terça-feira, 18 de janeiro de 2011

SOBRE CAINGANGUES E A MORTE CULTURAL


Minha terra natal, Araçatuba, era habitada até o começo do século XX pelos índios caingangue, chamados pelos colonizadores de “cabeças coroadas”. A palavra caingangue significa “homem viril superior”, que era como os indivíduos desse grupo se classificavam em relação aos demais. E eles eram realmente fortes e altivos. Pertencentes ao tronco lingüístico Jê, eram guerreiros temidos e treinados nas artes marciais. Usavam tacapes que chegavam a 1,80 m, exigindo grande força para manejar. Seus arcos ultrapassavam os 2,00 m, e as flechas podiam atingir alvos a centenas de metros. Para se ter uma idéia de sua ferocidade, basta saber que a principal diversão dos caingangues eram as lutas entre si mesmos, em que nenhum dos oponentes poderia sair ileso, sob risco de ser ridicularizado pelos demais. Fraturas, concussões e contusões eram comuns.
Quando os primeiros colonizadores brancos chegaram, trazendo as linhas férreas nos primeiros anos do século XX, tentaram estabelecer contato com os caingangue, “pacificá-los” e integrá-los à sociedade civilizada. Essas tentativas foram rechaçadas com violência pelos índios. É bem conhecido triste fim do religioso conhecido como Padre Monsenhor. Em inícios do século XX ele estabeleceu uma missão nas matas da região, e espalhou presentes pela floresta. Quando foi verificar a reação dos índios, percebeu que eles não só ignoraram as ofertas como haviam fincado flechas e tacapes no chão ao redor deles. O Padre Monsenhor percebeu o perigo e tentou fugir pelo rio, mas foi mortalmente ferido com flechadas.
Muitos outros perderam a vida no confronto com os caingangues. Para resolver a situação, foram contratados capitães-do-mato especializados em matar índios, chamados bugreiros. Eles usavam táticas brutais em suas ofensivas. Escolhiam sempre as primeiras horas do dia para ordenar os ataques às tribos, pegando os oponentes de surpresa. Também costumavam espalhar pela floresta roupas e tecidos contaminados com o vírus da varíola, que dizimavam famílias inteiras. Em algumas décadas de combates aguerridos, os “civilizados” finalmente exterminaram os caingangues, pacificando a região e tornando-a apta para o desenvolvimento de seus projetos agro-econômicos. Em Araçatuba, os nomes dos bugreiros mais eficientes foram dados a Escolas, ruas e praças. Nenhuma rua da cidade ganhou o nome de nenhum caingangue. Aliás, os milhares de guerreiros caingangues, que nunca se renderam frente à violência nem se intimidaram com a superioridade dos brancos, viveram e morreram anônimos. Nenhum livro de História pode ostentar seus nomes desconhecidos.
Essa história rende considerações mais profundas sobre nosso cotidiano. Não seriam as escolas a primeira tentativa de “amansar” os “selvagens”, tornando-os aptos a se inserir em nosso empreendimento comercial chamado “sociedade”? Levi-Strauss, que agora completa 100 anos de idade, já desconfiava disso, quando conviveu com os índios brasileiros na década de 1930. Ele percebeu que a introdução da cultura “civilizada” por força das armas ou pela religião, anulava a milenar cultura dos índios, enterrando-a para sempre. É inevitável que eu me pegue a pensar essas coisas em alguma altura de todos os anos letivos. O que garante que aquilo que diariamente insiro no universo mental e cultural dos meus alunos é necessário e útil? Que elementos culturais mato nesse processo? Que direito tenho de julgar e escalonar as coisas e decidir o que é “bom” e o que deve ser excluído? Até que ponto posso ter certeza da validade das coisas que ensino?
Companheiras de trabalho deste professor: a incerteza e a dúvida...

publiquei este texto em 27/11/2008, em outro blog, nos meus tempos de professor...
IMAGEM: museumarechalrondon.blogspot.com

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