sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Visiting the Past – History Museums in the United States



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WALLACE, Michael. Visiting the Past – History Museums in the United States. In: BENSON, Susan Porter; BRIER, Stephen; ROSENZWEIG, Roy (ed.). Presenting the past – Essays on History and the Public. Philadelphia: Temple University Press, 1986.

Museus trazem uma visão que molda o passado, e o fazem de acordo com uma perspectiva que tende a privilegiar uma interpretação auspiciosa às elites. Mas não se deve ver isso como trama maquiavélica, diz o autor: trata-se de uma carga inconsciente, não intencional, espelho da visão de mundo dos construtores (p. 137).
Nos EUA, o interesse pelo passado custou a pegar. Houve muitas manifestações de antihistoricismo: Thoreau riu da Inglaterra por seu apego ao passado, comparando-a a “um velho senhor que viaja com excesso de bagagem, bugigangas que ele foi acumulando ao longo de muitos anos de administração, e que não tem coragem de tocar fogo” (apud. p. 18).
O interesse pelo passado aparece sempre com finalidades políticas, como “antídoto” a algum mal moral (“Make America great again” ): nos anos 1850, quando a República parecia prestes a ruir, começa uma corrida preservacionista; para justificar a preservação do quartel general de George Washington, ameaçado de demolição, os legisladores afirmaram: “será bom para nossos cidadãos, nesses dias em que se escuta o som da desunião reiterado por todas as partes da nação [...] purificar suas ideias pela revisão da história da luta revolucionária” (p. 138); Ann Pamela Cunningham, de uma rica família de agricultores do sul, congregou outras mulheres da mesma casta para assegurar a aquisição e manutenção de Mount Vernon – fazenda de George Washington – para criar ali “um ponto de convergência das forças nacionalistas”, salvando-a dos “especuladores sem alma”, dos efeitos dissolventes da economia capitalista, “uma herança comum para as crianças dispersas de um mesmo pai, de cuja memória emanará um fascínio  que as reunirá no entorno do sagrado sepulcro” (p. 139).
Entre 1880 e 1910 emergiu uma febre preservacionista entre os membros das altas classes americanas. O número de Museus Casa saltou de 20 em 1895, para 100 em 1910. Para Wallace, isso representa um gesto de afirmação de identidade: nesse momento em que o capitalismo corporativo se consolida, as antigas famílias patrícias recorrem à “herança” (ou “memória”) para marcarem distanciamento dos “novos ricos” e dos “imigrantes estrangeiros” que com suas “ideologias subversivas destruíam a República” (p. 140). Wallace demonstra que algumas concessões interessadas foram feitas para ricaços sem raízes, que foram admitidos nas associações, mas que o “centro de gravidade” permaneceu nas mãos dos “old monieds” (p. 140).
“Eles procuravam, compravam restauravam e exibiam as casas em que homens famosos haviam vivido. Esses projetos davam à elite a oportunidade de se associar às virtudes e glórias dos mortos” (p. 140). Assimilavam junto um padrão estético: a arquitetura dos séculos XVII e XVIII se tornou seu “emblema cultural” (p. 141). Entronizava-se assim uma “ordem social pré-imigração” (p. 141). Símbolos como a bandeira e a Constituição se tornaram o centro de um verdadeiro culto.
Havia também um interesse “pedagógico”, de americanizar a classe trabalhadora imigrante, o que tinha conotações políticas: as classes populares deveriam ser extraídas “dessas grosseiras e loucas ideias de direitos populares... para o verdadeiro entendimento de liberdade Americana como aquela doada por nosso Pais” (p. 141).
Essa mentalidade, inicialmente benevolente e paternalista, elevou-se a um tom beligerante e cruel conforme a elite patrícia se sentia mais e mais acuada. Converteu-se em xenofobia e anti-esquerdismo delirante e histérico. Essa burguesia amedrontada pelas revoluções e socialismos convencia-se de que defendia não apenas seus privilégios de classe, mas “um legado histórico”.

Depois da Primeira Guerra, na esteira da Revolução Russa e com o acirramento das tensões trabalhistas internas nos EUA, os capitalistas mudaram de ideia: abandonaram o desdém que nutriam publicamente pela história (History is bunk, disse Henry Ford em 1916) e passaram a valorizar os “bons e velhos dias”. Ford inaugurou o Greenfield Village em 1929. Havia algo do movimento Skansen nesse empreendimento, mas também algo diferente: enquanto naquele combinava-se “nostalgia romântica com desdém pela emergência das relações sociais capitalistas” (p. 144), na vila de Ford o industrialismo era saudado como a forma pela qual a vida tinha melhorado continuamente desde aqueles velhos bons dias. O progresso, em sua representação, vinha pelas máquinas. A nota de censura era “moral” (na verdade, política): as pessoas haviam perdido o “caráter”, ou seja, deixaram de se conformar a seus lugares na sociedade, tornaram-se demandantes e agitadas... Havia uma ninharia de anticapitalismo na visão açucarada do passado nesse dispositivo, e para Wallace, isso se deve ao fato de que Ford, ainda que fosse o mais rico homem da América, perdia espaço para novas formas de negócio com as quais estava descontente. Numa sincronia significativa, “Greenfield Village tomou forma exatamente no momento em que o modelo T foi forçado a se aposentar” (p. 146). O museu “se tornou para ele um refúgio a partir do qual ele podia criticar a sociedade contemporânea sem ter que examinar muito atentamente a parte que ele próprio desempenhou na criação dela” (p. 146).
John D. Rockefeller também embarcou no preservacionismo, mas com outros princípios. Ele não se opunha à modernização (e de fato o Rockefeller Center tinha a intenção de materializar “sua noção do futuro” p. 148); dispendeu 79 milhões de dólares para recriar uma cidade colonial, Williamsburg: adquiriu centenas de propriedades e demoliu todas as que fossem posteriores a 1790; restaurou as 82 restantes e a povoou com atores vestidos a caráter. Desejava “restaurar completamente uma área e livrá-la inteiramente de vizinhanças estranhas e desarmoniosas” (p. 148). Sua vila corporifica uma visão da sociedade inteiramente ordenada:

“As elites patrícias a presidem com inteligência e distinção; artesãos distintos comandam a produção de maneira harmoniosa e paternalista; senhoras governam famílias bem-ordenadas em lares bem-ordenados recheados de objetos preciosos e de bom gosto. O resto da população – os 90% que criavam a riqueza – não é vista em parte alguma” (p. 149).

A depressão e a ampliação das tensões sociais mudaram a forma como o passado era representado publicamente. Roosevelt iniciou uma série de esforços governamentais que indicavam o desejo do estado em também ter parte na configuração do passado, e que dessa forma desafiava o monopólio da elite patrícia sobre a memória nacional. Agências governamentais puseram em campo milhares de arquitetos, escritores, fotógrafos e historiadores que produziram grande volume de registros do “patrimônio” dos EUA; a tendência geral era de considerar dignos de registro não só os vestígios ligados a cidadãos ilustres do passado, mas tudo o que fosse importante para as comunidades. Numa chave populista (p. 149) o governo dos EUA passa a “incluir as pessoas comuns na categoria de atores históricos” (p. 150). A Segunda Guerra pôs termo a esse avanço governamental. Após a guerra, o movimento trabalhista e a oposição foram silenciados, e as corporações norte-americanas tomaram o mundo e conquistaram também hegemonia interna. O “American Way of Life” minimizou e distorceu o passado; empreendimentos financiados e dirigidos por corporações apagaram do passado tudo o que remetesse a lutas sociais e às relações de produção; a Guerra Fria se encarregou de tingir com opróbio – sob o rótulo de “antiamericanismo” – tudo o que remetesse a movimentos sociais.
Em resumo, os usos do passado seguiram servindo às elites; elementos incômodos do passado, como as ideias de “igualdade”, “direito à revolução” e “anticolonialismo” eram convenientemente deixadas de lado. Eram eles, os novos manipuladores do passado americano, que procuravam impor interpretações de conceitos como “liberdade”, “liberdade de expressão” e insistiam na necessidade da existência de uma “aristocracia natural” para salvaguardar a sociedade.
A partir de 1953 – no governo de Eisenhower – a cidadela colonial fundada por Rockefeller passou a ser usada como ponto de chegada em visitas oficiais: mais de cem chefes de estado foram recebidos ali, antes de serem encaminhados para Washington. No final daquela década, a cidadela empregava 1900 pessoas em suas atividades.

O progresso seguiu seu curso: em 1966, metade dos itens listados como patrimônio 30 anos antes, pelos profissionais a serviço do New Deal, estava destruído, abrindo espaço para empreendimentos imobiliários e estradas. Grupos sociais ameaçados de remoção e alguns segmentos de cientistas sociais começaram a protestar contra o processo; redes sociais e comunidades eram destroçadas por esse sistema, diziam. “As novas formas residenciais, argumentavam, negavam as necessidades humanas de conexão social; tanto os subúrbios quanto os projetos minavam as identidades sociais e individuais ao extrair as pessoas do contato com o fluxo da história” (p. 154).
Logo investiram também contra os museus e a representação oficial do passado:
“Não se permite que o passado da América coexista com o presente. Ele está sempre entre aspas e revestido com roupas fantasiosas... um objeto isolado de reverência e prazer... desligado, remoto e essencialmente sem vida” (David Lowenthal apud p. 154). Acusavam os museus de exibir uma história pasteurizada, uma repetição no passado da aura dos subúrbios do presente. Os construtores de subúrbios, de fato, haviam se inspirado nas cidadelas dedicadas ao passado idealizado: os EUA foram “Williamsburguerizados” (p. 154). Grupos minoritários ou marginalizados – feministas, ativistas negros, pacifistas – passaram a produzir estudos voltados a desmontar a visão pasteurizada da história conforme exibida nas cidadelas e sancionada oficialmente.
Museus tendem a moldar o passado de maneira a privilegiar a visão de mundo das elites.

“É claro que os museus não podem ser acusados de terem lido o passado seletivamente. Afinal de contas, não existe essa coisa chamada ‘o passado’. Toda a história é produto – fruto de deliberada seleção, ordenamento e valorização de eventos, experiências e processos do passado. A objeção a ser feita é na verdade a respeito da forma como os museus incorporaram seleções e silenciamentos, falsificando a realidade e se tornando instrumentos da hegemonia de classe. Os museus geraram formas convencionais de enxergar a história que justificam a missão histórica dos capitalistas e conferem uma aura de naturalidade e inevitabilidade a sua autoridade. Talvez mais importante, eles criaram formas de não ver. Ao obscurecerem as origens e desenvolvimentos da sociedade capitalista, erradicando a exploração, o racismo, o sexismo e a luta de classes dos registros históricos, acobertando a existência de tradições e culturas populares oposicionistas amplamente difundidas, e por negarem à maioria da população o papel de escultores da história, os museus inibem a capacidade de imaginar ordens sociais alternativas – no passado e no futuro” (p. 158).

O que pensam as pessoas que visitam museus? Como elas recebem e interpretam as mensagens que eles emanam? Pouco se sabia disso, segundo Wallace. Já a respeito dos motivos que levam as pessoas aos museus ele tem um pouco mais a dizer: porque há tempo livre e meios para chegar até eles; porque eles são agradáveis e seguros, e adequados “para todas as idades”. Talvez porque os habitantes de subúrbios estéreis sintam a necessidade de contato com “autenticidade e escala humana”. Talvez porque sintam falta da conexão temporal com o passado, agora que vivem numa paisagem que terraplanou tudo e revestiu a terra com novas paisagens. Nesse caso, os museus corresponderiam aos zoológicos, que só se tornaram populares depois que as pessoas se afastaram do convívio cotidiano com animais.
De todo modo, o apego dos norte-americanos pelo passado é reduzido. Ainda que restem vestígios de culturas e tradições de resistência, a América corporativista do pós-guerra foi mais bem-sucedida do que quase qualquer outro país do mundo na tarefa de remodelar o passado de maneira a eliminar referências a pontos potencialmente subversivos.
Wallace encerra sua análise exortando por um posicionamento mais politizado por parte dos trabalhadores de museus, especialmente naquela altura dos anos 80 em que se observava “ofensivas da direita”, que procuravam apagar os ganhos recentes obtidos por grupos historicamente marginalizados. Os museus deveriam, acima de tudo, “considerar sua missão fundamental ajudar as pessoas a se tornarem agentes da história historicamente informados” (p. 161).

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