Esta publicação busca disponibilizar as raras aquarelas que Joaquim Cândido Guillobel produziu em sua passagem pelo Maranhão, nos anos finais da experiência colonial brasileira, contidas em dois álbuns [Os volumes encontram-se atualmente em poder da Biblioteca Brasiliana
Guita e José Mindlin, em São Paulo. As reproduções digitais aqui
apresentadas foram produzidas e disponibilizadas pela equipe daquela
instituição. Agradeço especialmente às bibliotecárias Jeanne Beserra
Lopez e Daniela Pires.]. A despeito de ser um material valioso enquanto fonte para historiadores e educadores, tem tido escassa circulação. Trata-se, segundo especialistas, das últimas aquarelas produzidas por aquele militar português.
Informações aprofundadas a respeito do autor das aquarelas aqui reproduzidas - além de proveitosas discussões a respeito do estatuto da iconografia enquanto fonte para os historiadores - podem ser encontradas na dissertação de mestrado de Eneida Maria Mercadante Sela, apresentada na Universidade Estadual de Campinas no ano de 2001. O objetivo maior de Sela era estabelecer formas relevantes de habilitar fontes imagéticas como subsídios válidos ao trabalho dos historiadores. Para tanto, ela desenvolveu um exercício com as “figurinhas” de Joaquim Cândido Guillobel. Em primeiro lugar, Sela estabeleceu uma discussão sobre as formas de uso desse tipo de fontes ao longo do tempo, destacando modalidades analíticas recentemente introduzidas. No passado, o olhar do viajante foi valorizado pelos historiadores por sua capacidade desnaturalizante, ou seja, por seu poder de enxergar e registrar aquilo que para os locais, por comum, era invisível. A historiografia recente passou a considerar mais detidamente o autor das observações, tanto quanto aquilo que ele registrou sobre suas andanças. A formação do observador, sua condição enquanto partícipe de uma cultura própria, sua experiência individual, as tradições de seu ofício, o contato com os outros, todo esse conjunto circunstancial informa seu olhar e imprime-se em suas observações. Mais do que a verdade, o olhar de Guillobel – como o de qualquer observador - instaura uma interpretação do que vê: tanto quanto o brasileiro retratado, as figurinhas mostram o português que o retratou, mesmo que este nunca esteja colocado visualmente diante de nós. Há na iconografia dos viajantes, nas palavras de Ana Maria de Moraes Beluzzo, “uma história de pontos de vista”, uma “espessa camada da representação”; há versões, mais que fatos (BELUZZO, 1994, p. 13). Torna-se necessário um delicado e sutil exercício de desconstrução do olhar do observador, antes de qualquer consideração mais objetiva sobre sua produção (um procedimento, afinal, que se mostra útil para qualquer tipo de fonte).
Em sua busca por desconstruir o olhar de Guillobel, Sela volta-se para as condições de produção das figurinhas. Em primeiro lugar, ela demonstra a ligação da obra do português com a longa tradição editorial dos volumes ilustrados sobre hábitos e costumes. Tal gênero tornou-se popular na Europa a partir do século XVI, o que se pode perceber pela multiplicação de títulos dedicados ao tema. Nestas publicações interessava, sobretudo, retratar os lugares sociais, étnicos e de gêneros, determinados especialmente pelos costumes e hábitos (termos polissêmicos que se referem tanto às vestimentas quanto aos comportamentos recorrentes). Tal qual nas aquarelas de Guillobel, nesta tradição editorial as figuras humanas aparecem não na condição de indivíduos, mas como espécie. Cada figura é a síntese de uma ocorrência que, pela contínua repetição, acaba formando um tipo. Além da literatura de hábitos e costumes, Sela demonstra que o trabalho de Guillobel esteve também fortemente associado à literatura de viagem, gênero em alta na Europa iluminista. Havia demanda para obras que retratassem o “mundo natural” das terras exóticas, o que incluía os seus habitantes, os “nativos”. O trabalho de Guillobel, portanto, se situa na confluência destes dois gêneros literários. A formação profissional do artista também foi analisada pela autora: Guillobel era engenheiro militar, numa época em que tal carreira incluía estudos sobre desenho e pintura. A repetição que se observa nos gestos e nas posturas dos corpos retratados por Guillobel em suas aquarelas, sugere Eneida, é um indício desta formação profissional: seria indicativa da introjeção de fórmulas para desenhar tipos humanos obtidas nas aulas.
As aquarelas de Guillobel são minúsculas, delicadas e extremamente detalhadas. A observação dos originais suscita admiração pela destreza manual do autor. São incontáveis pinceladas diminutas, meticulosas e minuciosas que constroem sombras e volumes, dobras nos tecidos, nuances nos músculos e feições, texturas nos cabelos. As intenções de Guillobel aparecem quando se percebe a recorrência de alguns elementos e o cuidado dispensado a alguns detalhes. A cor da pele é estudada em suas variações, apresentando-se nas pranchas exemplares de diversos tons. A estrutura corporal dos personagens é cuidadosamente evidenciada: a musculatura do torso, dos braços, pernas e pescoços, a textura e o comprimento dos cabelos, a formosura, a generosidade e a abundância dos seios, as particularidades das feições. O vestuário e os acessórios corporais são sumariamente descritos em suas cores, comprimentos e cortes; destaca-se a presença de jóias, às vezes em abundância, os extravagantes cachimbos, os instrumentos de trabalho (cabaças, cuiambucas, vasos de barro, cofo, taboca, rede). Guillobel explicita a falta de calçados: todas as figuras estão descalças, e a única que poderia decerto apresentar os pés cobertos – a sinhá - os oculta sob saias ramalhudas, no aconchego da rede de taboca. As aquarelas maranhenses de Guillobel apresentam dicotomias visuais como forma de demarcar comportamentos. O asseio fica patenteado no estado dos cabelos, sujeitos ao binômio penteado/desgrenhado e das roupas, nos detalhes como bordados, no comprimento e adequação à tarefa de cobrir os corpos.
O álbum mais antigo, de 1820, apresenta as imagens numa sequência que parece conter um plano narrativo. Excetuando-se a última prancha, que destoa do conjunto, parece haver uma ideia de sucessão ou evolução neste álbum: do mais escuro (nu e menos asseado) para o mais claro (vestido/asseado); as figuras das imagens vão se clareando gradualmente, página a página, culminando na sinhazinha carregada na rede, branquíssima. Há ainda uma nítida associação entre tonalidade da pele e exercício de trabalho: os indivíduos que estão envolvidos em situações de trabalho são representados com peles mais escuras; além disso, são dotados de membros poderosos, numa associação entre trabalho/força muscular.
Informações aprofundadas a respeito do autor das aquarelas aqui reproduzidas - além de proveitosas discussões a respeito do estatuto da iconografia enquanto fonte para os historiadores - podem ser encontradas na dissertação de mestrado de Eneida Maria Mercadante Sela, apresentada na Universidade Estadual de Campinas no ano de 2001. O objetivo maior de Sela era estabelecer formas relevantes de habilitar fontes imagéticas como subsídios válidos ao trabalho dos historiadores. Para tanto, ela desenvolveu um exercício com as “figurinhas” de Joaquim Cândido Guillobel. Em primeiro lugar, Sela estabeleceu uma discussão sobre as formas de uso desse tipo de fontes ao longo do tempo, destacando modalidades analíticas recentemente introduzidas. No passado, o olhar do viajante foi valorizado pelos historiadores por sua capacidade desnaturalizante, ou seja, por seu poder de enxergar e registrar aquilo que para os locais, por comum, era invisível. A historiografia recente passou a considerar mais detidamente o autor das observações, tanto quanto aquilo que ele registrou sobre suas andanças. A formação do observador, sua condição enquanto partícipe de uma cultura própria, sua experiência individual, as tradições de seu ofício, o contato com os outros, todo esse conjunto circunstancial informa seu olhar e imprime-se em suas observações. Mais do que a verdade, o olhar de Guillobel – como o de qualquer observador - instaura uma interpretação do que vê: tanto quanto o brasileiro retratado, as figurinhas mostram o português que o retratou, mesmo que este nunca esteja colocado visualmente diante de nós. Há na iconografia dos viajantes, nas palavras de Ana Maria de Moraes Beluzzo, “uma história de pontos de vista”, uma “espessa camada da representação”; há versões, mais que fatos (BELUZZO, 1994, p. 13). Torna-se necessário um delicado e sutil exercício de desconstrução do olhar do observador, antes de qualquer consideração mais objetiva sobre sua produção (um procedimento, afinal, que se mostra útil para qualquer tipo de fonte).
Em sua busca por desconstruir o olhar de Guillobel, Sela volta-se para as condições de produção das figurinhas. Em primeiro lugar, ela demonstra a ligação da obra do português com a longa tradição editorial dos volumes ilustrados sobre hábitos e costumes. Tal gênero tornou-se popular na Europa a partir do século XVI, o que se pode perceber pela multiplicação de títulos dedicados ao tema. Nestas publicações interessava, sobretudo, retratar os lugares sociais, étnicos e de gêneros, determinados especialmente pelos costumes e hábitos (termos polissêmicos que se referem tanto às vestimentas quanto aos comportamentos recorrentes). Tal qual nas aquarelas de Guillobel, nesta tradição editorial as figuras humanas aparecem não na condição de indivíduos, mas como espécie. Cada figura é a síntese de uma ocorrência que, pela contínua repetição, acaba formando um tipo. Além da literatura de hábitos e costumes, Sela demonstra que o trabalho de Guillobel esteve também fortemente associado à literatura de viagem, gênero em alta na Europa iluminista. Havia demanda para obras que retratassem o “mundo natural” das terras exóticas, o que incluía os seus habitantes, os “nativos”. O trabalho de Guillobel, portanto, se situa na confluência destes dois gêneros literários. A formação profissional do artista também foi analisada pela autora: Guillobel era engenheiro militar, numa época em que tal carreira incluía estudos sobre desenho e pintura. A repetição que se observa nos gestos e nas posturas dos corpos retratados por Guillobel em suas aquarelas, sugere Eneida, é um indício desta formação profissional: seria indicativa da introjeção de fórmulas para desenhar tipos humanos obtidas nas aulas.
As aquarelas de Guillobel são minúsculas, delicadas e extremamente detalhadas. A observação dos originais suscita admiração pela destreza manual do autor. São incontáveis pinceladas diminutas, meticulosas e minuciosas que constroem sombras e volumes, dobras nos tecidos, nuances nos músculos e feições, texturas nos cabelos. As intenções de Guillobel aparecem quando se percebe a recorrência de alguns elementos e o cuidado dispensado a alguns detalhes. A cor da pele é estudada em suas variações, apresentando-se nas pranchas exemplares de diversos tons. A estrutura corporal dos personagens é cuidadosamente evidenciada: a musculatura do torso, dos braços, pernas e pescoços, a textura e o comprimento dos cabelos, a formosura, a generosidade e a abundância dos seios, as particularidades das feições. O vestuário e os acessórios corporais são sumariamente descritos em suas cores, comprimentos e cortes; destaca-se a presença de jóias, às vezes em abundância, os extravagantes cachimbos, os instrumentos de trabalho (cabaças, cuiambucas, vasos de barro, cofo, taboca, rede). Guillobel explicita a falta de calçados: todas as figuras estão descalças, e a única que poderia decerto apresentar os pés cobertos – a sinhá - os oculta sob saias ramalhudas, no aconchego da rede de taboca. As aquarelas maranhenses de Guillobel apresentam dicotomias visuais como forma de demarcar comportamentos. O asseio fica patenteado no estado dos cabelos, sujeitos ao binômio penteado/desgrenhado e das roupas, nos detalhes como bordados, no comprimento e adequação à tarefa de cobrir os corpos.
O álbum mais antigo, de 1820, apresenta as imagens numa sequência que parece conter um plano narrativo. Excetuando-se a última prancha, que destoa do conjunto, parece haver uma ideia de sucessão ou evolução neste álbum: do mais escuro (nu e menos asseado) para o mais claro (vestido/asseado); as figuras das imagens vão se clareando gradualmente, página a página, culminando na sinhazinha carregada na rede, branquíssima. Há ainda uma nítida associação entre tonalidade da pele e exercício de trabalho: os indivíduos que estão envolvidos em situações de trabalho são representados com peles mais escuras; além disso, são dotados de membros poderosos, numa associação entre trabalho/força muscular.
Estão reproduzidos a seguir os dois únicos álbuns até hoje conhecidos que Joaquim Cândido Guillobel produziu no Maranhão. O primeiro deles é intitulado “Usos e costumes de alguns habitantes da cidade do Maranhão – Copiados do Natural por J.C. Guillobel, em 1820”; trata-se de uma encadernação de 10 páginas não numeradas, sendo que a primeira e as 3 últimas estão em branco; neste álbum encontram-se 5 pranchas aquareladas. O segundo álbum intitula-se “Coleção dos usos e costumes dos habitantes da cidade de S. Luíz do Maranhão – Copiados e desenhados do Natural por J.C. Guillobel em 1822”; este segundo álbum contem uma série de 3 pranchas aquareladas, que são, como fica claro, cópias de algumas daquelas apresentadas no álbum anterior, com mudanças em pequenos detalhes (cores, feições dos personagens, decorações dos tecidos, acessórios etc.).
REFERÊNCIAS
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. São Paulo : Metalivros; Salvador : Odebrecht, 1994.
SELA, Eneida Maria Mercadante. Desvendando Figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. 2001. Dissertação (Mestrado em História Social do Trabalho) Universidade Estadual de Campinas, 145 p.
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. São Paulo : Metalivros; Salvador : Odebrecht, 1994.
SELA, Eneida Maria Mercadante. Desvendando Figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. 2001. Dissertação (Mestrado em História Social do Trabalho) Universidade Estadual de Campinas, 145 p.
Documentos
Usos e costumes de alguns habitantes da cidade do Maranhão – Copiados do Natural por J.C. Guillobel, em 1820. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
Coleção dos usos e costumes dos habitantes da cidade de S. Luíz do Maranhão – Copiados e desenhados do Natural por J.C. Guillobel em 1822. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
Daniel Rincon Caires
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