Brito-Semedo, 29 Mar 14
Reedito
este post com interesse renovado por terem surgido novas informações,
nomeadamente, a foto e o retrato do intrépido marinheiro Simão,
fornecidos, respectivamente, pelo amigo e colaborador Artur Mendes e a
historiadora brasileira Fátima Jussara, formada pela USP/Brasil, que
está a pesquisar a pintura "Retrato do intrépido marinheiro Simão" do
Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Na plêiade dos filhos ilustres de Cabo Verde figura o indómito lobo
do mar Simão Manuel Alves Juliano, natural da Penha de França, da ilha
de Santo Antão, filho de Manuel Alves Juliano e de Ana dos Santos
Pedrinho que, em obediência ao natural impulso de todo o insulano,
depressa mostrou desejos de evasão e bem cedo deixou a sua terra natal.
Seu rumo? As terras de Santa Cruz, filhas de Portugal, irmãs gémeas das nossas.
Um ano após a sua chegada ao Brasil, eis o nosso Simão feito
marinheiro a bordo do vapor «Pernambucana» que, no trágico dia 8 de
Outubro de 1853, numa das suas viagens do Rio Grande do Sul para o Rio
de Janeiro naufragou próximo do Cabo de Santa Marta.
Toda a esperança de salvação se havia perdido. O quadro que se
oferecia a bordo era desolador. No vapor não havia os socorros precisos e
de terra não podiam ser enviados. As ondas encapeladas envolviam o
navio e a cada nova golfada do mar mais uma vida era perdida. As dezenas
de passageiros que se agarravam uns aos outros sobre a coberta
imploravam a salvação, mas inutilmente, porque a morte vinha rápida
surpreendê-los, sem que os auxílios de terra pudessem ser prestados.
Logo que o navio encalhara, um homem mais arrojado que todos os outros
conseguiu salvar-se a nado. Esse homem era o Simão Juliano.
Coração aberto a todos os sentimentos bons e nobres, espírito
altamente humanitário, não lhe sofreu o ânimo o ver aquelas pobres
vitimas entregues à voragem das ondas encapeladas e desprezando a vida
que havia já salvo, lançou-se outra vez à água e nadou para o navio. O
espaço que tinha a percorrer media talvez 100 metros e o intrépido
marinheiro venceu esta distância à força de coragem e de energia e
voltou à praia salvando um dos passageiros. O herói não deu a missão por
finda. Depois desta vítima salvou outra, outra e outra. Dez vezes se
lançou ao mar e dez vezes conseguiu, auxiliado por Deus que o animava,
voltar à praia trazendo sempre agarrado um dos pobres náufragos que só
encontrava aquele esforço salvador. As forças estavam exaustas. O corpo
cedeu à fadiga e o valente marinheiro, prostrado e abatido, caiu por
terra. A bordo do navio ainda restavam alguns desgraçados para quem a
última esperança se perdia de todo. Na praia, havia uma pobre mulher que
chorava, lembrando-se de dois estremecidos filhos que ainda estavam a
bordo. Deus inspirou-a e ela dirigiu-se a Simão com os olhos arrasados
de lágrimas e a voz embargada pelos soluços e apontou-lhe o navio. O
valente atleta que lutara já duas vezes com o oceano enfurecido,
lembra-se da pátria, dos seus, e de sua mãe e rolando-se pela areia para
dar calor aos membros enregelados e entorpecidos levantou-se e investiu
com as ondas. Todos os espectadores estremeceram percebendo todos que
a luta ia ser desesperada, mas momentos depois o arrojado preto voltava
trazendo mais uma criatura salva daquela hecatombe.
Não era bastante ainda!
A desventurada tinha outro filho que era preciso salvar e o valente
Simão lá voltou ao navio e pouco depois aparecia na praia entregando aos
carinhos da mãe a segunda criança!
Já nada parecia restar a bordo. Os outros tripulantes e passageiros
tinham sido devorados pelo oceano revolto. O navio, meio despedaçado,
sossobrava sempre e estava prestes a afundar-se. De súbito, ouve-se um
grito aflitivo. Era dado por um pobre cego que ainda existia a bordo e
de quem todos se haviam esquecido. O preto Simão olhou ainda outra vez
para o mar, escutou os gritos de angústia que se soltavam em torno dele e
precipitou-se no meio das ondas, cercado desta auréola divina, que
circunda os mártires de uma causa santa e boa. Deus ia com ele e
animava-o e Simão voltou são e salvo, trazendo também salvo o pobre
cego. Ainda os dois não tinham chegado à praia e já o navio desaparecera
de todo. Perto de cem pessoas haviam perecido nessa imensa catástrofe e
as treze que tinham escapado deviam a existência ao nosso herói! É
impossível contar o que se passou na praia. Simão não era um homem, não
era um herói, era um "semi-Deus", e todos se lhe rojavam aos pés
beijando-lhos reconhecidos.
O intrépido e denodado Simão Salvador, como desde então passou a
chamar-se, à sua chegada ao Rio de Janeiro, onde já era conhecido o seu
feito heróico; foi acolhido com ruidosas manifestações de admiração e
simpatia. Profundamente emocionado, com os olhos rasos de lágrimas, o
bravo Simão mal pode esboçar uma palavra de agradecimento a tanta
demonstração de apreço, que lhe era tributada, por onde passava.
Conhecedor do acto de bravura do Simão Sua Majestade o Imperador do
Brasil, dignou-se chamá-lo à sua real presença e tratou-o com todas as
honras e deferências, conferindo-lhe uma medalha de ouro, (como venera
de qualquer ordem do Seu Império) que tem no anverso a sua Imperial
Efígie e no reverso o dístico - "Ama ao próximo como a ti mesmo" (Alvará
de 9 de Dezembro de 1853).
Das próprias mãos de Sua Majestade o Imperador, recebeu Simão
Salvador a medalha. Ao impô-la no peito do valoroso marinheiro o
Imperador abraçou-o, enaltecendo as virtudes do homenageado.
As forças vivas da Capital brasileira mandaram erigir um busto na
Praça do Comércio e ainda no louvável intento de obter uma contribuição
directa do povo, como galardão do inexcedível feito praticado pelo
Simão, foi imediatamente aberta, a seu favor, uma subscrição pública
que, num curto espaço de tempo, atingiu a avultada cifra de oito contos
de reis, os quais foram postos a juro, para serem recebidos pelo mesmo
Simão, no fim de dez anos, reservando-se ao mesmo, no entanto, o
rendimento desse tão significativo apelo público.
Não poderia ser indiferente ao Governo Português os relevantes
serviços prestados por Simão Salvador e, assim, por Decreto de 14 de
Dezembro de 1853 Sua Majestade El-Rei, em «atenção ao acto de heroismo e
filantropia que praticara com grande risco da própria vida e em
testemunho público do grande apreço em que tem tão relevante serviço
prestado ã humanidade» o premiou, fazendo-lhe mercê de uma medalha de
ouro, mandada executar especialmente, a qual contem à frente a efígie
de Sua Majestade D. Maria II e no reverso ao centro, entre duas palmas —
Ao MÉRITO — FILANTROPIA — GENEROSIDADE e em volta AO SÚBDITO PORTUGUES
SIMÃO 7 de Outubro de 1853.
Mas não ficaram por aí as inequívocas provas de reconhecimento pelo
heroísmo, abnegação e filantropia do valoroso Marinheiro. Também movido
pelo mesmo desejo de agraciar «o distinto, louvável, humano e intrépido
comportamento do marinheiro Simão, que por seus extraordinários e quási
incríveis esforços salvou das vascas da morte 13 pessoas», a Real
Sociedade Humanitária do Porto concedeu-lhe a medalha de ouro de 1ª
classe que lhe foi entregue na sessão solene pública de 15 de Abril de
1854.
O já consagrado amor do caboverdeano pelo seu torrão natal não devia
deixar de também manifestar-se em Simão Salvador e, assim, quis o mesmo,
antes de ir à invicta cidade receber as homenagens que ali lhe
pretendiam tributar, vir abraçar os seus velhos e queridos pais.
Ao fechar então o ciclo das homenagens os conterrâneos de Simão
Salvador não poderam ser de forma alguma, indiferentes ao seu feito e,
por isso também honraram o benemérito e notável irmão colocando no salão
nobre dos Paços do Concelho da Ribeira Grande uma sua oleogravura,
ainda como preito do mais elevado tributo ao mérito.
A figura humanitária de Simão Salvador ladeia, naquele nobre salão as
dos venerandos e mais ilustres filhos de Santo Antão — o célebre
Químico e Professor da Universidade da Sorbonne Roberto Duarte Silva e o
laureado General do Artilharia e distinto matemático Viriato da
Fonseca.
Por morte de Simão Salvador a Câmara Municipal do Concelho da Ribeira
Grande adquiriu as medalhas do mesmo que, como relíquia, se encontram
expostas no Salão Nobre da Câmara, como glória de Santo Antão.
Praia, 22/XI/49.
Extraído do «Diário Ilustrado», de Lisboa, de 10 de Setembro de 1873, e completado por ALBERTO DE SOUSA
Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação, Nº 4 - Janeiro de 1950
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