A autora
Maria Izilda Santos de Matos possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1978) e doutorado em História pela Universidade de São Paulo (1991), tem pós doutorado Université Lumiere Lyon 2/França (1997). Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, colaboradora da Universidade Estadual do Ceará e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Participou de vários outros projetos de pesquisa, é pesquisadora 1do CNPq. Em 1994 recebeu o prêmio SESI-CNI de Teses Universitárias, com o trabalho Trama e Poder, em que estuda as indústrias paulistas, entre 1890-1934. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: historia, música, gênero, historia das mulheres e cidade. Entre suas obras destacam-se: Melodia e Sintonia: o masculino, o feminino e suas relações em Lupicínio Rodrigues. RJ, 2ª ed., Bertrand Brasil, 1999. Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50. RJ: Bertrand Brasil,2.ed,2002. O imaginário em debate. SP, Olho d'água, 1998. A Cidade em debate. SP, Olho D'água, 1999. Por uma história das mulheres, SP, EDUSC, 2000. Meu lar é o botequim, SP, Cia Editora Nacional, 2.ed., 2002. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho, SP, EDUSC, 2002. Ancora de Emoções, Bauru, EDUSC, 2005. Gênero e Terceiro Setor. Ed. Catavento, 2005. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo de Adoniran Barbosa. Bauru, EDUSC, 2008. História e Deslocamentos: os portugueses. Bauru/Porto, EDUSC/CEPESE, 2008[1].
A obra
“Âncora de Emoções” é uma obra que cruza dois universos: o do pensamento e discurso médicos dos fins do século XIX e início do XX, e o dos compositores de músicas populares do Brasil das décadas de 1930, 1940 e 1950. O objetivo desse encontro é estabelecer discussões sobre a questão dos gêneros, suas relações e conflitos. A análise desses dois campos, aparentemente irreconciliáveis, nos permite encontrar surpreendentes similaridades, assimilações e paralelismos. Parte do discurso médico foi absorvida e reproduzida nas noções de masculino e feminino expressas nas letras das canções, mesmo nas produzidas por artistas do sexo feminino, como Dolores Duran, o que mostra a penetração que tais idéias tinham na sociedade.
Além disso, a obra traz um conjunto de reflexões sobre os novos campos de análise histórica, bem como das novas técnicas de investigação, novas abordagens, novas metodologias e conceitos.
Outras histórias
A produção historiográfica se modifica ao longo do tempo, caminhando lado a lado com as transformações mais gerais ocorridas na sociedade e, principalmente, na forma de pensar e entender o Universo. O século XX foi pródigo em revoluções de paradigmas, levando a um profundo processo de reconstrução e revisão de mentalidades. A História, como “filha de seu tempo”, não passou incólume.
Apesar de algumas obras já contrariarem essa generalização, a produção historiográfica anterior ao século XX resumia-se a algo produzido dentro de uma determinada perspectiva, qual seja, a do homem de elite europeu. Tudo o que diferia desse escopo era visto como distorção, como exceção. Com o advento de novas correntes de análise, outras possibilidades passaram a fazer parte do trabalho do historiador. Descobriu-se a historicidade de todas as coisas humanas, de sentimentos a sensações, de pensamentos a técnicas. Dentro desse grande movimento, abriu-se espaço para os estudos voltados às minorias, às mentalidades, e, finalmente, análises visando as relações entre homens e mulheres ao longo do tempo, delimitando o campo de gênero. Os historiadores abriram os olhos para agentes históricos que estavam relegados à obscuridade nos escritos, mas que tinham importância capital na realidade, e assim a produção historiográfica ganhou profundidade e consistência.
Música: caixa de ressonância das sensibilidades
A produção musical de um determinado período, se analisada da maneira correta, pode servir como uma poderosa fonte de conhecimentos acerca de aspectos pouco abordados em outros tipos de documentos: a sensibilidade, a emoção, os padrões morais. É o público quem determina o que é sucesso ou não. É ele que mostra desejo por certas temáticas e rejeita outras. Dessa forma, muito se pode conhecer da sensibilidade de uma época através da análise das canções que estavam na “boca do povo”.
Mulheres e o discurso médico
Nos fins do século XIX e início do XX o Brasil passava por grandes transformações. Em processos que ocorriam concomitantemente, a República se instalava, a urbanização e a industrialização avançavam; a ciência ganhou espaço, e a medicina ganhou lugar de destaque. Socialmente, a burguesia ascendia e buscava normatizar a sociedade de acordo com seus ideais. Nessa trajetória, certos comportamentos foram condenados, outros foram elevados ao patamar de modelos.
O discurso médico da época, apesar de apresentar divergências e contradições, era relativamente convergente em alguns pontos, especialmente na delimitação das condutas ideais para homens e mulheres.
No que se refere ao feminino, os médicos estabeleceram dois arquétipos diametralmente opostos. De um lado, apresentavam o modelo mãe-esposa: frágil, assexuada, confinada ao mundo doméstico, com funções meramente reprodutivas. A esta se contrapunha a degenerada, mulher pública, sexuada, identificada com a prostituição. Os médicos buscavam conformar as mulheres com o primeiro modelo, apresentando argumentos “científicos” para tal imposição.
Do ponto de vista das enfermidades, os médicos desenvolveram um tratamento distinto para homens e mulheres. O útero era visto como a raiz de todos os males, e qualquer desequilíbrio nesse órgão levaria a patologias em outras áreas do corpo. Muitas vezes, os tratamentos tinham caráter punitivo, com o fim de penalizar a transgressão dos modelos e padrões impostos.
Perfil masculino: definição pelo discurso médico
Assim como definiu padrões positivos e negativos para a feminilidade, o discurso médico delimitou modelos também para o homem. O homem ideal era o marido-provedor, que deveria estar sempre apto para o trabalho, evitando hábitos e ambientes que dissipassem suas energias.
O alcoolismo era visto como fator esvaziante do poder do homem, capaz de impedi-lo de cumprir suas obrigações. O combate a esse mal e a tudo que a ele se associa (vida noturna, jogos, boemia), toma espaço central no discurso médico sobre a masculinidade.
A historicidade das sensibilidades
Com a abertura propiciada pela expansão do campo historiográfico, lançou-se luz sobre um aspecto pouco estudado até então, as sensibilidades. Percebeu-se que comportamentos, valores e sentimentos são elementos contruídos socialmente e que, portanto, variam ao longo do tempo. São, dessa forma, passíveis de análises históricas.
Copacabana nos anos 1950: território da boemia
Nos anos 1950, graças a obras de urbanização, a remota praia de Copacabana foi integrada à cidade do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o bairro tornou-se o ponto mais badalado da noite carioca. Avenidas foram traçadas ao longo da linha da praia, as famosas calçadas de pedra portuguesa facilitaram o caminhar dos pedestres. Um número crescente de automóveis passou a circular pela região.
Apesar da tomada de importância da sociabilidade de praia, onde corpos eram exibidos e admirados, a essência do bairro aparecia mais nitidamente no território da noite. Antônio Maria, cronista desse processo, descreveu a profusão de tipos que se cruzavam nas boates, cabarés, cassinos e casas de espetáculo: políticos, artistas, malandros, boêmios profissionais, homens de negócio. Nesses cenários, emergem novas relações entre os gêneros.
Apesar de ainda resistir o velho “espírito de bairro”, calcado na pequena solidariedade e na plena vigilância, surgia um modelo “moderno” de conviver em sociedade, uma certa impessoalidade nas relações, um certo individualismo privativista.
Copacabana acabou por sofrer um inchaço na sua vida boêmia a partir do governo do Marechal Dutra, quando as autoridades passaram a atacar redutos da malandragem em outras áreas da cidade, como a Lapa e a Praça Onze. Desalojados de seus locus costumeiros, esses boêmios se “transferiram” para Copacabana, o último bastião da vida noturna carioca.
Dolores Duran: intérprete das sensibilidades femininas
Autodidata, oriunda das camadas menos privilegiadas, Adiléia Silva da Rocha ficaria conhecida na noite carioca como Dolores Duran, a artista que deu voz à alma feminina. Após os anos iniciais como intérprete, Duran deu início, nos anos 50, a uma fase em que assumiu sua veia compositora. Nesse momento, afloraram em suas letras os sentimentos próprios das mulheres da época, uma vívida contradição entre os valores modernos em ascensão e os arcaísmos persistentes na relação entre os gêneros.
Com seu discurso coloquial, Dolores captava os “instantâneos do dia-a-dia”, flagrando “dor, saudades, remorsos e outros sentimentos”. O amor, na visão da artista, é algo doloroso, que condena aquele que o sente a sofrimentos agudos. A ausência, o abandono e a solidão são elementos onipresentes no seu temário. O sentimento de culpa é assumido pela entidade feminina nas canções, o que mostra a internalização, por parte das mulheres, da culpabilidade feminina imposta pelo discurso masculino.
Perfis de gênero em Lupicínio Rodrigues
Um dos poucos artistas fora do eixo Rio-São Paulo a se tornar popular neste período, o gaúcho Lupicínio Rodrigues compunha fortemente influenciado pelo contexto boêmio, pela cultura portenha, pelo tango e pelo bolero. Suas letras acertavam em cheio o gosto popular. Contava o que vivia, e por isso acabou por traduzir com propriedade as características do cotidiano boêmio, suas “experiências, situações e emoções”.
A mulher encontra-se no centro das preocupações na obra de Lupicínio. Segundo ele, somente as que o fizeram sofrer lhe traziam dinheiro, uma vez que inspiravam canções pungentes e repletas de emoção. Dessa forma, é a mulher infiel, perversa e traidora que transparece em seu discurso. Predicados positivos em relação às mulheres aparecem de raro em raro, mais como um modelo a ser seguido. Para ele, a mulher ideal é honesta, casta, fiel, sincera e obediente.
Em parte, a visão de Lupicínio Rodrigues incorpora o discurso médico, reforçando a dicitomia entre a mulher pública-sexuada e a privada-assexuada.
O homem, em geral, é retratado como sincero e amoroso. Nas relações entre os gêneros, o homem é superior; é racinal e corajoso, e o sentimentalismo lhe é vetado. Em contraste com a algoz feminina, é vítima de seus sentimentos.
O Ébrio: Vicente Celestino e o perfil do etilista
Filho de imigrantes italianos, Vicente Celestino sempre apresentou pendores artísticos. Em sua extensa carreira, desempenhou as mais variadas funções artísticas, destacando-se como cantor, compositor e ator. O auge de seu sucesso ocorreu nas décadas de 1930, 1940 e 1950. O surgimento de novas correntes culturais, mais modernas, colocou-o num relativo ostracismo, juntamente com outros artistas de sua geração.
Num cenário urbano marcado pela industrialização e pelo trabalho, ganhou destaque nas produções cultirais a ênfase nos locais de descontração e lazer, uma busca pela fuga das pressões do dia-a-dia.
No temário de Vicente Celestino, o ébrio é uma constante. Em geral, trata-se do homem que sofreu por amor, foi traído pela mulher amada e refugiou-se na bebida. À mulher, mais uma vez, é reservado o papel de “semente do mal”, propensa à infidelidade e ao delito amoroso.
Às vezes o ébrio aparece como um pobre coitado, inofensivo e inerte, como em “O Ébrio”, grande sucesso de 1936. Em outros casos, é furioso e homicida, que em crise de ciúme alcoólico faz “justiça com as próprias mãos” e dá cabo à vida da infiel, como na canção “Matei”, de 1940.
Contribuições da Obra: considerações críticas
A obra de Maria Izilda Santos de Matos contribui para ampliar em muito as reflexões sobre diversas discussões historiográficas. Em primeiro lugar, estabelece uma clara delimitação das novas formas de se abordar os problemas históricos. Reafirma a emergência de novos campos de investigação, especialmente o de gênero, categoria de análise que tem permitido uma revisão da historiografia tradicional com grande benefício para um entendimento mais fiel da trajetória humana.
Mais que isso, a obra apresenta um método bastante inovador de análise, buscando em fontes pouco ortodoxas respostas para questionamentos complexos. Compreender o processo histórico acerca das sensibilidades e dos sentimentos é um desafio para qualquer historiador, e a autora demonstra sagacidade ao se valer das letras das canções populares para encontrar pistas sobre esse problema. Com relação ao discurso médico, a autora consegue obter um retrato da mentalidade da época a respeito dos papéis ideais determinados para os gêneros. Demonstra como a “ciência” é posta a serviço dos interesses de determinados grupos, que através dela almejam impor seus modelos para a sociedade em geral. Mostra ainda a maneira pela qual o gênero masculino busca justificativas “racionais” que deem embasamento a sua dominação sobre as mulheres.
Em suma, a obra nos permite aprofundar as discussões sobre essas questões extremamente pertinentes, tão caras aos estudos mais modernos da historiografia.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de Emoções – Corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, SP: Edusc, 2005.
[1]Fonte: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4723167J4 acessado em 23 de junho de 2009, às 20:43h.
Maria Izilda Santos de Matos possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1978) e doutorado em História pela Universidade de São Paulo (1991), tem pós doutorado Université Lumiere Lyon 2/França (1997). Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, colaboradora da Universidade Estadual do Ceará e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Participou de vários outros projetos de pesquisa, é pesquisadora 1do CNPq. Em 1994 recebeu o prêmio SESI-CNI de Teses Universitárias, com o trabalho Trama e Poder, em que estuda as indústrias paulistas, entre 1890-1934. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: historia, música, gênero, historia das mulheres e cidade. Entre suas obras destacam-se: Melodia e Sintonia: o masculino, o feminino e suas relações em Lupicínio Rodrigues. RJ, 2ª ed., Bertrand Brasil, 1999. Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50. RJ: Bertrand Brasil,2.ed,2002. O imaginário em debate. SP, Olho d'água, 1998. A Cidade em debate. SP, Olho D'água, 1999. Por uma história das mulheres, SP, EDUSC, 2000. Meu lar é o botequim, SP, Cia Editora Nacional, 2.ed., 2002. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho, SP, EDUSC, 2002. Ancora de Emoções, Bauru, EDUSC, 2005. Gênero e Terceiro Setor. Ed. Catavento, 2005. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo de Adoniran Barbosa. Bauru, EDUSC, 2008. História e Deslocamentos: os portugueses. Bauru/Porto, EDUSC/CEPESE, 2008[1].
A obra
“Âncora de Emoções” é uma obra que cruza dois universos: o do pensamento e discurso médicos dos fins do século XIX e início do XX, e o dos compositores de músicas populares do Brasil das décadas de 1930, 1940 e 1950. O objetivo desse encontro é estabelecer discussões sobre a questão dos gêneros, suas relações e conflitos. A análise desses dois campos, aparentemente irreconciliáveis, nos permite encontrar surpreendentes similaridades, assimilações e paralelismos. Parte do discurso médico foi absorvida e reproduzida nas noções de masculino e feminino expressas nas letras das canções, mesmo nas produzidas por artistas do sexo feminino, como Dolores Duran, o que mostra a penetração que tais idéias tinham na sociedade.
Além disso, a obra traz um conjunto de reflexões sobre os novos campos de análise histórica, bem como das novas técnicas de investigação, novas abordagens, novas metodologias e conceitos.
Outras histórias
A produção historiográfica se modifica ao longo do tempo, caminhando lado a lado com as transformações mais gerais ocorridas na sociedade e, principalmente, na forma de pensar e entender o Universo. O século XX foi pródigo em revoluções de paradigmas, levando a um profundo processo de reconstrução e revisão de mentalidades. A História, como “filha de seu tempo”, não passou incólume.
Apesar de algumas obras já contrariarem essa generalização, a produção historiográfica anterior ao século XX resumia-se a algo produzido dentro de uma determinada perspectiva, qual seja, a do homem de elite europeu. Tudo o que diferia desse escopo era visto como distorção, como exceção. Com o advento de novas correntes de análise, outras possibilidades passaram a fazer parte do trabalho do historiador. Descobriu-se a historicidade de todas as coisas humanas, de sentimentos a sensações, de pensamentos a técnicas. Dentro desse grande movimento, abriu-se espaço para os estudos voltados às minorias, às mentalidades, e, finalmente, análises visando as relações entre homens e mulheres ao longo do tempo, delimitando o campo de gênero. Os historiadores abriram os olhos para agentes históricos que estavam relegados à obscuridade nos escritos, mas que tinham importância capital na realidade, e assim a produção historiográfica ganhou profundidade e consistência.
Música: caixa de ressonância das sensibilidades
A produção musical de um determinado período, se analisada da maneira correta, pode servir como uma poderosa fonte de conhecimentos acerca de aspectos pouco abordados em outros tipos de documentos: a sensibilidade, a emoção, os padrões morais. É o público quem determina o que é sucesso ou não. É ele que mostra desejo por certas temáticas e rejeita outras. Dessa forma, muito se pode conhecer da sensibilidade de uma época através da análise das canções que estavam na “boca do povo”.
Mulheres e o discurso médico
Nos fins do século XIX e início do XX o Brasil passava por grandes transformações. Em processos que ocorriam concomitantemente, a República se instalava, a urbanização e a industrialização avançavam; a ciência ganhou espaço, e a medicina ganhou lugar de destaque. Socialmente, a burguesia ascendia e buscava normatizar a sociedade de acordo com seus ideais. Nessa trajetória, certos comportamentos foram condenados, outros foram elevados ao patamar de modelos.
O discurso médico da época, apesar de apresentar divergências e contradições, era relativamente convergente em alguns pontos, especialmente na delimitação das condutas ideais para homens e mulheres.
No que se refere ao feminino, os médicos estabeleceram dois arquétipos diametralmente opostos. De um lado, apresentavam o modelo mãe-esposa: frágil, assexuada, confinada ao mundo doméstico, com funções meramente reprodutivas. A esta se contrapunha a degenerada, mulher pública, sexuada, identificada com a prostituição. Os médicos buscavam conformar as mulheres com o primeiro modelo, apresentando argumentos “científicos” para tal imposição.
Do ponto de vista das enfermidades, os médicos desenvolveram um tratamento distinto para homens e mulheres. O útero era visto como a raiz de todos os males, e qualquer desequilíbrio nesse órgão levaria a patologias em outras áreas do corpo. Muitas vezes, os tratamentos tinham caráter punitivo, com o fim de penalizar a transgressão dos modelos e padrões impostos.
Perfil masculino: definição pelo discurso médico
Assim como definiu padrões positivos e negativos para a feminilidade, o discurso médico delimitou modelos também para o homem. O homem ideal era o marido-provedor, que deveria estar sempre apto para o trabalho, evitando hábitos e ambientes que dissipassem suas energias.
O alcoolismo era visto como fator esvaziante do poder do homem, capaz de impedi-lo de cumprir suas obrigações. O combate a esse mal e a tudo que a ele se associa (vida noturna, jogos, boemia), toma espaço central no discurso médico sobre a masculinidade.
A historicidade das sensibilidades
Com a abertura propiciada pela expansão do campo historiográfico, lançou-se luz sobre um aspecto pouco estudado até então, as sensibilidades. Percebeu-se que comportamentos, valores e sentimentos são elementos contruídos socialmente e que, portanto, variam ao longo do tempo. São, dessa forma, passíveis de análises históricas.
Copacabana nos anos 1950: território da boemia
Nos anos 1950, graças a obras de urbanização, a remota praia de Copacabana foi integrada à cidade do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o bairro tornou-se o ponto mais badalado da noite carioca. Avenidas foram traçadas ao longo da linha da praia, as famosas calçadas de pedra portuguesa facilitaram o caminhar dos pedestres. Um número crescente de automóveis passou a circular pela região.
Apesar da tomada de importância da sociabilidade de praia, onde corpos eram exibidos e admirados, a essência do bairro aparecia mais nitidamente no território da noite. Antônio Maria, cronista desse processo, descreveu a profusão de tipos que se cruzavam nas boates, cabarés, cassinos e casas de espetáculo: políticos, artistas, malandros, boêmios profissionais, homens de negócio. Nesses cenários, emergem novas relações entre os gêneros.
Apesar de ainda resistir o velho “espírito de bairro”, calcado na pequena solidariedade e na plena vigilância, surgia um modelo “moderno” de conviver em sociedade, uma certa impessoalidade nas relações, um certo individualismo privativista.
Copacabana acabou por sofrer um inchaço na sua vida boêmia a partir do governo do Marechal Dutra, quando as autoridades passaram a atacar redutos da malandragem em outras áreas da cidade, como a Lapa e a Praça Onze. Desalojados de seus locus costumeiros, esses boêmios se “transferiram” para Copacabana, o último bastião da vida noturna carioca.
Dolores Duran: intérprete das sensibilidades femininas
Autodidata, oriunda das camadas menos privilegiadas, Adiléia Silva da Rocha ficaria conhecida na noite carioca como Dolores Duran, a artista que deu voz à alma feminina. Após os anos iniciais como intérprete, Duran deu início, nos anos 50, a uma fase em que assumiu sua veia compositora. Nesse momento, afloraram em suas letras os sentimentos próprios das mulheres da época, uma vívida contradição entre os valores modernos em ascensão e os arcaísmos persistentes na relação entre os gêneros.
Com seu discurso coloquial, Dolores captava os “instantâneos do dia-a-dia”, flagrando “dor, saudades, remorsos e outros sentimentos”. O amor, na visão da artista, é algo doloroso, que condena aquele que o sente a sofrimentos agudos. A ausência, o abandono e a solidão são elementos onipresentes no seu temário. O sentimento de culpa é assumido pela entidade feminina nas canções, o que mostra a internalização, por parte das mulheres, da culpabilidade feminina imposta pelo discurso masculino.
Perfis de gênero em Lupicínio Rodrigues
Um dos poucos artistas fora do eixo Rio-São Paulo a se tornar popular neste período, o gaúcho Lupicínio Rodrigues compunha fortemente influenciado pelo contexto boêmio, pela cultura portenha, pelo tango e pelo bolero. Suas letras acertavam em cheio o gosto popular. Contava o que vivia, e por isso acabou por traduzir com propriedade as características do cotidiano boêmio, suas “experiências, situações e emoções”.
A mulher encontra-se no centro das preocupações na obra de Lupicínio. Segundo ele, somente as que o fizeram sofrer lhe traziam dinheiro, uma vez que inspiravam canções pungentes e repletas de emoção. Dessa forma, é a mulher infiel, perversa e traidora que transparece em seu discurso. Predicados positivos em relação às mulheres aparecem de raro em raro, mais como um modelo a ser seguido. Para ele, a mulher ideal é honesta, casta, fiel, sincera e obediente.
Em parte, a visão de Lupicínio Rodrigues incorpora o discurso médico, reforçando a dicitomia entre a mulher pública-sexuada e a privada-assexuada.
O homem, em geral, é retratado como sincero e amoroso. Nas relações entre os gêneros, o homem é superior; é racinal e corajoso, e o sentimentalismo lhe é vetado. Em contraste com a algoz feminina, é vítima de seus sentimentos.
O Ébrio: Vicente Celestino e o perfil do etilista
Filho de imigrantes italianos, Vicente Celestino sempre apresentou pendores artísticos. Em sua extensa carreira, desempenhou as mais variadas funções artísticas, destacando-se como cantor, compositor e ator. O auge de seu sucesso ocorreu nas décadas de 1930, 1940 e 1950. O surgimento de novas correntes culturais, mais modernas, colocou-o num relativo ostracismo, juntamente com outros artistas de sua geração.
Num cenário urbano marcado pela industrialização e pelo trabalho, ganhou destaque nas produções cultirais a ênfase nos locais de descontração e lazer, uma busca pela fuga das pressões do dia-a-dia.
No temário de Vicente Celestino, o ébrio é uma constante. Em geral, trata-se do homem que sofreu por amor, foi traído pela mulher amada e refugiou-se na bebida. À mulher, mais uma vez, é reservado o papel de “semente do mal”, propensa à infidelidade e ao delito amoroso.
Às vezes o ébrio aparece como um pobre coitado, inofensivo e inerte, como em “O Ébrio”, grande sucesso de 1936. Em outros casos, é furioso e homicida, que em crise de ciúme alcoólico faz “justiça com as próprias mãos” e dá cabo à vida da infiel, como na canção “Matei”, de 1940.
Contribuições da Obra: considerações críticas
A obra de Maria Izilda Santos de Matos contribui para ampliar em muito as reflexões sobre diversas discussões historiográficas. Em primeiro lugar, estabelece uma clara delimitação das novas formas de se abordar os problemas históricos. Reafirma a emergência de novos campos de investigação, especialmente o de gênero, categoria de análise que tem permitido uma revisão da historiografia tradicional com grande benefício para um entendimento mais fiel da trajetória humana.
Mais que isso, a obra apresenta um método bastante inovador de análise, buscando em fontes pouco ortodoxas respostas para questionamentos complexos. Compreender o processo histórico acerca das sensibilidades e dos sentimentos é um desafio para qualquer historiador, e a autora demonstra sagacidade ao se valer das letras das canções populares para encontrar pistas sobre esse problema. Com relação ao discurso médico, a autora consegue obter um retrato da mentalidade da época a respeito dos papéis ideais determinados para os gêneros. Demonstra como a “ciência” é posta a serviço dos interesses de determinados grupos, que através dela almejam impor seus modelos para a sociedade em geral. Mostra ainda a maneira pela qual o gênero masculino busca justificativas “racionais” que deem embasamento a sua dominação sobre as mulheres.
Em suma, a obra nos permite aprofundar as discussões sobre essas questões extremamente pertinentes, tão caras aos estudos mais modernos da historiografia.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de Emoções – Corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, SP: Edusc, 2005.
[1]Fonte: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4723167J4 acessado em 23 de junho de 2009, às 20:43h.
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