segunda-feira, 4 de junho de 2012

Não somos deficientes, somos diferentes: a trajetória da cultura e da linguagem das pessoas surdas e os dez anos da lei nº 10.436.

 

 

Os seres humanos se diferenciam das outras formas de vida pela capacidade de criar cultura, ou seja, de conferir significado ao universo ao seu redor, o que lhes permite atuar conscientemente na transformação do mundo. A cultura, por sua vez, se constitui necessariamente através da linguagem, que é a ferramenta básica com a qual nos relacionamos com o universo e com os outros seres humanos. Durante muito tempo, um grupo minoritário foi cerceado do direito a uma linguagem própria: as pessoas surdas.
A trajetória das pessoas surdas ao longo do tempo foi difícil e dolorosa. No passado, elas foram marginalizadas, vistas como portadoras de maldições divinas, como criaturas não dotadas de almas, segregadas do resto da sociedade, mantidas enclausuradas nas casas de familiares, em hospitais e instituições especiais, empregadas em funções subalternas e degradantes, classificadas como intelectualmente incapazes e inferiores aos ouvintes. Receberam apelidos e rótulos ridicularizantes e diminutivos: “mudinho”, “idiota”, “deficiente”.
Sua história foi marcada por avanços e retrocessos. Após séculos de esquecimento e exclusão, experimentaram o início de uma sistematização educacional no final da Idade Média. Entre os séculos XV e XIX, em partes diferentes da Europa e da América, estudiosos se dedicaram a observar o processo educacional dos surdos, criando e aperfeiçoando sistemas de sinais, contribuindo para a formação de uma cultura própria. Concluiu-se, finalmente, que os surdos tinham a mesma capacidade de aprendizado que os ouvintes, e que as linguagens de sinais eram formas legítimas e eficientes de atingir o desenvolvimento das pessoas surdas.
Todo esse florescimento foi abortado no final do século XIX quando, no Congresso Internacional de Milão (1880), condenou-se o uso dos sinais como forma de comunicação e passou-se a insistir no oralismo como meio mais adequado de comunicação das pessoas surdas. Essa decisão tornou clandestina a linguagem de sinais, sufocando a cultura das pessoas surdas, que deveriam se integrar à sociedade circundante, tentando apagar suas diferenças o máximo possível. Seguiu-se quase um século de virtual proibição da linguagem dos sinais. A retomada ocorreu a partir das décadas de 1960 e 70, na esteira da grande revolução cultural que abalou o Ocidente. Especialistas e surdos passaram a questionar as antigas concepções oralistas e assimilacionistas, reivindicando o direito a uma cultura própria. Reunidos em associações e grupos organizados, os surdos lutaram, nas últimas décadas, para se inscrever na categoria de “minoria”, somando-se assim a mulheres, negros, homossexuais, trabalhadores, entre outros, com o objetivo de serem reconhecidos e respeitados. Não queriam mais ser vistos como deficientes, mas como diferentes
É nesse sentido que a lei nº 10.436 deve ser compreendida e analisada. Junto com o decreto nº 5626 ela representa não só a aceitação oficial da Linguagem Brasileira de Sinais como legítima forma de expressão e comunicação, mas também sinaliza o reconhecimento da existência de uma cultura própria das pessoas surdas. Além disso a lei e, principalmente, o decreto, viabilizam a criação de mecanismos que buscam assegurar o acesso das pessoas surdas aos serviços de educação e saúde, e que lhes abram as portas do mercado de trabalho. A LIBRAS, finalmente, foi elevada à categoria de língua, um “sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria”, capaz de realizar a “transmissão de ideias e fatos”.
Em 2012 se comemoram dez anos da promulgação da lei nº 10.436. É um marco que deve ser festejado, mas que também deve ser aproveitado como momento de reflexão. Uma das infelizes características de nosso país é a existência de leis que “não pegam”, que não se traduzem em modificações reais nas práticas do cotidiano. É o caso de pensarmos nas condições atuais da comunidade das pessoas surdas do país e analisarmos se a lei gerou benefícios práticos, se significou modificações positivas nas suas vidas e nas de seus familiares. Uma lição que a história nos ensina é que as conquistas das minorias, dos oprimidos, dos esquecidos e dos marginalizados acontecem não pela benevolência dos poderosos, mas pela luta constante, pela organização e união, pela insistência e perseverança daqueles que desejam conquistar mudanças na sociedade. Nesse momento celebrativo é oportuno realizar um balanço das transformações experimentadas nesta última década, comparando-se a situação atual com a anterior. Desse diálogo deve surgir a percepção dos pontos positivos da lei e das áreas em que não houve ainda os avanços necessários. Essa reflexão deve resultar em propostas de correção de rumos e na adoção de estratégias de luta para que se alcancem os objetivos coletivos da comunidade das pessoas surdas.  


DRC
Curso Libras - básico
http://www.casmaranhao.blogspot.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário