A roda inventou-se e ficou logo
ali inventada para todo o sempre, enquanto as palavras, aquelas e todas as
mais, essas vieram ao mundo com um destino nevoento, difuso, o de serem organizações
fonéticas e morfológicas de carácter eminentemente provisório, ainda que,
graças, porventura, à auréola herdada da sua auroral criação, teimem em querer
passar, não tanto por si próprias, mas por aquilo que de modo variável vão
significando e representando, por imortais, imorredouras, ou eternas, segundo
os gostos do classificador. Essa tendência congénita, a que não saberiam nem
poderiam resistir, tornou-se, com o decorrer do tempo, em um gravíssimo e se
calhar insolúvel problema de comunicação, quer a colectiva de todos, quer a
particular de tu a tu, que foi o de acabarem de confundir-se os alhos e os
bugalhos, as tornas e as deixas, usurpando as palavras o lugar daquilo que
antes, melhor ou pior, pretendiam expressar, do que resultou, finalmente, bem
te conheço ó máscara, esta atroadora algazarra de latas vazias, este cortejo
carnavalesco de latões com rótulo mas sem nada dentro, ou apenas, já
desvanecendo-se, o cheiro evocativo dos alimentos para o corpo e para o
espírito que algum dia contiveram e guardaram. (p. 61-62)
Estranha relação é a que temos
com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência
vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo
trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas
sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se
algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos,
assim convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos,
concluímos, discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só
temos ideias muito vagas, e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos
enquanto tacteamos o caminho no meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos
vamos entendendo, e às vezes, até, encontrando. (p. 87-88)
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