WALLACE, Michael. Visiting the Past – History Museums in the United States. In:
BENSON, Susan Porter; BRIER, Stephen; ROSENZWEIG, Roy (ed.). Presenting the past – Essays on History and
the Public. Philadelphia: Temple University Press, 1986.
Museus trazem uma visão que molda
o passado, e o fazem de acordo com uma perspectiva que tende a privilegiar uma
interpretação auspiciosa às elites. Mas não se deve ver isso como trama
maquiavélica, diz o autor: trata-se de uma carga inconsciente, não intencional,
espelho da visão de mundo dos construtores (p. 137).
Nos EUA, o interesse pelo passado
custou a pegar. Houve muitas manifestações de antihistoricismo: Thoreau riu da
Inglaterra por seu apego ao passado, comparando-a a “um velho senhor que viaja
com excesso de bagagem, bugigangas que ele foi acumulando ao longo de muitos
anos de administração, e que não tem coragem de tocar fogo” (apud. p. 18).
O interesse pelo passado aparece
sempre com finalidades políticas, como “antídoto” a algum mal moral (“Make America great again” ): nos anos 1850, quando a República parecia
prestes a ruir, começa uma corrida preservacionista; para justificar a
preservação do quartel general de George Washington, ameaçado de demolição, os
legisladores afirmaram: “será bom para nossos cidadãos, nesses dias em que se
escuta o som da desunião reiterado por todas as partes da nação [...] purificar
suas ideias pela revisão da história da luta revolucionária” (p. 138); Ann
Pamela Cunningham, de uma rica família de agricultores do sul, congregou outras
mulheres da mesma casta para assegurar a aquisição e manutenção de Mount Vernon
– fazenda de George Washington – para criar ali “um ponto de convergência das
forças nacionalistas”, salvando-a dos “especuladores sem alma”, dos efeitos
dissolventes da economia capitalista, “uma herança comum para as crianças
dispersas de um mesmo pai, de cuja memória emanará um fascínio que as reunirá no entorno do sagrado
sepulcro” (p. 139).
Entre 1880 e 1910 emergiu uma
febre preservacionista entre os membros das altas classes americanas. O número
de Museus Casa saltou de 20 em 1895, para 100 em 1910. Para Wallace, isso
representa um gesto de afirmação de identidade: nesse momento em que o
capitalismo corporativo se consolida, as antigas famílias patrícias recorrem à
“herança” (ou “memória”) para marcarem distanciamento dos “novos ricos” e dos
“imigrantes estrangeiros” que com suas “ideologias subversivas destruíam a
República” (p. 140). Wallace demonstra que algumas concessões interessadas
foram feitas para ricaços sem raízes, que foram admitidos nas associações, mas
que o “centro de gravidade” permaneceu nas mãos dos “old monieds” (p. 140).
“Eles procuravam, compravam
restauravam e exibiam as casas em que homens famosos haviam vivido. Esses
projetos davam à elite a oportunidade de se associar às virtudes e glórias dos
mortos” (p. 140). Assimilavam junto um padrão estético: a arquitetura dos
séculos XVII e XVIII se tornou seu “emblema cultural” (p. 141). Entronizava-se
assim uma “ordem social pré-imigração” (p. 141). Símbolos como a bandeira e a
Constituição se tornaram o centro de um verdadeiro culto.
Havia também um interesse
“pedagógico”, de americanizar a classe trabalhadora imigrante, o que tinha
conotações políticas: as classes populares deveriam ser extraídas “dessas
grosseiras e loucas ideias de direitos populares... para o verdadeiro entendimento de liberdade Americana como aquela doada por
nosso Pais” (p. 141).
Essa mentalidade, inicialmente
benevolente e paternalista, elevou-se a um tom beligerante e cruel conforme a
elite patrícia se sentia mais e mais acuada. Converteu-se em xenofobia e
anti-esquerdismo delirante e histérico. Essa burguesia amedrontada pelas
revoluções e socialismos convencia-se de que defendia não apenas seus
privilégios de classe, mas “um legado histórico”.
Depois da Primeira Guerra, na
esteira da Revolução Russa e com o acirramento das tensões trabalhistas
internas nos EUA, os capitalistas mudaram de ideia: abandonaram o desdém que
nutriam publicamente pela história (History
is bunk, disse Henry Ford em 1916) e passaram a valorizar os “bons e velhos
dias”. Ford inaugurou o Greenfield Village em 1929. Havia algo do movimento
Skansen nesse empreendimento, mas também algo diferente: enquanto naquele combinava-se
“nostalgia romântica com desdém pela emergência das relações sociais
capitalistas” (p. 144), na vila de Ford o industrialismo era saudado como a
forma pela qual a vida tinha melhorado continuamente desde aqueles velhos bons
dias. O progresso, em sua representação, vinha pelas máquinas. A nota de
censura era “moral” (na verdade, política): as pessoas haviam perdido o
“caráter”, ou seja, deixaram de se conformar a seus lugares na sociedade,
tornaram-se demandantes e agitadas... Havia uma ninharia de anticapitalismo na
visão açucarada do passado nesse dispositivo, e para Wallace, isso se deve ao
fato de que Ford, ainda que fosse o mais rico homem da América, perdia espaço
para novas formas de negócio com as quais estava descontente. Numa sincronia
significativa, “Greenfield Village tomou forma exatamente no momento em que o
modelo T foi forçado a se aposentar” (p. 146). O museu “se tornou para ele um refúgio
a partir do qual ele podia criticar a sociedade contemporânea sem ter que
examinar muito atentamente a parte que ele próprio desempenhou na criação dela”
(p. 146).
John D. Rockefeller também
embarcou no preservacionismo, mas com outros princípios. Ele não se opunha à
modernização (e de fato o Rockefeller Center tinha a intenção de materializar
“sua noção do futuro” p. 148); dispendeu 79 milhões de dólares para recriar uma
cidade colonial, Williamsburg: adquiriu centenas de propriedades e demoliu
todas as que fossem posteriores a 1790; restaurou as 82 restantes e a povoou
com atores vestidos a caráter. Desejava “restaurar completamente uma área e
livrá-la inteiramente de vizinhanças estranhas e desarmoniosas” (p. 148). Sua
vila corporifica uma visão da sociedade inteiramente ordenada:
“As elites
patrícias a presidem com inteligência e distinção; artesãos distintos comandam
a produção de maneira harmoniosa e paternalista; senhoras governam famílias
bem-ordenadas em lares bem-ordenados recheados de objetos preciosos e de bom
gosto. O resto da população – os 90% que criavam a riqueza – não é vista em
parte alguma” (p. 149).
A depressão e a ampliação das
tensões sociais mudaram a forma como o passado era representado publicamente. Roosevelt
iniciou uma série de esforços governamentais que indicavam o desejo do estado
em também ter parte na configuração do passado, e que dessa forma desafiava o
monopólio da elite patrícia sobre a memória nacional. Agências governamentais
puseram em campo milhares de arquitetos, escritores, fotógrafos e historiadores
que produziram grande volume de registros do “patrimônio” dos EUA; a tendência
geral era de considerar dignos de registro não só os vestígios ligados a
cidadãos ilustres do passado, mas tudo o que fosse importante para as
comunidades. Numa chave populista (p. 149) o governo dos EUA passa a “incluir
as pessoas comuns na categoria de atores históricos” (p. 150). A Segunda Guerra
pôs termo a esse avanço governamental. Após a guerra, o movimento trabalhista e
a oposição foram silenciados, e as corporações norte-americanas tomaram o mundo
e conquistaram também hegemonia interna. O “American
Way of Life” minimizou e distorceu o passado; empreendimentos financiados e
dirigidos por corporações apagaram do passado tudo o que remetesse a lutas
sociais e às relações de produção; a Guerra Fria se encarregou de tingir com
opróbio – sob o rótulo de “antiamericanismo” – tudo o que remetesse a
movimentos sociais.
Em resumo, os usos do passado
seguiram servindo às elites; elementos incômodos do passado, como as ideias de
“igualdade”, “direito à revolução” e “anticolonialismo” eram convenientemente
deixadas de lado. Eram eles, os novos manipuladores do passado americano, que
procuravam impor interpretações de conceitos como “liberdade”, “liberdade de
expressão” e insistiam na necessidade da existência de uma “aristocracia
natural” para salvaguardar a sociedade.
A partir de 1953 – no governo de
Eisenhower – a cidadela colonial fundada por Rockefeller passou a ser usada
como ponto de chegada em visitas oficiais: mais de cem chefes de estado foram
recebidos ali, antes de serem encaminhados para Washington. No final daquela
década, a cidadela empregava 1900 pessoas em suas atividades.
O progresso seguiu seu curso: em
1966, metade dos itens listados como patrimônio 30 anos antes, pelos
profissionais a serviço do New Deal,
estava destruído, abrindo espaço para empreendimentos imobiliários e estradas.
Grupos sociais ameaçados de remoção e alguns segmentos de cientistas sociais
começaram a protestar contra o processo; redes sociais e comunidades eram
destroçadas por esse sistema, diziam. “As novas formas residenciais,
argumentavam, negavam as necessidades humanas de conexão social; tanto os subúrbios
quanto os projetos minavam as identidades sociais e individuais ao extrair as
pessoas do contato com o fluxo da história” (p. 154).
Logo investiram também contra os
museus e a representação oficial do passado:
“Não se permite que o passado da
América coexista com o presente. Ele está sempre entre aspas e revestido com
roupas fantasiosas... um objeto isolado de reverência e prazer... desligado, remoto
e essencialmente sem vida” (David Lowenthal apud p. 154). Acusavam os museus de
exibir uma história pasteurizada, uma repetição no passado da aura dos
subúrbios do presente. Os construtores de subúrbios, de fato, haviam se
inspirado nas cidadelas dedicadas ao passado idealizado: os EUA foram “Williamsburguerizados” (p. 154). Grupos
minoritários ou marginalizados – feministas, ativistas negros, pacifistas –
passaram a produzir estudos voltados a desmontar a visão pasteurizada da
história conforme exibida nas cidadelas e sancionada oficialmente.
Museus tendem a moldar o passado
de maneira a privilegiar a visão de mundo das elites.
“É claro
que os museus não podem ser acusados de terem lido o passado seletivamente. Afinal
de contas, não existe essa coisa chamada ‘o passado’. Toda a história é produto
– fruto de deliberada seleção, ordenamento e valorização de eventos,
experiências e processos do passado. A objeção a ser feita é na verdade a
respeito da forma como os museus incorporaram seleções e silenciamentos,
falsificando a realidade e se tornando instrumentos da hegemonia de classe. Os museus
geraram formas convencionais de enxergar a história que justificam a missão
histórica dos capitalistas e conferem uma aura de naturalidade e
inevitabilidade a sua autoridade. Talvez mais importante, eles criaram formas
de não ver. Ao obscurecerem as origens e desenvolvimentos da sociedade
capitalista, erradicando a exploração, o racismo, o sexismo e a luta de classes
dos registros históricos, acobertando a existência de tradições e culturas
populares oposicionistas amplamente difundidas, e por negarem à maioria da
população o papel de escultores da história, os museus inibem a capacidade de
imaginar ordens sociais alternativas – no passado e no futuro” (p. 158).
O que pensam as pessoas que
visitam museus? Como elas recebem e interpretam as mensagens que eles emanam? Pouco
se sabia disso, segundo Wallace. Já a respeito dos motivos que levam as pessoas
aos museus ele tem um pouco mais a dizer: porque há tempo livre e meios para
chegar até eles; porque eles são agradáveis e seguros, e adequados “para todas as
idades”. Talvez porque os habitantes de subúrbios estéreis sintam a necessidade
de contato com “autenticidade e escala humana”. Talvez porque sintam falta da
conexão temporal com o passado, agora que vivem numa paisagem que terraplanou tudo
e revestiu a terra com novas paisagens. Nesse caso, os museus corresponderiam
aos zoológicos, que só se tornaram populares depois que as pessoas se afastaram
do convívio cotidiano com animais.
De todo modo, o apego dos
norte-americanos pelo passado é reduzido. Ainda que restem vestígios de
culturas e tradições de resistência, a América corporativista do pós-guerra foi
mais bem-sucedida do que quase qualquer outro país do mundo na tarefa de
remodelar o passado de maneira a eliminar referências a pontos potencialmente
subversivos.
Wallace encerra sua análise
exortando por um posicionamento mais politizado por parte dos trabalhadores de
museus, especialmente naquela altura dos anos 80 em que se observava “ofensivas
da direita”, que procuravam apagar os ganhos recentes obtidos por grupos
historicamente marginalizados. Os museus deveriam, acima de tudo, “considerar
sua missão fundamental ajudar as pessoas a se tornarem agentes da história historicamente
informados” (p. 161).
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