Os seres humanos se diferenciam das
outras formas de vida pela capacidade de criar cultura, ou seja, de conferir significado ao universo ao seu redor,
o que lhes permite atuar conscientemente na transformação do mundo. A cultura, por
sua vez, se constitui necessariamente através da linguagem, que é a ferramenta básica com a qual nos relacionamos
com o universo e com os outros seres humanos. Durante muito tempo, um grupo
minoritário foi cerceado do direito a uma linguagem própria: as pessoas surdas.
A trajetória das pessoas surdas ao
longo do tempo foi difícil e dolorosa. No passado, elas foram marginalizadas,
vistas como portadoras de maldições divinas, como criaturas não dotadas de
almas, segregadas do resto da sociedade, mantidas enclausuradas nas casas de
familiares, em hospitais e instituições especiais, empregadas em funções
subalternas e degradantes, classificadas como intelectualmente incapazes e
inferiores aos ouvintes. Receberam apelidos e rótulos ridicularizantes e
diminutivos: “mudinho”, “idiota”, “deficiente”.
Sua história foi marcada por
avanços e retrocessos. Após séculos de esquecimento e exclusão, experimentaram
o início de uma sistematização educacional no final da Idade Média. Entre os
séculos XV e XIX, em partes diferentes da Europa e da América, estudiosos se
dedicaram a observar o processo educacional dos surdos, criando e aperfeiçoando
sistemas de sinais, contribuindo para a formação de uma cultura própria.
Concluiu-se, finalmente, que os surdos tinham a mesma capacidade de aprendizado
que os ouvintes, e que as linguagens de sinais eram formas legítimas e
eficientes de atingir o desenvolvimento das pessoas surdas.
Todo esse florescimento foi
abortado no final do século XIX quando, no Congresso Internacional de Milão
(1880), condenou-se o uso dos sinais como forma de comunicação e passou-se a
insistir no oralismo como meio mais adequado de comunicação das pessoas surdas.
Essa decisão tornou clandestina a linguagem de sinais, sufocando a cultura das
pessoas surdas, que deveriam se integrar à sociedade circundante, tentando
apagar suas diferenças o máximo possível. Seguiu-se quase um século de virtual
proibição da linguagem dos sinais. A retomada ocorreu a partir das décadas de
1960 e 70, na esteira da grande revolução cultural que abalou o Ocidente.
Especialistas e surdos passaram a questionar as antigas concepções oralistas e
assimilacionistas, reivindicando o direito a uma cultura própria. Reunidos em
associações e grupos organizados, os surdos lutaram, nas últimas décadas, para
se inscrever na categoria de “minoria”, somando-se assim a mulheres, negros,
homossexuais, trabalhadores, entre outros, com o objetivo de serem reconhecidos
e respeitados. Não queriam mais ser vistos como deficientes, mas como diferentes.
É nesse sentido que a lei nº 10.436
deve ser compreendida e analisada. Junto com o decreto nº 5626 ela representa
não só a aceitação oficial da Linguagem Brasileira de Sinais como legítima
forma de expressão e comunicação, mas também sinaliza o reconhecimento da
existência de uma cultura própria das pessoas surdas. Além disso a lei e,
principalmente, o decreto, viabilizam a criação de mecanismos que buscam
assegurar o acesso das pessoas surdas aos serviços de educação e saúde, e que
lhes abram as portas do mercado de trabalho. A LIBRAS, finalmente, foi elevada
à categoria de língua, um “sistema linguístico de natureza visual-motora, com
estrutura gramatical própria”, capaz de realizar a “transmissão de ideias e
fatos”.
Em 2012 se comemoram dez anos da
promulgação da lei nº 10.436. É um marco que deve ser festejado, mas que também
deve ser aproveitado como momento de reflexão. Uma das infelizes
características de nosso país é a existência de leis que “não pegam”, que não
se traduzem em modificações reais nas práticas do cotidiano. É o caso de
pensarmos nas condições atuais da comunidade das pessoas surdas do país e
analisarmos se a lei gerou benefícios práticos, se significou modificações
positivas nas suas vidas e nas de seus familiares. Uma lição que a história nos
ensina é que as conquistas das minorias, dos oprimidos, dos esquecidos e dos
marginalizados acontecem não pela benevolência dos poderosos, mas pela luta
constante, pela organização e união, pela insistência e perseverança daqueles
que desejam conquistar mudanças na sociedade. Nesse momento celebrativo é oportuno
realizar um balanço das transformações experimentadas nesta última década,
comparando-se a situação atual com a anterior. Desse diálogo deve surgir a
percepção dos pontos positivos da lei e das áreas em que não houve ainda os
avanços necessários. Essa reflexão deve resultar em propostas de correção de
rumos e na adoção de estratégias de luta para que se alcancem os objetivos
coletivos da comunidade das pessoas surdas.
DRC
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