terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O Miraculoso ano de 1989

Todas as datas são convencionais, mas a de 1989 é um pouco menos convencional que as outras. A queda do Muro de Berlim simboliza, para todos os contemporâneos, a queda do socialismo. "Triunfo do liberalismo, do capitalismo, das democracias ocidentais sobre as vãs esperanças do marxismo", este é comunicado vitorioso daqueles que escaparam por pouco do leninismo. Ao tentar acabar com a exploração do homem pelo homem, o socialismo multiplicou-a indefinidamente. Estranha dialética esta que ressuscita o explorador e enterra o coveiro após haver ensinado ao mundo como fazer uma guerra civil em grande escala. O recalcado retorna e retorna em dobro: o povo explorado, em nome do qual a vanguarda do proletariado reinava, volta a ser um povo; as elites com seus longos dentes, que pareciam ser desnecessárias, voltam com toda força para retomar, nos bancos,nos comércios e nas fábricas seu antigo trabalho de exploração. O Ocidente liberal não se contém de tanta alegria. Ele ganhou a guerra fria. 
Mas este triunfo dura pouco. Em Paris, Londres e Amsterdã, neste mesmo glorioso ano de 1989, são realizadas as primeiras conferências sobre o estado global do planeta, o que simboliza, para alguns observadores, o fim do capitalismo e de suas vãs esperanças de conquista ilimitada e de dominação total sobre a natureza. Ao tentar desviar a exploração do homem pelo homem para uma exploração da natureza pelo homem, o capitalismo multiplicou indefinidamente as duas. O recalcado retorna e retorna em dobro: as multidões que deveriam ser salvas da morte caem aos milhões na miséria; as naturezas que deveriam ser dominadas de forma absoluta nos dominam de forma igualmente global, ameaçando a todos. Estranha dialética esta que faz do escravo dominado o mestre e dono do homem, e que subitamente nos informa que inventamos os ecocídios e ao mesmo tempo as fomes em larga escala.
A simetria perfeita entre a queda do muro da vergonha e o desaparecimento da natureza ilimitada só não é vista pelas ricas democracias ocidentais. De fato, os socialismos destruíram ao mesmo tempo seus povos e seus ecossistemas, enquanto que os do Ocidente setentrional puderam salvar seus povos e algumas de suas paisagens destruindo o resto do mundo e jogando os outros povos na miséria. Dupla tragédia: os antigos socialismos pensam poder remediar seus dois problemas imitando o Oeste; este acredita ter escapado aos dois e poder, na verdade, ensinar lições enquanto deixa morrer a Terra e os homens. Acredita ser o único a conhecer o truque que permite ganhar sempre, justamente quando talvez tenha perdido tudo.
Após esta dupla digressão cheia de boas intenções, nós, modernos, aparentemente perdemos um pouco de confiança em nós mesmos. Teria sido melhor não tentar acabar com a exploração do homem pelo homem? Teria sido melhor não tentar tornar-se mestre e dono da natureza? Nossas mais altas virtudes foram colocadas a serviço desta tarefa dupla, uma, do lado da política, outra do lado das ciências e tecnologias. E no entanto nos voltaríamos tranquilamente para nossa juventude entusiasta e comportada, da mesma forma como os jovens alemães se voltam para seus pais grisalhos: "A que ordens criminosas estávamos obedecendo?" "Poderemos dizer que não sabíamos?"
Esta dúvida sobre o bom fundamento das boas intenções faz com que alguns de nós tenham se tornado reacionários de duas formas diferentes: é preciso não mais querer acabar com a dominação do homem pelo homem, dizem alguns; é preciso não mais tentar dominar a natureza, dizem os outros. Sejamos definitivamente anti-modernos, dizem todos.
Por outro lado, a expressão vaga de pós-modernismo resume bem o ceticismo mal resolvido daqueles que recusam estas duas reações. Incapazes de acreditar nas promessas duplas do socialismo e do "naturalismo", os pós-modernos também evitam duvidar totalmente delas. Ficam suspensos entre a dúvida e a crença, enquanto esperam o fim do milênio.
Enfim, aqueles que rejeitam o obscurantismo ecológico ou o obscurantismo antissocialista, e que não ficam satisfeitos com o ceticismo dos pós-modernos, decidem continuar como se nada ocorresse e permanecem decididamente modernos. Continuam acreditando nas promessas das ciências, ou nas da emancipação, ou nas duas. Contudo, sua crença na modernização hoje não soa muito bem nem na arte, nem na economia, nem na política, nem na ciência, nem na técnica. Nas galerias de arte, assim como nas salas de concertos, ao longo das fachadas dos imóveis assim como nos institutos de desenvolvimento, é possível sentir que o espírito da coisa não está mais presente. A vontade de ser moderno parece hesitante, algumas vezes até mesmo fora de moda.
Quer sejamos anti-modernos, modernos ou pós-modernos, somos todos mais uma vez questionados pela dupla falência do miraculoso ano de 1989. Mas iremos retomar nossa linha de pensamento se considerarmos este ano justamente como uma dupla falência, como duas lições cuja admirável simetria nos permite compreender de outra forma todo nosso passado.
E se jamais tivermos sido modernos?


(Bruno Latour - "Jamais fomos modernos")

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