quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Itacoatiaras

A arte rupestre brasileira ganhou uma análise inteligente e interessante na obra de Luiz Galdino (Itacoatiaras. Uma pré-história da arte no Brasil. São Paulo, Editora Rios, 1988). O trabalho começa com um resumo bibliográfico daquilo que se escreveu sobre elas, desde os cronistas coloniais até os cientistas do século XIX, passando pelos religiosos de diversas denominações que com elas travaram contato. Essas impressões podem ser usadas nas aulas de história, pois tem o potencial de demonstrar a variação das mentalidades ao longo do tempo, simultaneamente à exposição sobre este tipo de manifestação pré-histórica. Posto abaixo texto produzido a partir da obra supracitada.


Itacoatiara é palavra que na língua dos índios significa pedra pintada, pedra marcada, pedra escrita. São conjuntos de pinturas e insculturas produzidas em tempos imemoriais, pelos habitantes mais antigos do Brasil. Estão presentes em todos os territórios do país, e foram produzidas por diversos grupos, que empregaram variadas técnicas e temas.

O primeiro relato escrito sobre as itacoatiaras pertence a Brandônio, que viveu no século XVI. Eis o que ele escreveu:

“Relatou-me por coisa verdadeira que, andando Feliciano Coelho de Carvalho, capitão-mór que foi da dita Capitania (Pernambuco), pela mesma serra, fazendo guerra ao índio potiguar, aos 29 dias do ano de 1598, se achara junto a um rio chamado Araçuagipe que, por ir então seco, demonstrava somente alguns poços de água, que o calor do verão não tinha ainda gastado, e que alguns soldados, que foram por ele abaixo, toparam nas suas fraldas, com uma cova, da banda do poente, composta de três pedras, que estavam conjuntas umas com as outras, capaz de se poderem recolher dentro quinze homens; a qual cova tinha de alto, para banda do sol nascente, de sete a oito palmos e ali, por toda a redondeza que fazia a face da pedra se achavam umas molduras, que demonstravam, na sua composição, serem feitas artificialmente.
Primeiramente à banda do poente dessa cova, na face mais alta dela, estavam cinqüenta mossas todas conjuntas, que tomavam princípio de baixo para cima de um tamanho, que semelhavam no modo com que estavam arrumadas o que se pinta por retablos o rosário de Nossa Senhora; e no cabo dessas mossas, se formava uma moldura de rosa dessa maneira:_____________. E é de se advertir que os mais dos caracteres, que se demonstravam nessa cova se arrumavam da banda do poente, aonde da parte da direita das cinqüenta mossas, em um cotovelo que a pedra fazia, se mostravam outras trinta e seis mossas, como as demais; das quais nove delas corriam de comprido para cima, e as outras tomavam através contra a mão esquerda, em cima delas todas estava outra rosa, como a primeira que tenho pintado; e logo, um pouco mais abaixo, estava outra semelhante rosa e junto dela um sinal que parecia caveira de defunto, e logo, contra a mão esquerda, se formavam doze mossas semelhantes às demais e no alto delas, que era conjunto às cinqüenta primeiras, pareciam uns sinais de modo de caveiras, e da banda direita do cotovelo estava uma cruz e logo, para a banda da esquerda, na face da pedra, se demonstravam, em seis partes, cinquenta mossas.
Em uma das partes estava uma rosa mal clara, porque parecia estar gastada pelo tempo, e logo adiante estavam outras nove mossas semelhantes às primeiras, e, por toda redondeza da cova, se viam pintadas outras seis rosas, e na pedra, que se assentava em meio das duas, estavam vinte e cinco sinais ou caracteres que abaixo debuxarei, divididos em três partes, com mais três rosas que o acompanhavam.
O que de tudo era de mais consideração, era o estar sobre duas pedras muito grandes, uma que botava a borda sobre as outras arcadamente, com estarem tão juntas, que por nenhuma parte davam lugar a se meter por elas o braço. E na pedra de mais baixo da cova pareciam doze mossas da própria maneira das que temos mostrado e no meio delas se formava um círculo redondo dessa qualidade:____ com mais uma rosa, pintada perfeitamente; e é de se notar que todas as rosas eram de uma maneira, exceto uma que tinha doze folhas com a do meio. E pela redondeza dessa cova estavam molduras que tenho dito ou caracteres que se formavam na maneira seguinte:______. Estes caracteres todos nos deram debuxados na forma que aqui vo-lôs demonstro.”


Os religiosos tinham uma relação dúbia com as Itacoatiaras. Aos jesuítas os índios explicaram que elas eram obras de Sumé, um herói mitológico tupi. Os jesuítas trataram de identificar Sumé com São Tomé, criando a lenda da peregrinação desse santo apóstolo pelas terras do Brasil, tendo em mira facilitar a catequese. Outras ordens religiosas, como os capuchinhos franceses, trataram os mitos e a cultura indígena com respeito maior, tentando compreendê-la.

Os naturalistas do século XIX e início do XX desenvolveram interpretações diferentes a respeita das itacoatiaras, que podem ser agrupadas em duas categorias: alguns, como Wilhelm Lund, diminuíam a importância das obras, tratando-as como expressões de uma cultura bárbara, inferior e incivilizada. Nas palavras dele: “os selvagens nômades da tribo dos Caiapós, segundo penso, ali fixaram residência e acharam abrigo nas grutas, sob as abóbadas deste imenso rochedo. Entusiasmados pela beleza da paisagem circunvizinha, ensaiaram representar os objetos que mais lhe davam na vista. O pé do rochedo está coberto de seus desenhos, que tão primitivos quanto a imaginação que guiou as mãos de seus autores, nem por isso interessa menos ao filósofo que deseje conhecer as produções do espírito no seu mais baixo grau de desenvolvimento.” Outros, como Paul Ehrenreich, conferiam valor a essas manifestações: “contudo, não devemos considerar estes litógrafos como simples desporto sem significação, executados em horas de ócio, porquanto, atento aos primitivos instrumentos indígenas, devem ter exigido extraordinário dispêndio de tempo e de trabalho.”

Finalmente, há aqueles que vêem nas itacoatiaras provas que fundamentam suas teorias disparatadas. Bernardo da Silva Ramos afirmou que os caracteres presentes nelas eram de origem fenícia. Para Alfredo Brandão, eram os componentes de uma “escrita-mãe”, sistema ancestral de escrita do qual todos os outros teriam se ramificado. O engenheiro Appolinário Frott, mais ousado, declarava ter descoberto nos escritos do norte do Amazonas a explicação para a “misteriosa” origem dos egípcios. Nos tempos mais recentes, as itacoatiaras tem sido vistas por alguns como sinais da presença extraterrestre no Brasil pré-cabralino.

Fontes:
BRANDÔNIO, (Anônimo) – Diálogo das Grandezas do Brasil – Edições Melhoramentos/INL, São Paulo, 1977.
GALDINO, Luiz. Itacoatiaras. Uma pré-história da arte no Brasil. São Paulo, Editora Rios, 1988.


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