“O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central.
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passamos por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, torna-se preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, "correres" de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos "avenida".
As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o "toque de reunir": "Mimoso"! É um bode que a dona chama. "Sereia"! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus — tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.
Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro, Um "belchior" de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.
Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.
Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais.
Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os caminhos são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que poderiam ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no campo-santo municipal. Quem passa por aqueles caminhos, quase sempre topa com um. Os de "anjos" são carregados por moças e os destas também pelas da sua idade. Não há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que para os bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de branco, carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando uma poeira de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão aos saltos, para evitar atoleiros e poças d'água.
Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há sempre uma modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros procuram roupas escuras, se não pretas; mas, às vezes, surge o escândalo da sua calça branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam, "quebram o corpo", isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado.
Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a seu destino. Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía da venda, olhava o caixão e dizia: Eles que estão lá dentro, que o carreguem. Chegaram ao cemitério e deram por falta do defunto. "Mas não era você que o vinha carregando?" — perguntava um. "Era você" — respondia o outro; e, assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansadíssimos e semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o camarada falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E o pobre homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos camaradas levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois, o resto do caminho para a última morada, ele a fez graças aos esforços de dois burros, que estavam habituados a puxar carga bem diferente e muito menos respeitável.
Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.
Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o Estado do Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a parte. O interior dos carros está apinhado e os vãos entre eles como que trazem quase a metade da lotação de um deles. Muitos viajam com um pé num carro e o outro no imediato, agarrando-se com as mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade sentados na escada de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais ousados, dependurados no corrimão de ferro, com um único pé no estribo do veículo.
Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário.
O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras;
nas casas, é raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à entrada.
Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d'água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na avenida Central.
O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica...”
Colhido em http://www.culturabrasil.pro.br/zip/claradosanjos.pdf
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