Alcântara é um playground literário, uma academia onde escribas
dos mais variados jaezes se exercitam, percorrendo, como numa prova de
obstáculos, uma sucessão de lugares comuns cristalizados pela tradição. São marcos
obrigatórios que se tem considerado como etapas inescapáveis a qualquer
trabalho que se dedique à cidade, quer físicos (o pelourinho, os “palácios do
Imperador”, as Igrejas e capelas, as ruínas), quer imateriais (as “festas
tradicionais” e uma certa forma decadentista de observar a trajetória da cidade
no tempo). Aos olhos destes literatos, Alcântara oferece um percurso narrativo canônico
que, à maneira de um mote clássico, tem estações obrigatórias e paradas
predeterminadas, restando ao escritor se destacar pela forma como percorre esses trajetos. Há pontos em comum a esses
atletas das letras: a perspectiva estrangeira, a ótica elitista e urbana, e o
fato de serem incapazes de superar os preconceitos que a tradição erigiu, noções
inconscientes que lhes aparecem como sussurros
das ruínas.
Retomemos aqui considerações fecundas
presentes num texto essencial a todos os que desejam compreender o Maranhão: Alfredo
Wagner Berno de Almeida demonstra que há cerca de 200 anos uma geração de
intelectuais gestou a noção de que a riqueza da região se situa num passado em
vias de desaparecer, e que se vive num presente marcado pela ruína e
decadência. Atrelado a essas noções vem a ideia de que é necessário conceber e
praticar medidas de recuperação, saneamento e regeneração, que reconduzam, no
futuro, àquela mítica situação ideal do passado.
Esse fenômeno não é, aliás,
exclusividade do Maranhão. O movimento nostálgico de se lamentar a perda de uma
situação positiva situada num passado que ameaça desaparecer frente às mudanças
do mundo é ancestral. No capítulo Decadência,
em sua obra História e Memória,
Jacques Le Goff mapeou a origem do termo e do conceito. A palavra decadência parece não ter existido entre
gregos e romanos da Antiguidade – foi criação da Idade Média - mas o conceito
sim. Na Antiguidade, exprimia-se tal ideia pelo uso de termos concretos (verbos
e particípios, no lugar de abstrações): falava-se em “deslize”, “queda”,
“aniquilamento”. Hesíodo, no século VII a.C., registrou uma visão da cosmogonia
vigente que espelhava uma visão decadentista do mundo. Em “O trabalho e os
dias”, expôs a “deterioração da condição humana” por meio do mito da Era de
Ouro: como resposta a uma provocação, as divindades lançaram a desgraça sobre a
humanidade, fazendo desaparecer os tempos de saúde, fartura e bonança, semeando
gerações progressivamente imperfeitas, pejando os homens de padecimentos.
Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do
Paraíso, apontou a existência da vertente judaico-cristã dessa visão
pessimista do mundo atual em contraste com um passado ideal, afirmando que “a
ideia da corrupção deste nosso mundo e da natureza, em consequência do Pecado e
da Queda, acha-se implantada em todo o sentimento e pensamento cristãos, e
deita claramente suas raízes nas Sagradas Escrituras”. O conceito de
decadência, conclui Le Goff, ofereceu a diversas sociedades ao longo do tempo
uma leitura da história onde se critica o presente em nome de valores
realizados no passado. De todo modo, em suas palavras, “o flagrante caráter
ideológico do conceito de decadência levou a historiografia contemporânea a
abandoná-lo em benefício do conceito de crise”.
No Brasil, conforme apontam diversos estudos, esse sentimento de nostalgia,
essa “retórica da perda”, informou a fundação e a atuação dos órgãos
governamentais responsáveis pela eleição e preservação do patrimônio histórico
nacional. O singular no caso maranhense talvez seja a profundidade e a extensão
que o decadentismo alcançou, bem como sua durabilidade no tempo. Como
demonstrou o citado Alfredo Wagner, essa “ideologia da decadência” contaminou
os discursos e as práticas de um enorme grupo de pessoas, na Província e mais
tarde no Estado, impregnando a produção literária e intelectual, o pensamento e
a atuação dos governantes e a própria mentalidade de vastas parcelas da
população maranhense.
O livro aqui resenhado atesta a
impressionante vitalidade de tal paradigma. Sebastião Moreira Duarte,
responsável pelos textos que acompanham as fotografias de Albani Ramos no livro
“Alcântara: alma e história”, revisitou as posições dos autores decadentistas.
Com sua prosa licorosa, Duarte narra o apogeu e a decadência de Alcântara, num
clima de gostosa nostalgia. Avisa, já no introito, que Alcântara é “uma cidade
do passado, que guarda em solidão o pudor de suas ruínas”, uma “Tróia
brasileira” onde, em contraste com a ludovicense Atenas, impera a “melancolia
indefinível, a saudade desolada, a precisa expressão do sentido da perda”. Para
ele, “Alcântara vive de ser morta” (p. 12).
O autor reedita todas as citações
obrigatórias, empregadas sucessivamente pelos autores tradicionais, para
“demonstrar” a decadência: repete as palavras de Antônio Bernardino Pereira
Lago, de Raimundo Gaioso, de Spix e Martius, que em suas passagens pela região no
início do século XIX deixaram suas impressões sobre a situação local. Refaz-se
o trajeto narrativo tradicional, que já fora trilhado por Jerônimo de Viveiros
e Antônio Lopes: fala-se da “velha Tapuitapera”, da chegada dos franceses, da
fundação da Vila e de outros eventos considerados importantes, presentes em praticamente
todas as narrativas sobre a cidade. Em ambos os casos, tanto na citação das
velhas fontes quanto na repetição dos caminhos trilhados pelos autores “clássicos”,
Duarte remete às práticas literárias em voga no passado, em que os que
escreviam buscavam revestir seus textos de autoridade por meio da associação
com autores já consagrados e reconhecidos.
Duarte pinta com traços vivos a
imagem idealizada que faz da antiga sociedade escravista imperial, responsável,
em sua análise, por elevar a cidade ao seu “auge”. Sob as luzes vacilantes dos
lampiões de gás (que a cidade, aliás, nunca
teve), ele faz desfilar suas “caleças e palanquins vagarosos, sinhazinhas
preguiçosas, barões de bolso e barriga estufados, mucamas empoadas, negros que
se recusam juntar-se com negras de outras comarcas, clérigos fornicadores” (p. 13
e 16). Parafraseando Jerônimo de Viveiros, Duarte se queixa de saudades dos palanquins, das “cadeirinhas de arruar”
que transformavam homens em animais de carga para deleite de umas poucas
“sinhazinhas preguiçosas” e barões abastados. O autor lamenta também que os
moradores atuais de Alcântara se recusem a assumir o papel que a cidade, um “palco
fixo, cenário que não se renova” (p.12), parece exigir deles.
A atitude de Duarte repete uma
representação da cidade de Alcântara que vem aparecendo continuamente nos
trabalhos dos literatos, poetas, jornalistas e “historiadores” que dela fazem
seu objeto. Constroi uma visão açucarada da sociedade escravista dos
oitocentos, e elide, neste movimento, a violência, a opressão e a extrema
concentração de riqueza experimentadas naquele período. Para uma leitura mais
“realista” do cotidiano alcantarense oitocentista, deve-se procurar os autos
criminais, os códigos de posturas municipais, os testamentos e inventários
deixados pelos senhores e senhoras de terras e escravos, onde famílias de
pessoas escravizadas eram friamente apartadas entre os quinhões dos herdeiros.
Na própria citação empregada pelo autor pode-se ver o caráter excludente daquela
sociedade: Antônio Bernardino Pereira do Lago fala da existência de 60 casarões
senhoriais numa cidade que abrigava 8000 almas. Com algumas simples operações
matemáticas pode-se perceber que, para a maior parte da população, casarões
eram realidades inatingíveis.
Por outro lado, enquanto
contempla os “eleitos”, Duarte omite de sua narrativa, e dessa forma, da
“história” de Alcântara, as trajetórias dos milhares de indivíduos que, a
partir do que os autores clássicos consideram o “ponto final” da história da
cidade, deram prosseguimento à vida dela. Os ex-escravos, caboclos, pobres
livres, forros, enfim, os camponeses de Alcântara tornaram-se os novos senhores
da cidade, assumindo a propriedade das terras, reorganizando as estruturas
produtivas e sociais. A análise desse momento pós-latifundiário da história da
cidade, aliás, tem sido feita não por historiadores, mas por antropólogos e
cientistas sociais.
Duarte deixa de reconhecer a
validade desse período tão fértil da trajetória da cidade, um momento, reputado
por ele, em que “já nada mais se esperava, e a cidade apenas respirava à base
da produção material e simbólica, da maioria de sua população negra” (p.18).
Desse marasmo a velha Tapuitapera só sairia graças à iniciativa saneadora -
ideia, lembremos, inerente à concepção decadentista – de se instalar no
território local uma Base de Lançamento de Foguetes. Alcântara tornava-se,
assim, “a cidade que renasce para o espaço” (p. 18).
Com essa interpretação, Duarte
fecha o circuito do eixo narrativo tradicional. Como a um Cristo, o autor
conduziu a trajetória da cidade pelos “passos da paixão”: se aquele foi
crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos e ressucitou ao
terceiro dia, a cidade teve um passado de fausto, padeceu sob a decadência, mas
renasceu graças às medidas de regeneração trazidas pelo governo e seus parceiros da iniciativa privada. Esquece-se
o autor de considerar que as “medidas de regeneração” mimosamente descritas em
sua obra, e que começaram com a mercantilização das terras dos territórios
étnicos na Baixada Maranhense nos anos 1970, atingindo um ápice de ousadia com
a desapropriação de mais da metade do território do município de Alcântara para
a instalação da tão propalada Base – empreendimentos, note-se, realizados
justamente na esteira da Ditadura Militar - provocaram uma das maiores
tragédias humanas dos últimos 50 anos, despejando dezenas de milhares de
pessoas nas periferias de São Luís e cidades circunvizinhas, ameaçando destruir
culturas centenárias. A enormidade dos prejuízos humanos rendeu um espinhoso
processo judicial em que a população atingida litiga contra o Estado brasileiro
em cortes internacionais.
O texto de Sebastião Moreira
Duarte, enfim, repousa num já repisado berço de representações sobre a
trajetória do Maranhão e de Alcântara. Ela encontra ressonância nos discursos
emanados dos órgãos oficiais de cultura, e está presente nas narrativas
oferecidas aos turistas que visitam a região; tais pessoas, quando retornam
para seus locais de origem, certamente estarão levando consigo a ideia de que
acabaram de visitar uma região decadente, um resto de tempos melhores que se
foram. Vão sentir saudades da sinhá e do sinhô. O mesmo pode ser dito daqueles leitores que se deixarem
convencer pelas belas palavras de Sebastião Moreira Duarte.
RAMOS, Albani; DUARTE, Sebastião Moreira. Alcântara: alma e história. São Luís:
Instituto Geia, 2011.
Daniel Rincon Caires
Especialista em História
Pesquisador do Instituto Brasileiro de
Museus - IBRAM
(Este texto foi
publicado na Revista Eletrônica História em Reflexão, do Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, em 2012. Foi publicado também no livro "Estudos Alcantarenses - Artigos e Ensaios", de 2015)
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