terça-feira, 31 de agosto de 2010

Impressões sobre Alcântara - MA

O turista típico faz um passeio rápido, permanecendo poucas horas na cidade, obtendo assim uma visão superficial. É acompanhado por guias, alguns deles a serviço de órgãos da Prefeitura, que param aos pés dos monumentos mais chamativos, sob providenciais sombras, deitando informações “históricas” sobre a cidade e as construções. Pretendo em breve descobrir mais sobre esses serviços, sobre o comportamento dos turistas e sobre as fontes das informações que os guias prestam aos visitantes.
Aqueles que se detiverem por mais tempo na cidade, aqueles que tiverem força e ânimo para revirar as entranhas alcantarenses, descobrirão o que está por trás das belas fachadas e ruínas. Todas as informações que coletei sobre Alcântara nos relatos de visitantes na Internet se referiam a seus aspectos exteriores, eram informações obtidas por turistas que trilharam o circuito convencional. Este texto contem impressões sobre a cidade de Alcântara, no Maranhão, juntadas após uma semana e meia de andanças, conversas com moradores, observações e vivência direta com a realidade local. Deve ser lido como um relato de viajante, aquele produzido por alguém sob a influência do estranhamento. Ele não é fruto de uma investigação profunda, nem de esforços acadêmicos. São apenas impressões...
Um dos elementos da paisagem de Alcântara que mais atrai os olhares dos visitantes são as ruínas que se espalham pela cidade toda. Parecem testemunhas de um passado de riqueza e glória. Para a população local essas ruínas tem outros significados: serviram como fonte de matéria-prima para a construção de casas até a chegada das leis de proteção do patrimônio, servem como banheiro público (é comum ver motociclistas e motoristas pararem seus veículos para urinar nos recantos abrigados – mas nem tanto - da vista alheia; mesmo senhoras de idade provecta usam esse expediente para aliviar suas necessidades, e o visitante deve ter cuidado ao caminhar por entre as paredes centenárias para não pisar em resíduos indesejáveis...); as ruínas servem ainda de pastagem para bois e carneiros que vagam soltos pela cidade.
O conceito de moradia e as técnicas de construção são muito peculiares nesta região. As fundações das casas são feitas de pedra, o mesmo tipo usado para erigir as paredes de igrejas e casarões, o mesmo tipo presente na pavimentação das ruas do centro histórico. Apesar da pequena concentração demográfica e da fartura de espaço, as habitações são acanhadas, pequenas, quase claustrofóbicas. Vê-se logo que servem apenas de abrigo, e que a vida se dá ao ar livre, nas ruas e calçadas. O cômodo frontal dessas casas é, com frequência, lugar para a acomodação de redes, sempre de modo a permitir que aquele que se deita nelas tenha uma visão da rua através da porta, sempre aberta, que desemboca direto na calçada. As paredes internas não se elevam até o teto, nem são cobertas por forro, laje ou o que o valha; ao olhar para cima, o que se vê é o madeiramento que sustenta o telhado e as telhas que o recobrem. Isso indica outra relação com a privacidade, ou a inexistência dela... Não há espaço entre as casas, pois elas se escoram umas às outras, as paredes laterais são compartilhadas, talvez por economia. Dessa forma, uma rua típica de Alcântara é formada por uma fileira contínua de casas conjugadas, as quais só se distinguem pela diferença na cor e no tipo do revestimento. O banheiro fica junto à cozinha ou nos fundos. Os dejetos produzidos são levados a fossas simples, buracos no chão cobertos com lajes de cimento, ou são despejados diretamente em córregos; em muitas ruas o esgoto corre por valas expostas nas sarjetas. Os quintais ou são abertos, compartilhados por várias casas, ou limitados por cercas de bambus. Para se lavar roupas, usa-se uma mesa ou superfície plana e lisa, onde se colocam as roupas para serem esfregadas; na maior parte das casas, a água usada nessa operação vem de uma cisterna de cimento ou caixa d’água, empregando-se baldes para o transporte.
A relação com a água é outra item que chama atenção do estrangeiro. Grande parte das casas não possui hidrômetro, sendo cobrada uma taxa simbólica de valor único, de acordo com as informações dos moradores. O fornecimento de água é irregular, ocorrendo longos períodos de falta, diariamente, e às vezes por mais de um dia seguido. Para contornar essa dificuldade, os moradores empregam reservatórios, cisternas ou caixas d’água, que são usados nos momentos de corte no fornecimento. Água encanada parece ser um recurso recente; isso se traduz na forma como são feitos os encanamentos, instalados externamente e de maneira precária, ao contrário do hábito dos paulistas de embutir os canos nas paredes. Isso leva a crer que as técnicas de construção ainda não incorporaram a novidade da “água interna”.
Os moradores gostam muito de conversar entre si, e passam os dias sentados à frente de suas casas e locais de trabalho em grandes grupos, de seis ou mais pessoas. Dedicam-se ainda a jogos de tabuleiro. É comum, ao entrar num estabelecimento comercial, encontrá-lo vazio; em instantes o comerciante, que conversava ou jogava na rua, mantendo um olho nas suas portas, aparece. Esse hábito pode ser resultado do grande calor onipresente, opressivo. Todas as agências de serviços governamentais são servidas de aparelhos da ar-condicionado, assim como os veículos oficiais a serviço de órgãos públicos. Eles circulam lentamente nas ruas acidentadas da cidade, com os vidros escuros fechados...
Aprecia-se muito ouvir música em alto volume, nos carros, casas e estabelecimentos comerciais. Em dias de festejo, como o de São Benedito, que testemunhei, todos ligam seus aparelhos sonoros em volume máximo, numa aparente competição de decibéis. Os tradicionais tambores da festa, ufanados como legado dos antepassados africanos, parecem ser apenas tolerados. Assim que se calam entram em ação as radiolas, paredes de alto-falantes violentamente poderosas, ofendendo os ouvidos, fazendo tremer as construções... O estilo musical mais cultuado é o reggae, dançado aos pares numa coreografia onde os parceiros se juntam muito, lembrando o modo de dançar o forró.
Não existe jornal escrito. Todas as notícias são veiculadas por meio de carros, motos e bicicletas dotados de alto-falantes, que informam sobre andamentos de processos da Câmara local (geralmente narrados pelos próprios vereadores), programação do cinema, convites para eventos, propagandas políticas e comerciais. Na época em que cheguei, além dos jingles de candidatos a deputado, ouvia-se os anúncios da festa de São Benedito e da abertura de uma loja onde todas qualquer peça de roupa seria vendida a R$ 10,00, chamada “Caruaru é 10”. Ouvia-se também uma longa ladainha de uma vereadora esclarecendo sobre um processo que corria contra ela.
Há na cidade um bairro evangélico, formado ao redor de uma grande filial da igreja Assembléia de Deus. Chama-se Monte Sinai e tem a fama, entre os moradores, de ser pacato e isento de desordens morais... Muitas de suas casas foram edificadas em terrenos de ocupação, em mutirões liderados e coordenados por pastores.
A venda de víveres é um dos aspectos mais marcantes do cotidiano da cidade. O comércio é realizado de maneira precária; recomendações de conservação são solenemente ignoradas, prazos de validade expirados são comuns entre os produtos vendidos, mesmo nas farmácias. As margarinas, por exemplo, são armazenadas em gôndolas simples, sem a refrigeração recomendada expressamente nas embalagens; os estoques das casas comerciais são escuros, sujos, quentes e desorganizados. Nenhum dos estabelecimentos possui sistema de controle de estoques, operando ainda na era das máquinas de calcular. Na maior parte dos dias não se encontra a venda na cidade nenhum tipo de folhagem, como alfaces ou couves, e a variedade de frutas e verduras é reduzida: laranjas, bananas, maças e melancias, alguns poucos mamões, tomates e batatas. A venda de carne, entre todas as atividades comerciais, é a mais chocante: as peças ficam expostas ao ar livre, em ganchos ou balcões, sem refrigeração ou proteção contra insetos. Presume-se que tal carne venha dos animais abatidos na própria cidade, talvez aqueles que ficam vagando pelas ruínas e áreas vegetadas. Numa cidade onde a temperatura nunca cai abaixo de 30 graus, essa forma de comércio representa um atentado contra a saúde pública...
É comum ouvir relatos sobre crimes; moradores aconselham pedestres com aspecto de turistas a evitar certas áreas, como a rua chamada “Buraco Fundo”. Relatam-se assaltos, uso de drogas e furtos. Leis de trânsito são abertamente ignoradas: motociclistas circulam sem capacete, carregam crianças, trafegam com três ou mais passageiros; motoristas falam ao celular e nunca usam cinto de segurança. O serviço de transporte público é realizado por um caminhão em cuja carroceria se alinham bancos de madeira sem encosto, os populares “paus-de-arara”.
Promotores públicos, juízes, delegado, médicos, professores, funcionários de órgãos públicos, residem em São Luis, deslocando-se para trabalhar em Alcântara. Mesmo o prefeito da cidade, segundo informaram alguns, reside na capital, mantendo uma casa na cidade para visitas esporádicas...
A gente da cidade é receptiva, educada, prestativa. Em meu périplo frenético em busca de uma moradia, fui amparado por muitas pessoas, que se dispuseram a fazer contatos, caminhar comigo por longas distâncias, ajudar de todas as formas.
Há na cidade uma cadelinha vira-latas, simpática, que segue o caminhante por toda parte. Em nossas andanças ela foi companhia constante. É, segundo o senhor Ranilton da Pousada do Sossego, o guia turístico oficial da cidade... Sem nome, a apelidamos Menina. A ela dedico esse texto...

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto, meu coração ficou apertado de perceber a realidade que vão enfrentar, mas estou feliz porque sei que nessa terra vocês serão imensamente felizes.
    Daniel, este texto foi lido por todos meus colegas da Receita.
    Ficaram deslumbrados com a narrativa, e com as realidades que nunca imaginaram existir no Brasil.
    Fique em paz.

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