terça-feira, 17 de março de 2015

Saudade de São Luis do Maranhão



ouço boards of canada e me lembro de são luís
do maranhão.
(especialmente “smokes quantity” e “1986 summer fire”)
lembram-me daquele terceiro andar no prédio do condomínio passarada,
na beira do rio anil
perto da avenida ferreira gullar
onde o vento batia sem parar e que
no inverno
era invadido por uma sinfonia interminável de sapos
enormes
loucos para encontrar o parceiro que os permitiriam
perpetuar a espécie
até que chegassem as próximas chuvas
que saudades de são luís
da sensação de atravessar a ponte que cruza o rio anil
a ponte do são francisco
a pé ou de carro
com seus ventos loucos que fazem o chapéu voar
a camisa se grudar no corpo
e um assobio do ciclista que passa e avisa
chega pra lá
a rua do egito e sua ladeira suave
o colégio santa teresa de um lado,
um sebo estranho que só vende livros didáticos do outro.
esqueci tanta coisa
mas a saudade me consome
sinto falta daquela cidade,
de como a senti na carne,
nos ouvidos e nas narinas
sinto falta até da são luís que nem vi,
aquela que conheci pelos documentos
pelos códigos de postura municipal
pelos libelos cíveis,
pelos livros de história dos professores da UFMA
pela literatura
de aluísio,
de gullar
o poema sujo de gullar que me fez ver são luís com os olhos de um antigo
e ver as coisas antigas presentes na metrópole do século XXI
a longa ladeira que se inicia no rua grande, passando pelos
comempés eternizados pelo monstro souza
descendo até o mercado municipal
ah, que saudades do mercado municipal,
de seus cheiros ofensivos e atraentes,
da sua penumbra e do seu burburinho eterno,
das suas máquinas  de matar galinha na hora,
das suas lojas de panelas e troços de cozinha,
dos seus barbeiros ancestrais
dotados de moderno ar condicionado,
de suas lojas de produtos agropecuários vendendo rolos de fumo e
chumaços de algodão cru e breu,
como se vendia nos séculos passados,
de suas valas recobertas, no centro dos corredores,
onde eu imaginava roedores enormes esperando a escuridão
para servir-se dos restos do dia
era ali que eu encontrava
e só ali
as bananas do tipo que tanto apreciava
as batatas doces,
o amendoim
e a farinha gostosa que só tem no maranhão.
meu passeio semanal obrigatório
o mercado municipal.
e seguindo a rua,
desviando-se das poças de água fétida
de um fedor irresistível,
(como um glauco mattoso)
chega-se àquele aterro que recobriu o portinho
com seus botecos de metal.
um ponto nevrálgico, sexo, entroncamento rodoviário, pesqueiros,
sei lá mais o que
e o entroncamento para avenida dos africanos que de um lado margeia o bacanga
(que foi minha primeira visão do maranhão
chegando do aeroporto
sentindo a umidade quase opressiva
que engolfa o sujeito
assim que ele desce do avião,
e o cheiro indefinível do mangue,
da matéria em lenta decomposição
nas margens barrentas
debaixo das árvores.)
são luís que saudade
saudade que dói,
saudade de você e de mim naqueles dias
daquele tempo que não volta mais.
naquela altura eu sentia raiva
mas agora sinto saudade.
saudades do arquivo municipal e do ananias
do deusdedit (“o budista”) e sua esposa
e seu museu tão carinhosamente montado
e mantido
eternamente ameaçado
pelas intermináveis
flutuações da política.
da UFMA e de seus professores de história.
de sua história que agora começa a ser revista e recontada,
finalmente
levando em conta os outros,
aqueles esquecidos até então.
que saudades da rua grande nos domingos de manhã,
daquela sujeira acumulada por uma semana de movimento incessante
agora em repouso
deserta.
da rua são pantaleão, começando no edifício caiçara
também eternizado pelo mostro souza
rua que passa pelo antigo cemitério dos ingleses
agora, se não me engano
uma estação de tratamento de água ou algo que o valha
e termina naquele hospital grande e na igreja que parece o chapéu
do luís gonzaga.
saudade do madre de deus
suas ruas tortuosas,
estreitas e vivas
da região do convento das mercês e suas
tipografias escuras
em febril atividade
herdeiras do frias e do belarmino de matos.
do caminho que vai pela ponte do bacanga,
passa pela UFMA e vai dar lá pela boca do cujupe
com sua periferia ladeando
meio cidade de beira de estrada,
meio zona industrial
saudade da ponte bandeira tribuzi
com seus pisos soltos e bambos
ocos por baixo e vacilantes
ameaçando o passo do caminhante,
que passa pela marinha
e mostra um conjunto de casas improvisadas embaixo,
com cheiro de fezes e madeira queimada
e que leva a uma esplanada que antes era um lixão
e agora é um shopping center
cercado por mangues
(dá pra ver o mangue do estacionamento)
shopping que era a última opção dos finais de semana
com seu ar condicionado e sua multidão de chinelos
e bermudas
e suas comidas semiprontas
são luís, que saudades
de suas praias cheias de águas marrons,
correnteza assustadora
e lateral
ventos que carregavam wind surfers
e carros, carros atravessando sem parar
e garçons que te chamam de doutor
que chamam todos de doutor
uma cidade de doutores
 e garçons.
saudades do cinema de arte na praia grande
sempre com filmes bons
sempre com som ruim
sempre oculto pelos sons externos
e, às vezes, abafado pelo batuque dos botecos
saudade do hotel lord e suas baratas e ratos
e seus sabonetes usados no banheiro
contendo cabelos
e pelos pubianos
dos hóspedes precedentes
e seus recepcionistas sonolentos
que assistiam pornôs na internet
do balcão central,
do seu clima de velho hotel decadente
com ares de ter sido elegante
40 anos atrás,
seu café da manha servido num refeitório meio subterrâneo
onde se pode ver musgos ancestrais
e os dormitórios dos funcionários
onde se pode trombar com holandeses,
alemães, americanos,
suíços e franceses nos corredores
de cujas janelas vi uma vez uma família
alimentando-se de farinha na praça  
benedito leite
comendo de arremesso;
saudades são luís
do cheiro onipresente de urina,
(uma vez até fizeram um ato na escada que
leva da rua do lord hotel para a praça benedito leite,
colaram desenhos de moscas pra tentar extinguir
o hábito da urina pública
sem sucesso)
daquela cidade erigida sobre um charco,
ou um tijuco
na linguagem dos antigos
saudade que dói até
espero um dia poder voltar
apesar de saber que
aquela cidade
que um dia entrou pelos meus olhos, ouvidos, narinas
cujo vento roçou minha pele
não existe mais
nem existe mais aquele eu
que um dia andou pelas suas ruas.
só resta ouvir
boards of canada
e reviver
escassamente
e cada dia mais esmaecida
aquela cidade
no terreno fugidio
e traiçoeiro
da memória.

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