“As consequências da revolução no
consumo
O advento do consumo de massa – Na década de 1860, a jovem Denise
Baudu, de 21 anos, junto a seus dois irmãos menores, que haviam se tornado órfãos
recentemente, emigraram de uma aldeia da França provincial para Paris, para
viver com o tio. Chegando com o raiar do dia, depois de uma noite insone sobre
os bancos duros de um vagão de terceira classe, eles se puseram em busca da
loja de tecidos do tio. Ruas desconhecidas os levaram a uma praça tumultuada,
onde fizeram uma parada abrupta, espantados com a vista da construção mais
impressionante que eles haviam visto até então: uma loja de departamentos.
“Veja”, murmurou Denise para seus irmãos”. “Isso sim é que é uma loja!” Tal
monumento era incomensuravelmente mais formidável que a sossegada loja de
variedade da aldeia, na qual ela havia trabalhado. Ela sentiu seu coração
encher-se de alegria, e esqueceu-se da fadiga, do temor, de tudo, exceto
daquela visão. Diretamente à sua frente, sobre a entrada principal, duas
figuras alegóricas, representando mulheres sorridentes, exibiam o emblema que
trazia o nome da loja, “Au Bonheur des
Dames” (À felicidade das Damas). Entrevia-se pela porta uma profusão de
luvas, lenços e chapéus derramando-se de prateleiras e balcões, enquanto à
distância as vitrines se estendiam ao longo da rua.
Transidos, os três jovens
caminharam lentamente, olhando pasmados as vitrines. Numa janela, um intrincado
arranjo de guarda-chuvas formava como que o teto de uma cabana rústica,
enquanto que em outra, deslumbrantes arco-íris de sedas, cetins e veludos
arqueavam-se bem acima deles. No último expositor de roupas prontas para uso,
uma avalanche de rendas finas formava cascatas em segundo plano, e à frente
delas piruetavam três elegantes manequins, um deles embalado num casaco de
veludo ornamentado com pele de raposa prateada, outro numa capa de ópera de cashmere branco, o terceiro num
sobretudo orlado de penas. As cabeças dos manequins haviam sido removidas,
substituídas por grandes etiquetas de preço. Espelhos postados em ambos os
lados do expositor multiplicavam infinitamente as imagens daquelas criaturas
estranhas e atraentes, meio humanas, meio mercadorias, até que elas parecessem
povoar a rua.
Denise despertou de sua fantasia.
Ela e os irmãos ainda tinham que encontrar o tio. Pedindo informações,
descobriram que estavam exatamente no quarteirão em que ele mantinha sua loja.
Ela se localizava num prédio deteriorado, do outro lado da rua, onde suas três
janelas escuras e vazias confrontavam austeras os mostradores brilhantes do Au Bonheur des Dames. No interior,
Denise entreviu uma sala de exposição sombria, com teto baixo, o madeiramento
esverdeado, e mesas atravancadas por peças de tecido empoeiradas. Ela sentiu
como se contemplasse a escuridão úmida de uma caverna primeva.
Denise é a heroína da novela “Au
Bonheur des Dames” (1884), de Emile Zola, que se inicia com essa narrativa da
chegada dela a Paris. Seu encontro inicial com uma loja de departamentos dramatiza
a forma como a sociedade oitocentista europeia como um todo viu-se subitamente confrontada
por um estilo de consumo radicalmente diferente de todos os até então
conhecidos. A quantidade de bens de consumo disponíveis, para a maior parte das
pessoas, fora até então drasticamente limitada: alguns poucos utensílios de
cozinha, empregados no preparo de uma dieta escassa e monótona, peças de
mobiliário bastante gastas (cama, arca, mesa, talvez um mocho ou um banco),
roupas de cama, sapatos ou tamancos, uma camisa e calças ou um vestido (e às
vezes alguma vestimenta para ocasiões especiais), algumas ferramentas
essenciais. E era tudo. Além disso, tais bens eram obtidos principalmente por
meio de escambos ou produzidos pelos próprios usuários, de maneira que a
atividade de consumo estava estreitamente ligada com a de produção. As pessoas
comuns raramente usavam dinheiro, o crédito era escasso e apenas eventualmente
disponível. Somente os abastados passavam tempo em lojas; para a maioria, a
atividade da compra se realizava apenas nas feiras ocasionais.
Ao longo dos últimos cem anos, esses
padrões antigos e universais foram destruídos pelo advento do consumo de massa.
Suas características são a divisão radical entre atividades de produção e
consumo, a predominância das mercadorias estandardizadas vendidas em grande
volume, a introdução incessante de novos produtos, a dependência geral de
dinheiro e crédito, a publicidade ubíqua. Esse fabuloso panorama de uma feira
vasta e permanente, que paralisou Denise, vem desde então encantando milhões de
outras pessoas, na medida em que se disseminou, saindo das cidades maiores e
atingindo mesmo aquelas mais pequenas, e dos países mais ricos chegando aos
mais pobres. As mercadorias em si não estão disponíveis para todos, mas a visão de uma profusão aparentemente
ilimitada de mercadorias é praticamente inevitável. Nas sociedades mais ricas
as manifestações de consumo de massa – lojas de departamento, casas de
desconto, supermercados, cadeias de lojas, estabelecimentos de reembolso postal,
bem como a perpétua publicidade em jornais, revistas e televisão, rádio e outdoors – estão de tal forma difundidos
que dificilmente percebemos o quão completamente tanto a vida privada quanto a
pública foram transformadas em espaços onde as pessoas comumente interagem com
mercadorias.
O advento do consumo de massa
representa um momento histórico fundamental. Uma vez que as pessoas
experimentam a situação de possuir uma renda discricionária e a possibilidade
de escolher entre produtos, assim que vislumbram a existência de mercadorias em
profusão, elas dificilmente retornam aos modos tradicionais de consumo. Tendo contemplado
as delícias da loja de departamentos, Denise jamais voltaria a se satisfazer
com as vitrines simples e despojadas da loja do tio Baudu. A trama batida da
jovem inocente imersa na grande cidade recebe um tempero especialmente moderno,
pois agora a sedução é comercial. Nós, que provamos dos frutos da revolução do
consumo, perdemos a nossa inocência.
As implicações morais do consumo de massa – Embora uma tal
linguagem moralista não seja usualmente aplicada a assuntos de consumo, ela é
apropriada. As implicações da revolução do consumo estendem-se para além das
estatísticas econômicas e das inovações tecnologicas, ocasionando intensos e
profundos conflitos nos valores pessoais e sociais. Antes do século XIX, quando
apenas uma pequena fração da população tinha algum poder de escolha nesse
campo, o consumo era condicionado, no mais das vezes, pela escassez natural e
por tradições sociais indisputáveis. Onde não há liberdade, não há dilema
moral. Mas agora, pela primeira vez na história, muitas pessoas tinham
considerável poder de escolha sobre o que, como e quanto consumiam, e ao mesmo
tempo tinham o tempo livre, a educação e a saúde necessárias para refletir
sobre essas questões. A revolução do consumo trouxe tanto a oportunidade quanto
a necessidade de reconsiderar os valores, mas essa reconsideração ficou pela metade,
e foi apenas em parte feita de maneira consciente. Por mais que a expansão sem
precedentes na oferta de bens e de tempo livre tenham implicações benéficas
óbvias, elas também trazem um peso de remorso e culpa, desejo e inveja, ansiedade
e, sobretudo, inquietação da consciência, na medida em que percebemos que,
mesmo tendo muito, ainda continuamos desejando mais. Nos ressentimos de nossa
própria tendência de julgar a nós mesmos e aos outros a partir de diferenças
insignificantes nos hábitos de consumo.
Se por um lado o consumismo
alterou os padrões de consciência social e pessoal, por outro tais novas
atitudes tiveram profundos efeitos materiais. A explosão populacional, a crise
alimentar, a escassez de energia, a crise ambiental, a inflação crônica – todas
estas preocupações centrais do presente se originaram de nossos valores e
hábitos enquanto consumidores. A grande esperança, no século XIX, era que a
produção pudesse ser expandida continuamente, de maneira a sempre satisfazer a
demanda por consumo, em toda parte. Agora reconhecemos a falácia daquela
expectativa, aceitando que os limites materiais são uma condição permanente da
vida humana. Enquanto que a expansão de produtividade pode ser considerada
primariamente como um problema tecnológico, a aceitação dos limites no consumo demanda
não tanto conhecimento técnico, mas imaginação política, vontade pessoal, e
moralidade social, com um entendimento intelectual de todos esses fatores. Há
escassez atualmente de tal entendimento. As decisões são tomadas com vistas a
resolver problemas concretos que, por mais urgentes que possam ser, irão apenas
provocar um acúmulo ainda maior, a não ser que nosso entendimento a respeito do
consumo se esclareça.”
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