Em depoimento de homenagem, Roberto Schwarz escreve sobre as contradições armazenadas na figura ímpar do recém-falecido Maurício Segall.
Por Roberto Schwarz.
Vou ser breve. Para entender a pessoa de
Maurício Segall é preciso, na minha opinião, considerá-lo como um pacote
explosivo de tensões. Por um lado, descendente de uma família rica e
filho de Lasar Segall, um dos grandes pintores de nosso tempo. Por
outro, comunista convicto e radical, numa acepção nobre, que vai além da
filiação partidária e que a evolução histórica do comunismo deixou sem
base.
Essa bomba de contradições é tornada mais
potente por um temperamento vulcânico, à moda russa, e pelo desejo
exasperado de integridade e de coerência. Tudo isso misturado, mais a
extraordinária energia física, fizeram dele um homem evidentemente de
exceção. O seu aspecto grão-burguês aparecia na naturalidade com que
mandava e na sobriedade “no nonsense” com que considerava as
questões de interesse material. A verdade é que, entre o materialismo de
proprietário e a clareza do administrador de esquerda, responsável pelo
governo de uma instituição, havia mais coisas em comum do que
costumamos admitir.
Por sua vez, a devoção ao acervo
pictórico do pai, tratado como um patrimônio da humanidade, da cidade ou
da nação, e não da família, não tinha nada de burguesa. A generosidade
com que ele e o irmão financiaram o museu, ao qual doaram as suas
coleções Segall, de grande valor, além de imóveis e dinheiro, pertence a
um mundo surpreendente, sem mesquinharia, em que a arte conta mais do
que a propriedade.
Quanto à vertente comunista, ela se
manifestava na concepção mesma do museu. A orientação pró-moderna mas
antimercantil, empenhada na deselitização da cultura, bem como a
organização democrática, em que os funcionários têm voz e iniciativa,
apontavam para além do capitalismo. Chegados aqui, não há como não
mencionar que esses aspectos avançados da posição de Mauricio e do museu
foram historicamente derrotados pelo curso geral do mundo, que tomou o
rumo do aprofundamento da mercantilização, inclusive e notadamente da
cultura.
Para dar uma ideia do teor de conflito
nas posições de Maurício, vou contar uma anedota. Estávamos os dois
passeando na praia, quando chegamos a um conjunto de pedras enormes, que
o acaso havia equilibrado de maneira esplêndida. Cometi a imprudência
de observar que o conjunto, embora sem assinatura de artista, competia
com a escultura moderna. A resposta veio amarga e exaltada: o arranjo
natural das pedras era superior a qualquer obra de arte, pois era
acessível a todo mundo, sem o ranço elitista de museus e exposições e
sem o esnobismo e a competitividade de todo trabalho artístico. Por um
momento breve mas lancinante, aí estavam as injustiças da sociedade de
classes, que não perdoam, anulando o trabalho de vida inteira do criador
de um museu modelo de democracia. Frente à beleza das pedras e à
inaceitável desigualdade social, que subitamente se traduziam em raiva
da arte, a dedicação meticulosa e amorosa à obra do grande pintor Segall
ficava mal parada. Tivemos que espichar o passeio para que Mauricio
recuperasse a calma.
Para concluir meu depoimento, quero falar
na solidariedade de Mauricio com os amigos perseguidos pela ditadura,
solidariedade da qual eu mesmo me beneficiei para sair do Brasil.
Enquanto não foi agarrado ele próprio pela repressão, Mauricio ajudou de
muitas maneiras a luta contra a ditadura, às vezes com risco de vida.
Com sua perícia no volante e energia de touro, ele perguntava pouco e
estava sempre disponível para fazer a longa viagem de automóvel de São
Paulo à fronteira do Uruguai, para ajudar alguém a fugir. Dezesseis
horas de ida, três de descanso e mais dezesseis de volta – e a vida
continuava.
* Texto publicado originalmente no dia 2
de agosto de 2017 na Folha de São Paulo, por ocasião da morte de
Maurício Segall. Uma versão deste depoimento foi gravada na sexta-feira,
dia 28/7, por ocasião das comemorações dos 50 anos do Museu Lasar
Segall
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