os valores modernos em ascensão e os arcaísmos persistentes na relação entre os gêneros.
Com seu discurso coloquial, Dolores captava os “instantâneos do dia-a-dia”, flagrando “dor, saudades, remorsos e outros sentimentos”. O amor, na visão da artista, é algo doloroso, que condena aquele que o sente a sofrimentos agudos. A ausência, o abandono e a solidão são elementos onipresentes no seu temário. O sentimento de culpa é assumido pela entidade feminina nas canções, o que mostra a internalização, por parte das mulheres, da culpabilidade feminina imposta pelo discurso masculino.

Perfis de gênero em Lupicínio Rodrigues

Um dos poucos artistas fora do eixo Rio-São Paulo a se tornar popular neste período, o gaúcho Lupicínio Rodrigues compunha fortemente influenciado pelo contexto boêmio, pela cultura portenha, pelo tango e pelo bolero. Suas letras acertavam em cheio o gosto popular. Contava o que vivia, e por isso acabou por traduzir com propriedade as características do cotidiano boêmio, suas “experiências, situações e emoções”.
A mulher encontra-se no centro das preocupações na obra de Lupicínio. Segundo ele, somente as que o fizeram sofrer lhe traziam dinheiro, uma vez que inspiravam canções pungentes e repletas de emoção. Dessa forma, é a mulher infiel, perversa e traidora que transparece em seu discurso. Predicados positivos em relação às mulheres aparecem de raro em raro, mais como um modelo a ser seguido. Para ele, a mulher ideal é honesta, casta, fiel, sincera e obediente.
Em parte, a visão de Lupicínio Rodrigues incorpora o discurso médico, reforçando a dicitomia entre a mulher pública-sexuada e a privada-assexuada.
O homem, em geral, é retratado como sincero e amoroso. Nas relações entre os gêneros, o homem é superior; é racinal e corajoso, e o sentimentalismo lhe é vetado. Em contraste com a algoz feminina, é vítima de seus sentimentos.

O Ébrio: Vicente Celestino e o perfil do etilista

Filho de imigrantes italianos, Vicente Celestino sempre apresentou pendores artísticos. Em sua extensa carreira, desempenhou as mais variadas funções artísticas, destacando-se como cantor, compositor e ator. O auge de seu sucesso ocorreu nas décadas de 1930, 1940 e 1950. O surgimento de novas correntes culturais, mais modernas, colocou-o num relativo ostracismo, juntamente com outros artistas de sua geração.
Num cenário urbano marcado pela industrialização e pelo trabalho, ganhou destaque nas produções cultirais a ênfase nos locais de descontração e lazer, uma busca pela fuga das pressões do dia-a-dia.
No temário de Vicente Celestino, o ébrio é uma constante. Em geral, trata-se do homem que sofreu por amor, foi traído pela mulher amada e refugiou-se na bebida. À mulher, mais uma vez, é reservado o papel de “semente do mal”, propensa à infidelidade e ao delito amoroso.
Às vezes o ébrio aparece como um pobre coitado, inofensivo e inerte, como em “O Ébrio”, grande sucesso de 1936. Em outros casos, é furioso e homicida, que em crise de ciúme alcoólico faz “justiça com as próprias mãos” e dá cabo à vida da infiel, como na canção “Matei”, de 1940.

Contribuições da Obra: considerações críticas

A obra de Maria Izilda Santos de Matos contribui para ampliar em muito as reflexões sobre diversas discussões historiográficas. Em primeiro lugar, estabelece uma clara delimitação das novas formas de se abordar os problemas históricos. Reafirma a emergência de novos campos de investigação, especialmente o de gênero, categoria de análise que tem permitido uma revisão da historiografia tradicional com grande benefício para um entendimento mais fiel da trajetória humana.
Mais que isso, a obra apresenta um método bastante inovador de análise, buscando em fontes pouco ortodoxas respostas para questionamentos complexos. Compreender o processo histórico acerca das sensibilidades e dos sentimentos é um desafio para qualquer historiador, e a autora demonstra sagacidade ao se valer das letras das canções populares para encontrar pistas sobre esse problema. Com relação ao discurso médico, a autora consegue obter um retrato da mentalidade da época a respeito dos papéis ideais determinados para os gêneros. Demonstra como a “ciência” é posta a serviço dos interesses de determinados grupos, que através dela almejam impor seus modelos para a sociedade em geral. Mostra ainda a maneira pela qual o gênero masculino busca justificativas “racionais” que deem embasamento a sua dominação sobre as mulheres.
Em suma, a obra nos permite aprofundar as discussões sobre essas questões extremamente pertinentes, tão caras aos estudos mais modernos da historiografia.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de Emoções – Corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, SP: Edusc, 2005.


[1]Fonte: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4723167J4 acessado em 23 de junho de 2009, às 20:43h.

Matéria publicada na Folha de São Paulo de hoje, no caderno Cotidiano.

"Mestres se veem na berlinda diante de novo ambiente escolar "

Como a tecnologia, a violência e as doenças do aprendizado mudam as salas de aulas, trazendo desafios e provocando a discussão sobre o papel do professor
OCIMARA BALMANT
LETÍCIA DE CASTRO
DA REVISTA DA FOLHA

Em uma escola na periferia da zona sul de São Paulo, mais de 2.000 alunos gritam ao mesmo tempo que querem ser dispensados para assistir ao jogo de futebol. Não são atendidos e colocam fogo em carteiras.
No colégio de classe média na zona norte, um aluno de 12 anos diz à professora que é ele quem paga o salário dela e que deve fazer tudo o que ele quer.
Perto do parque Ibirapuera, a professora é avisada pela coordenadora de que um dos seus alunos foi mal na prova, mas não pode ser reprovado porque há um laudo atestando que sofre de déficit de atenção.
Os episódios ilustram alguns dos desafios que os docentes enfrentam nas salas de aula. Há problemas antigos, como a violência, e outros bem atuais, como a concorrência com equipamentos eletrônicos ou as doenças do aprendizado.
Geração on-line
A lousa está repleta depois da aula de português. O adolescente não copia uma sentença: basta pegar o celular e registrar tudo com a câmera. O episódio foi no colégio Santa Maria, zona sul. Não houve broncas."A tecnologia é matéria-prima, objeto de estudo. Não posso dizer que não presta ou proibir", explica Elizabeth Fantauzzi, 47, responsável por disciplinas como web design e fotografia digital.
A praga do laudo
Depois de uma discussão com um aluno, a professora Silvia Barbára, 49, coloca o estudante de 16 anos para fora da sala de aula. Ele sai, mas a xinga de "puta". A coordenadora da escola explica que o mau comportamento se deve a uma troca de medicamentos. A professora vive esbarrando em diagnósticos de déficit de atenção.
Segundo a psicóloga da Unicamp Cecília Collares, que estuda a "patologização da educação", o fenômeno causa reação em cadeia. Os pais reagem como se fosse uma fatalidade, a escola se isenta, e o professor se vê desvalorizado.
Discriminação e violência
B.C., 49, professor da rede estadual há 29 anos ficou uma semana na UTI depois de ter a diabetes descontrolada. O motivo: preconceito. Uma dupla de alunas pediu o afastamento do professor homossexual.
Para a educadora da Unicamp Angela Soligo, casos de agressão física e de depredação são decorrentes do processo de sucateamento a que a escola pública foi submetida.
Outra questão é a falta de diálogo e a incapacidade da escola de assimilar a nova cultura juvenil. Soligo defende que poder público, professores, gestores, alunos e pais se envolvam para discutir o problema.
Onde está a família?
Diante de uma turma com dificuldade de aprendizado, a professora Margarida Costa, da Escola Municipal Oliveira Viana, no Jardim Ângela, avisa: quem não terminar não vai brincar no intervalo. Ninguém terminou o exercício a tempo.
A classe inteira optou por ficar sob a tutela de um adulto no recreio. "A carência de atenção é tão grande que a possibilidade de usufruir de um tempo ao lado do professor deixou a turminha de crianças animada", explica Margarida.
Na escola da periferia da zona sul, a estratégia que a diretora, Jucileide Mauger, encontrou foi ampliar o diálogo com os alunos e abrir-se para a comunidade. Abrir espaço para a família participar das decisões é um dos segredos, no Jardim Angela ou no Alto de Pinheiros. No Oliveira Viana, pais de alunos ocuparam as salas de aula para um encontro de casais. No colégio Vera Cruz, há desde 2005 a Organização de Pais Solidários, com palestras sobre drogas, infância e sociedade.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Coisas de velho...


Segunda feira, às 20 horas, um comerciante foi morto numa tentativa de assalto. Como Iguape é uma cidade pequena, o ocorrido ganhou ares de assunto da semana. É realmente incomum este tipo de coisa por aqui. Desde 2006, é a segunda vez que acontece uma morte violenta relacionada a roubo. Na manhã do dia do crime estive na loja do comerciante e conversei com ele sobre uns reparos que pretendia fazer no banheiro de casa.
Hoje espalhou-se a notícia da prisão dos autores do crime: quatro adolescentes oriundos de uma cidade vizinha.
Lembrei disso hoje, quando conversávamos na sala dos professores, sobre a apatia geral que percebemos nos alunos. Uma professora, que também dá aulas para crianças do ensino básico, relatou que essa condição se manifesta desde cedo. Alunos de oito anos apresentam grande desdém pela escola, preguiça, falta de vontade, o que é incomum, já que nesta fase da vida a curiosidade natural deveria guiar as mentes, e a energia da infância proporcionaria uma conduta ativa. Adolescentes, passando por grandes mudanças hormonais, tendem a ser mais sazonais, menos ativos em determinados momentos.
Comentei os resultados fracos dos alunos dos terceiros anos no simulado que realizei na semana passada, e ouvi que “era de se esperar”, uma vez que eles não demonstram nenhuma vontade de aprender. Em geral, os professores acabam culpando os alunos pelo fracasso escolar.
Mais tarde, li na revistá Época dessa semana uma matéria intitulada “E escola que nossos jovens merecem”, onde cinco adolescentes foram acompanhados em seu dia-a-dia e registraram suas impressões sobre a vida escolar, entre outras coisas. A matéria trazia diversas estatísticas que “comprovam” o fracasso do Ensino Médio no Brasil, destacando aspectos como o alto índice de evasão e reprovação no ciclo. O teor geral da matéria, bem como dos relatos dos alunos, é de que a escola e os professores é que são os culpados pelo caos na educação escolar. O que é oferecido por ambos seria antiquado, desinteressante, pouco sedutor. O sistema, como disse uma das pessoas entrevistadas, foi elaborado para atender às demandas da sociedade de vinte anos atrás, e foi incapaz de se adequar à nova realidade...
No meio desse tiroteio, fico sempre confuso. Aliás, muito confuso. Sou eu que estou errando, como professor, falhando na tarefa de despertar o interesse dos jovens? Ou são eles que não querem saber de nada mesmo, não importando o quanto me esforce? Concordo que o que se oferece para os jovens hoje é algo que destoa de seus desejos. Talvez possa ser classificado como “antiquado”. Por outro lado, não posso deixar de sentir a apatia dos estudantes, o descaso com a escola, a ausência de um ”sentido de escola” por parte deles. Para a maioria, a escola é apenas um lugar pra onde se vai encontrar os amigos, se divertir, sem compromisso nenhum com qualquer tipo de projeto.
Ninguém está oferecendo a eles um projeto... Nem os pais, nem nós professores. O que se oferece é a ilusão do mundo cintilante que aparece na TV, nos clipes, nas letras das músicas, nas revistas de celebridades. Ou a lógica do microcosmo religioso emitida dos púlpitos ocupados por estelionatários profissionais, pessoas com alergia de trabalho honesto.
Acho que a crise é muito maior do que supõe os que contrapõe alunos e professores. As mudanças que o mundo vem sofrendo nos últimos anos destruiram modelos de conduta, tanto do indivíduo para consigo mesmo quanto nas relações entre as pessoas. Romperam formas tradicionais de lidar com os jovens que, mesmo inadequadas ou injustas, funcionavam...
Lembrei do crime porque, às vezes, convivendo com os jovens, me bate uma incerteza grande, um medo do futuro... Não sei se isso é “coisa de velho”. Sei que os mais velhos reclamam dos jovens desde a antiguidade, fato registrado em textos que sobreviveram aos milênios. Mas quando os vejo pelas ruas, estropiando a língua portuguesa, expondo formas pouco ortodoxas de comportamento, me sinto acuado. Sinto que algo se perdeu. Espero estar errado. Espero estar sofrendo da mania dos velhos de criticarem a juventude...

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Chegando ao final (?)


Os estudantes ainda estão ocupados em preencher suas tabelas. Já têm mais segurança no uso dos computadores e na localização da informações. Alguns foram além do esperado, produzindo tabelas especiais ampliadas e coloridas, outros usaram seus conhecimentos em informática para fazer suas tabelas no editor de textos. Agora que o trabalho se aproxima do fim, brota a dúvida sobre como aproveitar os esforços feitos e criar um fechamento que dê sentido a tudo o que foi desenvolvido. É um momento crucial, que pode tanto salvar quanto perder tudo que fizemos.

Nessas horas percebo as lacunas de minha formação com mais força, e fica claro o grau de dificuldade envolvido na atividade pedagógica. Afinal, em que esse trabalho contribuiu para a formação desses jovens? Que elementos foram somados a suas essências em formação? Preciso encontrar uma forma de avaliar que etapas foram proveitosas e quais foram inúteis...

Na quinta-feira irei encerrar, com os segundos anos, o trabalho com as tabelas e, se houver tempo, iniciarei o uso dos textos. Não fui capaz de reproduzir os capítulos do livro ainda, como queria. Apenas a introdução está disponível, e é por aí que começarei. Uma cópia para cada aluno foi disponibilizada, graças aos esforços da coordenadora pedagógica, que driblou a pane do computador da sala dos professores e imprimiu o texto na secretaria (mas isso é segredo...)

Tentarei fazer uma leitura em conjunto, extraindo de cada parágrafo ideias, conceitos e informações. Um dos alunos espontaneamente se dispôs a digitalizar o resto do livro...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A religião nas salas de aula


O Ensino Religioso é ministrado aos alunos das oitavas séries das escolas estaduais de São Paulo. A carga horária é pequena, apenas uma aula de 50 minutos por semana. A disciplina é optativa. Religião na escola pode ser perigoso... Li esses tempos uma reportagem sobre o assunto, que trazia um levantamento do ensino de religião no Brasil, e relatava-se ali alguns absurdos, como o caso da professora que convertia os alunos para sua religião, comemorando o fato como “salvação” das crianças. O proselitismo é praxe e muitos estudantes, oriundos de famílias que seguem as religiões afro-brasileiras, se sentem discriminados e diminuídos, ao ponto de esconderem suas crenças para evitar a perseguição. Nesse caso, as aulas de Ensino Religioso acabam acirrando os problemas que deveriam atenuar.
Por se tratar de um ambiente frequentado por pessoas de diversas origens e culturas, as escolas deveriam ser ambientes laicos onde todas as diferenças fossem aceitas e respeitadas.
Na escola onde trabalho, o número de adeptos das religiões protestantes de origem pentecostal é alto, superando a média nacional. Como se trata de uma área rural, tem as mesmas características, para os fins de religião, que as periferias das grandes cidades. A presença dos templos pentecostais é maciça, ainda que sejam acanhados e simples. Percebe-se que, em muitos casos, o momento do culto e as atividades ligadas à religião são as únicas opções de sociabilização e entretenimento.
Para esse público, o importante é relativizar as crenças, deixar claro que existem muitas “verdades” quando se trata da religião. Combater o fundamentalismo é quase obrigatório. Para levantar essas questões, desenvolvi um currículo que aborda a história e as doutrinas das religiões de povos de todo o mundo. Sempre começo com as religiões orientais, mais exóticas para eles. Mais tarde, gasto um tempo longo tratando do islamismo, religião tão cercada de preconceitos.
No segundo semestre, passo a abordar as religiões presentes no Brasil. Costumo começar apresentando uma tabela com os dados colhidos pelo IBGE nos recenseamentos. É uma oportunidade para enxergar a diversidade religiosa do país. Fazemos também uma análise comparativa das estatísticas sobre religião no Brasil ao longo das últimas décadas, atividade que evidencia o crescimento das religiões pentecostais e neopentecostais, bem como do ateísmo, concomitantemente ao declínio do catolicismo.
Nesse semestre, atado à ideia de diminuir as aulas expositivas, retomei os trabalhos no Ensino Religioso propondo aos alunos que realizem uma pesquisa sobre dez das mais expressivas religiões brasileiras, oferecendo a eles alguns itens que devem ser respondidos ao longo do trabalho. Como sempre, reservo um espaço para abordar as religiões afro-brasileiras, que são as mais aviltadas em nosso país. Sinto que mesmo entre os professores, que deveriam reprimir qualquer traço de preconceito, ocorre uma aversão declarada às tradições afro-brasileiras...
Estamos na fase de coleta das informações, e como sempre, não posso contar com o funcionamento completo da sala de informática. Apenas um dos cinco grupos conseguiu acessar um site antes da pane costumeira. C’est la vie...
No início, após realizar a pesquisa que constatou que metade dos alunos vinha de famílias filiadas ao protestantismo, acreditei que iria enfrentar problemas por desenvolver essa abordagem multirreligiosa. Nos quatro anos em que venho ministrando a disciplina nesta escola ainda não tive nenhum atrito... E, ao que parece, as aulas tem contribuído para abrandar preconceitos e desmontar dogmas.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Trabalhando em silêncio...

Nas aulas de P.D., dei início ao assunto sugerido pelos gestores do programa: a Índia. Decidi abandonar as aulas expositivas, que parecem ter pouca eficiência. Li o texto do material didático e percebi que grande parte dele trata da história da Índia, ressaltando a sucessão de alterações que o território sofreu ao longo do tempo em função de dominações de diversos povos a que foi submetido. Arianos, persas, budistas, muçulmanos, europeus mercantilistas e neocolonialistas, todos deixaram suas marcas...
Escolhi iniciar a abordagem solicitando aos alunos que fizessem uma linha do tempo, a partir da leitura individual que fizeram do texto, retirando dele informações para compor uma sequência cronológica de acontecimentos. A atividade foi aceita e realizada por todos com dedicação.

Reformas...


É importante ressaltar que nossa escola está sofrendo uma reforma, e quando digo sofrendo quero me referir ao sentido literal da palavra. Os espaços estão tomados por materiais de construção e objetos removidos de seus locais originais. Os ruídos típicos de uma obra tomam conta do ambiente: o som de pás e enxadas misturando o cimento, o ensurdecedor impacto de marretas destruindo pisos e paredes. Os operários transitam pelos corredores com seus carrinhos de mão, cantando e assoviando melodias populares. Um deles tem um belo timbre de tenor e se dedica a hinos de louvor a Jesus... Começa a ocorrer uma interação social entre os estudantes e os trabalhadores da construção civil.
Devo acrescentar ainda, mesmo sob o risco de ser hostilizado por alguns de meus colegas, que os altos índices de faltas e afastamentos tem contribuído para a degeneração do ambiente escolar. Nesta semana, só para exemplificar, têm ocorrido faltas todos os dias, e é comum que dois ou mais professores ausentem-se simultaneamente. A consequência é a presença constante de alunos fora das salas de aula, circulando pelos corredores com seus pequenos aparelhos sonoros, conversando e rindo em altos brados. Estudo exige concentração, serenidade, paciência, e essas coisas são amigas do silêncio.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A incapacidade dos professores...

Lembrei de uma reportagem da Folha de São Paulo que trazia uma "pesquisa" mostrando que as salas de informática das escolas estão subutilizadas em função da incapacidade dos professores, que não saberiam empregá-las no seu trabalho... Parece piada! Uma sala de informática usada por centenas de pessoas que recebe apenas duas ou três manutenções anuais nunca vai estar em condições de servir como ferramenta no processo de ensino.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Executando os trabalhos


Continuando o trabalho com o 1ºB hoje. Tivemos duas aulas. A primeira foi consumida na elaboração da tabela nas folhas de sulfite. Estou descobrindo as lacunas de formação desses alunos. A idéia de organizar os dados em uma tabela surgiu na sala, por sugestão de um dos alunos. Antes de impor o uso da tabela, perguntei a eles qual seria a melhor forma de organizar os dados. Dois deles responderam. Um aventou a possibilidade de usar o formato de um questionário, e quando objetei dizendo que isso tomaria muito tempo e espaço, um outro veio com a ideia da tabela.

Foi interessante vê-los trabalhando com as réguas. Muitos não sabem como usa-las adequadamente, calcular os centímetros. Se não houver orientação, fazem o serviço a mão livre, sem qualquer cuidado. Tive que trabalhar alguns conceitos de Matemática... Calculamos na lousa o espaço que deveria ser reservado a cada linha e a cada coluna, de maneira a ocupar de maneira simétrica o espaço da folha e traçar o número necessário de quadros para conter as informações.


Na sala de informática, mais dificuldades. Apenas cinco computadores estão funcionando, um deles com falhas graves que obrigam o usuário a fechar o editor de textos a cada 90 segundos. Enervante... Não temos internet, então trouxe de casa, copiados num pen drive, os textos que servirão de fonte. É claro que eles não contemplam toda a necessidade da pesquisa, mas foi o qu pude arranjar. Vinte e nove alunos tentaram se organizar ao redor de 5 PC's. O que acaba acontecendo é que os dois mais bem posicionados localizam e anotam os dados, enquanto os demais copiam...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

De volta às aulas: descrição dos trabalhos

De maneira pouco planejada, decidi trabalhar um tema único em várias salas nas primeiras semanas de aula, neste retorno. Vou seguir esta diretriz antes de voltar ao Caderno do Aluno e seguir o currículo imposto pelo Estado. O tema escolhi no domingo, véspera da volta às aulas, quando li o caderno especial da Folha de São Paulo com perguntas e respostas sobre o vírus H1N1. Me lembrei do livro de Jeanette Farrell (“A Assustadora História das Pestes & Epidemias”), que li este ano, e que trata de 7 doenças infecto-contagiosas que assolaram os humanos no passado. A obra tem caráter interdisciplinar, conjugando conceitos da biologia com narrativa da história.
Para por a ideia em prática, usei meu velho método: o improviso. Defino um tema, mas não traço estratégias: na hora da aula penso no que fazer, sigo meu faro. Geralmente dá certo, mas o processo é falho porque me impede de fazer reflexões mais profundas e planejamentos mais eficientes. No entanto, sinto que quando planejo demais erro a mão...
Iniciei o trabalho de maneira semelhante com todas as turmas (7º e 8º do E.F., 1º e 2º anos do E.M.): comecei reunindo os estudantes em círculo, abrindo espaço para que expusessem o que já sabem sobre o assunto. Nesses momentos, sempre fico com a impressão de monopolizar demais a fala, fato que se agrava com a inibição natural deles. Apresentei o caderno do jornal, li alguns dados que eram pertinentes aos assuntos que surgiam. Em seguida, apresentei o livro de Farrell, destacando a ideia de que as epidemias sempre ocorreram, de que foram piores no passado porque não se conhecia suas causas.
Essa exposição inicial teve resultado variável, de acordo com as turmas. Em algumas senti que foi proveitosa, que houve participação e interesse. Infelizmente em outras notei que muitos não conseguiam acompanhar a discussão, por falta de interesse ou de capacidade mínima de compreensão. Como sempre, algumas pessoas estão mais interessadas em aproveitar as deixas pra fazer piadas (sem graça) do que em manter um diálogo coletivo...
A partir daí, minha estratégia variou de acordo com a série. Para as sétimas, oitavas e para o primeiro ano do E.M., sugeri uma pesquisa sobre as doenças citadas na obra de Farrell mais a Gripe Espanhola. Pus na lousa alguns ítens que deveriam ser elucidados no decorrer da pesquisa: agente causador, forma de contágio, história (doença no tempo e no espaço, trajetória da relação da doença entre os humanos, trajetória dos esforços de compreensão e combate a essas doenças), formas de prevenção e tratamento, existência ou não de vacina e os aspectos atuais dessas epidemias. Sugeri que organizassem esses dados numa tabela.
Imaginei realizar esta pesquisa na Internet, mas os computadores estão inoperantes. Recorri aos livros didáticos, onde pudemos encontrar informações básicas e insuficientes sobre quatro dessas epidemias.
Foi marcante perceber que a maioria dos estudantes, mesmo os do Ensino Médio, não dominam conceitos básicos. Não sabem como funciona o sistema imunológico, e portanto não compreendem o mecanismo de uma vacina. Tem um vocabulário muito pobre, e desconhecem o significado de termos simples, como “prevenir”. Não sabem o que é um vírus, o que é uma célula. É impressionante...
Selecionei os livros e entreguei aos alunos, sem dar indicações de onde encontrar os temas. A ideia era dar a eles a oportunidade de aprender a realizar uma pesquisa num livro. Sugeri que usassem o índice, mas dessa forma eles não foram capazes de encontrar nada. As turmas passaram 50 minutos folheando os livros sem nada encontrar. Logo abandonavam os índices e passavam a buscar a esmo, página por página, os textos. Olham as páginas em busca de partes dos termos, como “espanhola”, de gripe espanhola. Em geral, não encontravam nada. Tentei ajudar infomando as épocas das epidemias, o que não foi de grande utilidade. Quando um deles acidentalmente encontra informações úteis, compartilha com os colegas o número da página e logo todos estão com os livros abertos no mesmo lugar... Uma vez encontrada a fonte, não demonstram grandes dificuldade em responder aos ítens. No final, sempre procuram comparar suas respostas com a dos colegas e, em alguns casos, me procuram para confirmar se acertaram ou não.
Tiveram dificuldade também em construir a tabela nas folhas de papel sulfite que forneci. Alguns gastaram 50 minutos só nessa tarefa.
Nos 2º E.M. decidi reproduzir o texto e entregar cada capítulo a um grupo, para que leiam. Ainda não consegui imaginar uma forma proveitosa extrair contribuições...

terça-feira, 4 de agosto de 2009

e.e. cummings


nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

(Tradução: Augusto de Campos)

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Minha opinião sobre o Saresp...


A introdução do Saresp e de seus métodos de avaliação representa a chegada da lógica industrial-tecnocrática ao ambiente educacional. Traçam-se índices, estabelecem-se metas. O processo de ensino-aprendizagem é reduzido a cifras, congelado em gráficos. Cada indivúdio envolvido perde suas particularidades, deixa de ser singular, torna-se uma variável numa equação pré-fabricada.

A delicadeza e a sensibilidade essenciais na atividade educacional são eliminadas, porque não se enquadram na frieza da filosofia empresarial do novo método.

O pior de tudo isso é que essas modificações não foram introduzidas com a finalidade de conferir melhorias no processo de ensino. Não é com os alunos ou com a sociedade que o governo e seus técnicos estão preocupados. O que se busca é obter avanços em índices artificiais, proporcionando o capital político necessário para que certos setores possam se beneficiar.

Resta a nós, educadores e professores testemunhas deste triste espetáculo, explicitar essas constatações, pondo às claras o que todos pensam e sabem, mas não dizem.

sábado, 18 de julho de 2009

Itamar Assumpção - Fico Louco


Fico louco, faço cara de mau, falo o que me vem na cabeça

Não digo que com tudo isso eu fique legal

Espero que você não se esqueça

Espero ver você curtindo o reggae deste rock comigo

Grite forte, dê um jeito, cante, permaneça comigo

Fico louco, xingo, quebro o pau, só você me faz a cabeça

A gente sofre tanto, vive muito mal

Espero que você não se esqueça

Eu quero ouvir você dizer que gosta de viver em perigo

Considerando que eu não seja nada mais além de bandido

Fico louco, faço pelo sinal, me atiro ao chão de ponta cabeça

Me chamam de maluco, etc e tal, espero que você não se esqueça

Eu quero andar nas ruas da cidade agarrado contigo

Vivendo em pleno vapor, felicidade contigo

quinta-feira, 16 de julho de 2009



terça-feira, 7 de julho de 2009


segunda-feira, 6 de julho de 2009

Blue Jeans


terça-feira, 30 de junho de 2009

Trechos de Charles Bukowski


"Dou duas voltas no quarteirão, encontro 200 pessoas e não vejo nenhuma criatura humana. Olho na vitrine das lojas e não há nada que me interesse. No entanto, tudo tem preço. Uma guitarra, ora, porra, pra que me serve uma coisa dessas? Só se for pra tacar fogo. Toca-discos, tevê, rádio. Tralha inútil. Bugiganga imprestável. Um troço pra embrutecer o cérebro. Como soco com luva vermelha de 200 gramas. Popt. Te derruba no chão."

"...sabia que tinha alguma coisa fora do lugar em mim. Eu era uma soma de todos os erros: bebia, era preguiçoso, não tinha um deus, idéias, ideais, nem me preocupava com política. Eu estava ancorado no nada, uma espécie de não-ser. E aceitava isso. Eu estava longe de ser uma pessoa interessante. Não queria ser uma pessoa interessante, dava muito trabalho. Eu queria mesmo um espaço sossegado e obscuro pra viver a minha solidão. Por outro lado, de porre, eu abria o berreiro, pirava, queria tudo e não conseguia nada. Um tipo de comportamento não se casava com o outro. Pouco me importava."

" conseguir vencer através de esforços é ideologia de caipira"

"Quando bebemos, o mundo continua a existir lá fora, mas não está nos agarrando pelo pescoço"

"Somos finos como papel. Existimos por acaso entre as percentagens, temporariamente. E esta é a melhor e a pior parte, o fator temporal. E não há nada que se possa fazer sobre isso. Você pode sentar sentar no topo de uma montanha e meditar por décadas e nada vai mudar. Você pode mudar a si mesmo para se aceitável, mas talvez isso também esteja errado."

"A ficção é a realidade melhorada."

"os esquilos foram lá na minha casa."
"é mesmo?"
"é."
"esquilos?"
"esquilos!"
"e eles eram muitos?"
"eram muitos."
"o que que aconteceu?"
"eles falaram comigo."
"o que que eles disseram?"
"eles perguntaram se eu tava a fim..."
"o que que eles disseram?"
"eles perguntaram se eu tava a fim de uma dose."
"quê? que que você disse?"
"eu disse - 'eles perguntaram se eu tava a fim de uma dose'."
"e o que que você disse?"
"eu disse 'não'."
"e o que os esquilos disseram?"
"eles disseram, 'ENTÃO TÁ, TUDO BEM!'"
"nenhum homem pode jamais chamar uma mulher de sua. a gente nunca é dono delas, só tomamos de empréstimo por algum tempo."
"encontrar uma verdade pela primeira vez pode ser uma experiência muito divertida. Quando a verdade de outra pessoa fecha com a sua, e parece que aquilo foi escrito só para você, é maravilhoso."
"[...] Esse é o problema com a bebida, pensava, enquanto enchia o copo. Se acontece uma coisa ruim, você bebe pra esquecer; se acontece uma coisa boa, você bebe pra comemorar; se não acontece nada, você bebe pra que aconteça alguma coisa."