Um cidadão que entrasse numa banca de revistas qualquer, no intervalo de tempo que vai da segunda metade dos anos oitenta até a mesma altura dos anos 1990, encontraria a sua disposição uma quantidade farta de quadrinhos, de todos os gêneros, origens e feitios. Por pouco dinheiro, poderia levar consigo belos quadrinhos de terror – mesclados com uma pitada generosa de erotismo - de revistas como “Cripta”, “Calafrio” e congêneres, todas escritas e ilustradas por artistas brasileiros. Se o gênero não agradasse, podia escolher um entre os muitos títulos de revistas que traziam arte “autoral” de brasileiros: Geraldão, do saudoso Glauco Villas Boas, “Chiclete com Banana”, best-seller de Arnaldo Angeli, “Piratas do Tietê” ou “Striptiras”, que traziam a arte primorosa de Laerte Coutinho, a engraçadíssima “Níquel Náusea”, do impagável Fernando Gonsales, Big Bang Bang, de Adão Iturrusgarai, e uma infinidade de outros títulos; havia ainda as multiautorais “Circo”,”Canalha”, “Mega”, “Udigrudi” e muitas outras. Mesmo as revistas de autor citadas acima abriam espaço para colaborações, colocando o leitor em contato com trabalhos de Newton Foot, Negreiros, André Toral, Spacca, Marcatti, Schiavon, Luis Gê, Pelicano, e muitos outros.
Estas publicações de periodicidade incerta, na maioria empreendimentos independentes de pequenas editoras, quixotescamente se aproveitavam de confluências favoráveis para abrirem um amplo espaço para toda uma geração de artistas, ligando-os a um ávido público leitor. Junto a estas, na mesma banca de revistas, poderiam ser encontradas publicações que traziam o melhor do quadrinho internacional, especialmente o europeu e norte-americano, editado pelos brasileiros sortudos o bastante para não só serem capazes de compreender outras línguas em um país de iletrados, mas também de poderem estender um periscópio investigativo em viagens internacionais e se ligarem em uma rede mundial de admiradores da “nona arte”. Numa época em que a informática era coisa de filme de ficção científica, era um feito e tanto. A imponente “Animal” introduziu para o público maior artistas como Vuilleman, Tamburini e Liberatore, Andrea Pazienza; a semipirata “Porrada” trazia Horácio Altuna, Moebius, Crumb... As editoras maiores, como Globo e Abril, também sintonizaram-se com a onda de quadrinhos e editaram obras primas em formato mais bem acabado – ainda que mais caro: Miguelanxo Prado, Arno, Katsuhiro Otomo, Jano. A editora Abril tinha, inclusive, uma linha só para quadrinhos de alto nível, reunida sob o título “Graphic Novel”.
É bom que se diga que, além de quadrinhos, estas publicações traziam também textos, reportagens e informações que ajudavam a furar o esquema conservador de transmissão de dados das grandes redes de informação, comprometidas com valores tradicionais e mercantis... Algumas inclusive desenvolveram seções especiais, apêndices para este tipo de informações como o “Jam” da Chiclete e o “Mau” (Feio, sujo e malvado) da Animal. Ali o brasileiro – que via o mundo apenas pelo filtro da Rede Globo, do Estadão e da Veja - podia aprender a história da Contracultura, podia conhecer por dentro os “squats” europeus e seu ethos anarquista, e podia, afinal, ter acesso a uma interpretação dos fatos menos compromissada com a manutenção do status quo e mais irreverente.
Some-se a essa fartura editorial o grande universo subterrâneo dos fanzines, modalidade que democratizou o acesso à publicação, transgredindo e subvertendo os papéis de leitor, editor e autor. A rede de fanzines usava o serviço dos Correios para se estender país afora, num processo que se autoalimentava. A divulgação de novos quadrinistas foi grande ali, e mais de uma banda que depois atingiu o sucesso radiofônico rompeu o anonimato por meio deles. Uma vertente bastante fértil de fanzines se dedicava à crítica musical, alimentando a distribuição de fitas K7 com trabalhos originais que seguia o mesmo esquema de distribuição das publicações.
Aos poucos, na segunda metade da década de 1990, a disponibilidade de quadrinhos nas bancas começou a dar sinais de que minguava. Os títulos sumiam, um a um, mês a mês. Os sebos ainda mantiveram a circulação das revistas por alguns anos, o que mascarou, para os que testemunharam o processo, o declínio da publicação de revistas de quadrinhos. Só quando os sebos mostraram-se finalmente esvaziados dos títulos tão apreciados é que se percebeu que o movimento havia morrido: os quadrinhos, nas bancas de revista, se retraíram para o nicho infantil, o único público que ainda viabiliza algum movimento. Aqueles autores brasileiros e estrangeiros que povoaram as prateleiras por dez anos agora só estavam disponíveis nas estantes de grandes livrarias, em álbuns luxuosos – e caríssimos. O prosaico e barato papel jornal dava espaço ao cuchê... Os artistas brasileiros passaram a se dedicar com mais afinco aos seus empregos estáveis em jornais de grande circulação – caso de Angeli, Laerte, Glauco, Adão, etc; ou meteram-se em projetos mais profundos, que envolvem pesquisa e resultam em livros, caso de Spacca, Toral. Ou enveredaram para outras profissões e atividades. Alguns ainda se mantem num esquema independente, mesclado com o mainstream, como Marcatti – que por sinal sempre foi indie, senhor de sua própria offset.
O universo dos fanzines foi irremediavelmente absorvido pela internet...
A forma de consumo de histórias em quadrinhos passou por uma brutal reorganização, fechando-se, elitizando-se, imaterializando-se em bits e bytes... O número de leitores de HQ deve ter declinado muito nesse processo.
(DRC)
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