quinta-feira, 18 de agosto de 2016

WILLIAMS, Rosalind H. Dream Worlds – Mass Consumption in Late Nineteenth-Century France. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1982.



“As consequências da revolução no consumo
O advento do consumo de massa – Na década de 1860, a jovem Denise Baudu, de 21 anos, junto a seus dois irmãos menores, que haviam se tornado órfãos recentemente, emigraram de uma aldeia da França provincial para Paris, para viver com o tio. Chegando com o raiar do dia, depois de uma noite insone sobre os bancos duros de um vagão de terceira classe, eles se puseram em busca da loja de tecidos do tio. Ruas desconhecidas os levaram a uma praça tumultuada, onde fizeram uma parada abrupta, espantados com a vista da construção mais impressionante que eles haviam visto até então: uma loja de departamentos. “Veja”, murmurou Denise para seus irmãos”. “Isso sim é que é uma loja!” Tal monumento era incomensuravelmente mais formidável que a sossegada loja de variedade da aldeia, na qual ela havia trabalhado. Ela sentiu seu coração encher-se de alegria, e esqueceu-se da fadiga, do temor, de tudo, exceto daquela visão. Diretamente à sua frente, sobre a entrada principal, duas figuras alegóricas, representando mulheres sorridentes, exibiam o emblema que trazia o nome da loja, “Au Bonheur des Dames” (À felicidade das Damas). Entrevia-se pela porta uma profusão de luvas, lenços e chapéus derramando-se de prateleiras e balcões, enquanto à distância as vitrines se estendiam ao longo da rua.
Transidos, os três jovens caminharam lentamente, olhando pasmados as vitrines. Numa janela, um intrincado arranjo de guarda-chuvas formava como que o teto de uma cabana rústica, enquanto que em outra, deslumbrantes arco-íris de sedas, cetins e veludos arqueavam-se bem acima deles. No último expositor de roupas prontas para uso, uma avalanche de rendas finas formava cascatas em segundo plano, e à frente delas piruetavam três elegantes manequins, um deles embalado num casaco de veludo ornamentado com pele de raposa prateada, outro numa capa de ópera de cashmere branco, o terceiro num sobretudo orlado de penas. As cabeças dos manequins haviam sido removidas, substituídas por grandes etiquetas de preço. Espelhos postados em ambos os lados do expositor multiplicavam infinitamente as imagens daquelas criaturas estranhas e atraentes, meio humanas, meio mercadorias, até que elas parecessem povoar a rua.
Denise despertou de sua fantasia. Ela e os irmãos ainda tinham que encontrar o tio. Pedindo informações, descobriram que estavam exatamente no quarteirão em que ele mantinha sua loja. Ela se localizava num prédio deteriorado, do outro lado da rua, onde suas três janelas escuras e vazias confrontavam austeras os mostradores brilhantes do Au Bonheur des Dames. No interior, Denise entreviu uma sala de exposição sombria, com teto baixo, o madeiramento esverdeado, e mesas atravancadas por peças de tecido empoeiradas. Ela sentiu como se contemplasse a escuridão úmida de uma caverna primeva.
Denise é a heroína da novela “Au Bonheur des Dames” (1884), de Emile Zola, que se inicia com essa narrativa da chegada dela a Paris. Seu encontro inicial com uma loja de departamentos dramatiza a forma como a sociedade oitocentista europeia como um todo viu-se subitamente confrontada por um estilo de consumo radicalmente diferente de todos os até então conhecidos. A quantidade de bens de consumo disponíveis, para a maior parte das pessoas, fora até então drasticamente limitada: alguns poucos utensílios de cozinha, empregados no preparo de uma dieta escassa e monótona, peças de mobiliário bastante gastas (cama, arca, mesa, talvez um mocho ou um banco), roupas de cama, sapatos ou tamancos, uma camisa e calças ou um vestido (e às vezes alguma vestimenta para ocasiões especiais), algumas ferramentas essenciais. E era tudo. Além disso, tais bens eram obtidos principalmente por meio de escambos ou produzidos pelos próprios usuários, de maneira que a atividade de consumo estava estreitamente ligada com a de produção. As pessoas comuns raramente usavam dinheiro, o crédito era escasso e apenas eventualmente disponível. Somente os abastados passavam tempo em lojas; para a maioria, a atividade da compra se realizava apenas nas feiras ocasionais.
Ao longo dos últimos cem anos, esses padrões antigos e universais foram destruídos pelo advento do consumo de massa. Suas características são a divisão radical entre atividades de produção e consumo, a predominância das mercadorias estandardizadas vendidas em grande volume, a introdução incessante de novos produtos, a dependência geral de dinheiro e crédito, a publicidade ubíqua. Esse fabuloso panorama de uma feira vasta e permanente, que paralisou Denise, vem desde então encantando milhões de outras pessoas, na medida em que se disseminou, saindo das cidades maiores e atingindo mesmo aquelas mais pequenas, e dos países mais ricos chegando aos mais pobres. As mercadorias em si não estão disponíveis para todos, mas a visão de uma profusão aparentemente ilimitada de mercadorias é praticamente inevitável. Nas sociedades mais ricas as manifestações de consumo de massa – lojas de departamento, casas de desconto, supermercados, cadeias de lojas, estabelecimentos de reembolso postal, bem como a perpétua publicidade em jornais, revistas e televisão, rádio e outdoors – estão de tal forma difundidos que dificilmente percebemos o quão completamente tanto a vida privada quanto a pública foram transformadas em espaços onde as pessoas comumente interagem com mercadorias.
O advento do consumo de massa representa um momento histórico fundamental. Uma vez que as pessoas experimentam a situação de possuir uma renda discricionária e a possibilidade de escolher entre produtos, assim que vislumbram a existência de mercadorias em profusão, elas dificilmente retornam aos modos tradicionais de consumo. Tendo contemplado as delícias da loja de departamentos, Denise jamais voltaria a se satisfazer com as vitrines simples e despojadas da loja do tio Baudu. A trama batida da jovem inocente imersa na grande cidade recebe um tempero especialmente moderno, pois agora a sedução é comercial. Nós, que provamos dos frutos da revolução do consumo, perdemos a nossa inocência.
As implicações morais do consumo de massa – Embora uma tal linguagem moralista não seja usualmente aplicada a assuntos de consumo, ela é apropriada. As implicações da revolução do consumo estendem-se para além das estatísticas econômicas e das inovações tecnologicas, ocasionando intensos e profundos conflitos nos valores pessoais e sociais. Antes do século XIX, quando apenas uma pequena fração da população tinha algum poder de escolha nesse campo, o consumo era condicionado, no mais das vezes, pela escassez natural e por tradições sociais indisputáveis. Onde não há liberdade, não há dilema moral. Mas agora, pela primeira vez na história, muitas pessoas tinham considerável poder de escolha sobre o que, como e quanto consumiam, e ao mesmo tempo tinham o tempo livre, a educação e a saúde necessárias para refletir sobre essas questões. A revolução do consumo trouxe tanto a oportunidade quanto a necessidade de reconsiderar os valores, mas essa reconsideração ficou pela metade, e foi apenas em parte feita de maneira consciente. Por mais que a expansão sem precedentes na oferta de bens e de tempo livre tenham implicações benéficas óbvias, elas também trazem um peso de remorso e culpa, desejo e inveja, ansiedade e, sobretudo, inquietação da consciência, na medida em que percebemos que, mesmo tendo muito, ainda continuamos desejando mais. Nos ressentimos de nossa própria tendência de julgar a nós mesmos e aos outros a partir de diferenças insignificantes nos hábitos de consumo.
Se por um lado o consumismo alterou os padrões de consciência social e pessoal, por outro tais novas atitudes tiveram profundos efeitos materiais. A explosão populacional, a crise alimentar, a escassez de energia, a crise ambiental, a inflação crônica – todas estas preocupações centrais do presente se originaram de nossos valores e hábitos enquanto consumidores. A grande esperança, no século XIX, era que a produção pudesse ser expandida continuamente, de maneira a sempre satisfazer a demanda por consumo, em toda parte. Agora reconhecemos a falácia daquela expectativa, aceitando que os limites materiais são uma condição permanente da vida humana. Enquanto que a expansão de produtividade pode ser considerada primariamente como um problema tecnológico, a aceitação dos limites no consumo demanda não tanto conhecimento técnico, mas imaginação política, vontade pessoal, e moralidade social, com um entendimento intelectual de todos esses fatores. Há escassez atualmente de tal entendimento. As decisões são tomadas com vistas a resolver problemas concretos que, por mais urgentes que possam ser, irão apenas provocar um acúmulo ainda maior, a não ser que nosso entendimento a respeito do consumo se esclareça.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário