sexta-feira, 15 de maio de 2009

Ainda sobre a memória...

"Assim que nascemos já começamos a morrer. Cinqüenta, sessenta, oitenta anos, mas tudo é agonia, tudo é ir morrendo pouco a pouco, como se gasta um sabão sem que caiam os pedaços. De repente, um galhinho de espumas se separa e permanece. São as lembranças. Não estão em parte alguma, não tem corpo nem alma, ninguém pode vê-las, e são duras como o ferro. Se quisermos saber de que maneira estamos feitos, temos que olhar nelas como um espelho. Graças ao saber como fomos é que somos. Se não fosse pelas lembranças, não estaríamos aqui nem em parte alguma. O caminho percorrido, esse é o caminho. O que estamos percorrendo nada mais é do que um pedaço de terra debaixo dos pés. Um morto não seria mais que um homem que sai do baile e não volta a entrar, não fosse pelas lembranças, que ficam dando voltas ao redor do vazio que deixou no ar o homem morto. É então quando a gente percebe o que significa um homem. A gente estava acreditando que não era mais do que isso: uma cabeça com o que tem dentro dela assomando pelos olhos, umas mãos se mexendo como aranhas na frente do peito, e uns pés que servem para não ficar sempre olhando a mesma coisa. E não era assim. Não era assim porque tudo aquilo começa a se transformar em carniça quieta, e no entanto o homem continua vivo – com seus sorrisos e suas fomes, e seu modo de dizer que está com frio ou que gosta de fumar em jejum – nas lembranças das pessoas. Você não pode matar o jeito que tinha aquele homem de pôr as mãos sobre a cabeça de seus filhos, enquanto fiquem as cabeças de seus filhos andando pelo mundo. Não pode matar o jeito que tinha de pegar o cigarro entre os lábios, e que sua mulher continua vendo, como se estivesse ali, fumando. "


Trecho do conto “TOBIAS”, de Felix Pita Rodriguez

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