sexta-feira, 2 de agosto de 2019

A respeito de maneiras de falar e ver o Maranhão: paradigmas em disputa e seus reflexos na historiografia (artigo de Daniel Rincon Caires)

“O ataque às maneiras de dizer-se identifica com o ataque às maneiras de se ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam a sua visão de mundo (justificando, explicitando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo”.
                        João Luiz Lafetá



A
 eleição para o governo do Estado do Maranhão em 2014 pôs em disputa o IDH e o PIB. De um lado, a campanha do candidato de oposição, Flávio Dino, enfatizou a baixa colocação do estado no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o que mostrava, diziam, a situação de atraso e desigualdade da região. O desdobramento lógico dessa interpretação conduzia à acusação de ineficiência ou indiferença aos adversários, no poder há mais de quatro décadas. Do outro lado, os partidários do candidato da situação, Edison Lobão Filho, insistiam na tese de que o IDH é um índice incapaz de captar a realidade da vida local. Desprezando-o, destacavam o PIB (Produto Interno Bruto) do Estado que, diziam, vinha subindo em ritmo constante. Ambas as estratégias retóricas indicam apropriações significativas, por parte dos candidatos, de representações sobre o Maranhão, tanto as que foram construídas pelas antigas elites quanto as que vêm sendo sugeridas pelos cientistas sociais maranhenses nas últimas décadas.
     Este trabalho procura reconstituir as linhas gerais das representações sobre a realidade maranhense, organizando-as numa perspectiva cronológica e articulada com as circunstâncias de seus emissores e transmissores. Ele resulta de uma temporada de vivência e estudos no Maranhão, momento em que se procurou compreender a lógica discursiva da região a partir do recurso à bibliografia produzida pelas ciências humanas no âmbito regional. A exposição inicia-se justamente no momento em que se acirram os embates de polos interpretativos opostos, evento que indica mudança de paradigmas e alterações significativas nas sensibilidades. Num segundo momento, procura-se estabelecer pontos de contato entre essas observações sobre as representações da realidade maranhense e discussões mais amplas relacionadas a dilemas historiográficos regionais. 

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     Em 1983 o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida publicou pela primeira vez “A Ideologia da Decadência”. O livro reunia reflexões sobre a polêmica questão da decadência da lavoura no Maranhão. Naquela altura era onipresente a afirmação de que houvera um prolongado e ruinoso processo de decadência da economia agrícola maranhense ao longo do século XIX. Tal afirmação se havia enraizado de maneira tão profunda que nem era mais tomada como hipótese, mas como ponto de partida para análises sobre a trajetória da região. A obra de Almeida constituía-se de um estudo sobre a produção, apropriação e reprodução da representação canônica da realidade maranhense.
     De início, Almeida identificou uma primeira geração de autores responsáveis pela afirmação da decadência da lavoura maranhense. Eram agricultores, clérigos, militares e grandes comerciantes que produziram escritos sobre a região entre 1813 e 1822[1]. De todas as obras emanava o consenso de que a região sofria com mazelas que condenavam sua economia a um estado de atraso, letargia ou paralisação. Aureolados posteriormente pelas instâncias de consagração regionais - como o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM), que os elegeu patronos de suas cadeiras - e pelas gerações seguintes de intelectuais, estes autores se tornaram os clássicos locais e suas interpretações ganharam estatuto de verdades inquestionáveis:

“As instituições, de cujas galerias e panteons fazem parte, se encarregam de propagá-los recomendando-os sutilmente a quantos aspirem à consagração.
As citações excessivas, com vista à consagração, de que acabam sendo alvo concorrem para tornar seus textos impermeáveis a qualquer leitura crítica, que os desmonte ou que coloque em suspenso suas assertivas. As concepções que veiculam adquirem uma força extrema a uma autoridade definitiva na vida intelectual, sujeita quando muito a complementações e ligeiros reparos”[2].

     Apesar de partilharem do consenso sobre o fato de haver a economia maranhense estagnado, tais autores apresentavam interpretações discrepantes a respeito dos motivos que teriam ocasionado tal estado. Quando se colocavam a explicar a decadência, o lugar de fala se mostrava mais claramente, e cada um iria se referir a “fatores” como “falta de conhecimentos profissionais”, “falta de capitais”, “falta de braços”, “falta de comunicações apropriadas” e “falta de terras por causa do gentio”. Seus discursos faziam corresponder a cada uma destes supostos entraves uma proposta de solução. Dessa maneira, penetraram nas discussões sobre a região temas como

“‘imigração’ e ‘colonização’ para suprir a chamada ‘falta de braços’, criação de escolas visando a formação de especialistas em agricultura para suprir a ‘falta de conhecimentos profissionais’, abertura de estradas e desobstrução das vias de navegação fluvial para suprir a ‘falta de comunicações’ e a organização de expedições militares, chamadas bandeiras, contra os grupos indígenas situados nas áreas consideradas como de expansão da lavoura algodoeira”[3].

     Os clássicos introduziram também uma “periodização ortodoxa”, que seria igualmente adotada pelos epígonos, nas décadas que se seguiriam, para demarcar os momentos de mudanças significativas no cenário local. A “Idade de Ouro” foi localizada no estabelecimento da “Companhia Geral do Grão-Pará e do Maranhão” (1756) na esteira das reformas pombalinas, momento em que, nas palavras de Raimundo Gaioso, “o Maranhão levanta a sua altiva cabeça para emparelhar com as províncias mais opulentas do Brasil”[4]. Tal acontecimento, na interpretação do mesmo Gaioso, fazia com que os portos da região se tornassem movimentados e que a capital se enchesse de novos prédios, revertendo a situação de uma terra entregue à gentilidade e à barbárie[5].
     Num segundo momento da obra, Almeida analisou os discursos dos administradores regionais, através da leitura dos relatórios e falas de Presidentes de Província, documentos em que arrolavam as realizações de suas gestões. Aponta a assimilação, por parte desses indivíduos, do mesmo discurso presente nas obras dos “patronos”. Apesar das mais diferentes circunstâncias que perpassaram os 49 anos do segundo reinado, Almeida encontra sempre “pressupostos similares” subjacentes aos diagnósticos feitos por esses mais de 90 administradores que se sucederam no cargo. Esses administradores provinciais, além disso, aprofundaram a noção de decadência. Dada a centralidade das atividades agrícolas para a economia da região, a constatação de decadência da lavoura foi estendida para o olhar sobre a província como um todo. Agora, era como se toda a civilização maranhense experimentasse o mesmo destino de sua lavoura:

“[...] independente mesmo do tipo de impasse imediato com que se defrontam os governantes ela é sempre acionada por eles para descrever e, em certa medida, explicar o quadro econômico conjuntural da província. As vicissitudes dos momentos porque passa a província são lidas pelos intérpretes oficiais mormente através da situação da agricultura. Não se pode isolá-las sem passar pelas repetidas menções explícitas à decadência da lavoura. O conhecimento das condições sociais e econômicas do presente da província ou do tempo correspondente a cada uma das situações descritas pelos Relatórios que o enunciam, se exprime necessariamente por esta referência obrigatória. Ela se constitui num lugar estratégico às análises veiculadas através da documentação produzida pelos diferentes administradores provinciais”[6].

     A interpretação canônica sobre a situação maranhense formaria assim uma escola, cuja reaparição tornou-se tão frequente que permitiu que se singularizasse um grupo a ela identificado, a chamada “elite decadentista”[7]. Essa interpretação decadentista, concluiu Almeida, era particularmente daninha porque tornava-se instrumental para essa elite, que se via, a partir desse postulado, autorizada a adotar “medidas e intenções as mais controversas”[8].
     O efeito de “A Ideologia da Decadência” sobre o universo acadêmico maranhense, segundo se apreende nos comentários do próprio autor, foi imediato e profundo. A modesta tiragem inicial da obra - materializada numa brochura singela “que não alcançou sequer cem exemplares” - ampliou seu alcance através de uma sucessão de cópias fotostáticas passadas de mão em mão, e se tornou leitura obrigatória e citação constante nos estudos das ciências humanas maranhenses. Seguindo o desejo do próprio autor, a obra transitou num circuito marginal, como mercadoria contrabandeada, ajudando a minar o subsolo cultural da região, corroendo as bases dos cânones oficiais[9]. As reflexões contidas em “A Ideologia da Decadência” pareciam aliviar um mal-estar prolongado, ao oferecer um caminho para que se pudesse enxergar o Maranhão para além do prisma da decadência. E, para fazê-lo, a obra de Almeida exercitava de maneira positiva um fenômeno que, em muitos casos, é visto como ruinoso para as ciências humanas: a crise das representações. O trabalho de Almeida é, afinal, um esforço que promove aquilo que Edward Said chamou de “erosão do consenso clássico”[10]. Almeida suspende a própria linguagem dos patronos, cassando sua transparência. Nesse caso, no lugar de turvar-nos a visão, a crise de representações abre novas perspectivas. O reconhecimento do caráter construído das categorias canônicas com as quais se media a trajetória maranhense abriu espaço para novos olhares e novas categorizações.
     A pequena revolução causada por “A Ideologia da Decadência” dialogava com uma série de produções acadêmicas, especialmente no campo da antropologia e da sociologia, que procuravam oferecer um olhar mais compreensivo sobre as populações tradicionais do Maranhão. Os mesmos fenômenos que os clássicos maranhenses escrutinados por Almeida liam como decadência – os tropeços da economia agroexportadora ao longo do século XIX e o fracasso da coerção sobre a força de trabalho – foram responsáveis por proporcionar as condições para o florescimento de uma extensa gama de sociedades autocentradas e autorreguladas, organizadas dentro de padrões tradicionais de funcionamento e trabalho, muitas das quais, mais tarde, seriam identificadas como quilombos[11]. Tais sociedades haviam experimentado uma prolongada invisibilidade quando observadas através do discurso canônico da decadência, pois nele ocupavam de maneira automática e irrefletida o lugar de atrasadas, primitivas e carentes. Nas relações imaginárias estabelecidas pelo discurso das elites, eram referidas apenas como o que restava após o processo de decadência, a pedir intervenções saneadoras que as fizessem progredir. A crise das representações reorganizou essas relações ao criar condições para abolir a hierarquia baseada no “consenso clássico”. A recusa do discurso da decadência permitiu aos cientistas sociais que buscassem uma nova aproximação investigativa, numa tentativa de desvendar os sistemas de funcionamento interno dessas sociedades. Formou-se assim, na esteira desse processo, aquilo que Maristela de Paula Andrade chamou de “pensamento antropológico maranhense”[12].
     Um exemplo dessa aproximação investigativa se apresenta nos artigos reunidos em “Fome de Farinha[13]. Nesta obra, registram-se os resultados de uma pesquisa de campo realizada por cientistas sociais ligados a universidades públicas do Maranhão nos povoados alcantarenses, os denominados “territórios étnicos” que se formaram na esteira da derrocada da economia agroexportadora.
     O resultado da investigação explica o processo de formação desses territórios étnicos. Sem imposições de indivíduos ou grupos externos, sem a intermediação do Estado, os ex-escravos estabeleceram suas regras no processo de reorganização da força de trabalho e das forças produtivas[14]. Ali criaram um sistema particular de apropriação da terra, não dividida em lotes privativos fixos, mas baseado no usufruto comum e itinerante das áreas, sistema que tem nos povoados seus núcleos. O acesso aos recursos naturais é comunitário, num sistema aberto onde as interdições se referem apenas às formas de manejo, em busca do sustentável, sem concessões à pulsão privatista. No que tange às práticas cotidianas, erigiram uma cultura que devia muito aos saberes indígenas, particularmente no trato com a natureza. Mantiveram-se ligados, pelas vias do comércio, com a sociedade circundante[15]. O resultado final desse novo sistema econômico era a obtenção de uma ampla variedade de produtos, frequentemente trocados entre os povoados, e a geração de alguns excedentes que eram comercializados nos mercados externos da região, especialmente São Luís e Alcântara. Em comparação com o sistema que a precedeu, era uma economia desmonetizada, voltada para as necessidades locais e que tendia à autossuficiência.
     Na tentativa de apreender o quadro de valores locais, os pesquisadores promoveram uma relativização de conceitos básicos, como pobreza e riqueza. Entenderam que para os habitantes dos territórios étnicos alcantarenses o índice de riqueza se mede não pelo acúmulo financeiro, mas pelo acesso às fontes de recursos naturais que geram os elementos considerados necessários à vida[16].

     A historiografia maranhense seguiria essa tendência a partir dos anos 1980, ainda que, segundo alguns de seus críticos, custasse um pouco mais do que deveria para se afastar dos cânones discursivos. Pesquisadores ligados ao curso de História da Universidade Federal do Maranhão, coordenados pelo professor João Batista Bitencourt, realizaram um levantamento sobre a trajetória da disciplina no estado. O levantamento detecta as linhas principais dos estudos historiográficos maranhenses das décadas anteriores e procura explicar os motivos desse apego prolongado aos discursos tradicionais[17]. O grupo reuniu 88 obras dedicadas à história maranhense produzidas no século XX, de cuja análise se chegou a conclusões esclarecedoras. Quanto a seus produtores e locais de produção, 

“a pesquisa revelou que grande parte da produção historiográfica maranhense do século passado está diretamente ligada a lugares oficiais da escrita histórica. Os autores de tais obras eram, em geral, membros de ‘espaços qualificados’, aglutinadores de eruditos, como: o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, a Academia Maranhense de Letras e as Universidades. Nesse sentido observa-se que, como em outras regiões do país, a produção histórica maranhense fez um percurso que vai da Academia de Letras e do Instituto Histórico para a Universidade. Os indícios apontam, no entanto, que no Maranhão a importância da produção ligada à universidade ocorre apenas no final do século XX[18].

A pesquisa apontou que apenas na década de 1980 apareceram historiadores profissionais. Até então, a atividade era realizada por juristas, literatos e jornalistas, que demonstravam larga preferência por temas políticos – empregando as sucessões de governantes como marcos de periodização para toda a realidade local[19]. Nessa produção, a ideologia da decadência marcava fortemente os relatos:

“Constatou-se uma forte questão identitária norteando o sentido das produções. Juntamente à representação de uma ‘idade de ouro’, no século XX constituiu-se na historiografia maranhense um sentimento de perda daqueles tempos de glória, conhecido como ‘ideologia da decadência’. Trata-se de um discurso que projeta um sentimento de perda e constitui uma marca de ressentimento dada a ler em diversas obras. Tal sentimento é bastante presente nas produções ligadas ao Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e à Academia Maranhense de Letras[20].

     Na década de 1980 a crescente profissionalização dos produtores da historiografia maranhense trouxe uma renovação temática e permitiu a introdução de novos questionamentos, novos paradigmas e a observação sobre novos atores sociais.
     Ainda assim, no início do século XXI, a se afiançar nas palavras de um dos historiadores maranhenses, o movimento de renovação permanecia tímido. Pelas páginas dos jornais, em textos curtos e fulminantes[21], Flávio Reis admoestava os colegas, acusando-os de manter um comprometimento com as interpretações canônicas da trajetória maranhense. Uma de suas investidas, em julho de 2001, referia-se à polêmica em torno de uma obra recém-publicada, que tratava da questão dos mitos fundadores regionais. Maria de Lourdes Lauande Lacroix contestara a versão canônica, que atribuía aos franceses a fundação de São Luís. Através de um estudo de história cultural, Lacroix demonstrara a construção do mito da fundação francesa, operado no final do século XIX. Ela apontou que, até então, a historiografia aceitava os portugueses como fundadores, e tratava os franceses como invasores. Na sua argumentação, a construção do mito assinalava uma reorganização identitária da elite local, que procurava se desvencilhar, naquela Belle Époque tropical, da incômoda paternidade do antigo fundador, Jerônimo de Albuquerque, “mestiço do sertão, nem bárbaro, nem civilizado”[22], que com sua guerrilha sertaneja vencera os franceses aquartelados no forte de São Luís. Os compêndios passaram a celebrar o nobre francês Daniel de La Touche, senhor de La Ravardière, como o novo pai fundador. Mudaram-se as efemérides, trocaram-se nomes de logradouros públicos, numa operação que visava recriar a genealogia local, destrinchada por Lacroix. Os defensores da tradição, encastelados nas Academias locais, lançaram-se a um ataque violento contra a obra de Lacroix[23]. Flávio Reis procurava defender a colega, o que o levava a fustigar os princípios historiográficos locais e seus praticantes:

“Acho que o mito gaulês pode ser olhado no bojo da constituição da historiografia maranhense. Compostos, em sua maior parte, de trabalhos laudatórios e repetitivos, preocupados em inscrever determinados fatos e personagens, os estudos históricos considerados clássicos no Maranhão ainda não foram objeto de reflexão historiográfica no sentido estrito. Afinal, como se escreve a história do Maranhão? Principalmente a partir da segunda metade do século XIX, começou a se configurar certo padrão de escrita com pleno florescimento no correr do século seguinte. História onde não se pergunta, perdida na afirmação e na repetição canônica de autores. A própria universidade, com uma produção de mais de vinte anos, entre teses, dissertações e monografias, não conseguiu superar essa estrutura afirmativa. As duas academias, a de letras e a universitária, comungaram do pacto silencioso em que a verborragia elogiosa fechava os olhos à realidade a que se reportava e a ‘crítica científica’, arremedo da historiografia pretensamente moderna desenvolvida em outros centros, não conseguia se perguntar como essa história era tecida”[24].

   
Os acontecimentos mais recentes no campo historiográfico maranhense, no entanto, parecem desautorizar admoestações como as de Flávio Reis. Muitas das produções da última década demonstram não só desapego aos paradigmas tradicionais, como ajudam a enterrá-los. A marca central de estudos historiográficos relevantes recentemente produzidos no Maranhão parece ser justamente a irreverência. Muitos deles parecem propelidos exatamente pelo desejo de testar diversas interpretações canônicas da trajetória da sociedade maranhense, tomadas até então como pressupostos inquestionáveis. Acabam atingindo centralmente as bases de sustentação das antigas “verdades” e abrem, por sua vez, novas trilhas, que levam a outras interpretações, introduzem novos atores sociais, reequilibram as ênfases e, em última instância, criam novas periodizações e categorizações, mais úteis porque menos comprometidas com apagamentos seletivos.  
     Marize Helena de Campos, professora da Universidade Federal do Maranhão, vem observando diversos aspectos da participação das mulheres na vida social da região. Em sua dissertação de mestrado, analisou a prostituição no início do século XX, na cidade de São Luis[25]. No doutorado, voltou-se ao escrutínio de inventários, testamentos e cartas de sesmarias referentes às “senhoras donas”, as mulheres que, na virada do século XVIII para o XIX, administravam grandes propriedades[26]. Além dessas contribuições, Campos vêm publicado outros estudos que compartilham a ênfase na análise das questões de gênero, e tem orientado pesquisas acadêmicas que ampliam a observação sobre a trajetória das mulheres.
     Antonia Mota, também professora na Universidade Federal do Maranhão, dedica-se a pesquisas que se baseiam na análise de testamentos e inventários dos séculos XVIII e XIX, levando em consideração aspectos da cultura material, da vida cotidiana e das relações familiares. Numa das vertentes de seu trabalho, procura observar aspectos da vida cotidiana e familiar de pessoas escravizadas. Um de seus trabalhos mais relevantes, do ponto de vista da capacidade de dissolver quistos interpretativos, é o que resultou de sua pesquisa de doutorado, publicado em livro em 2012[27]. Em “As famílias principais”, Mota analisa as estratégias de conquista e ampliação de poder empregadas por alguns grupos familiares no contexto regional, que se consolidavam por meio de casamentos e faziam ramificar sua influência para o interior da esfera pública, num processo que resultava na utilização privada dos recursos coletivos. Mota demonstrou que tais grupos, uma vez alçados a posições socioeconômicas privilegiadas, investiam na reelaboração de suas trajetórias, criando uma genealogia nobre que visava apagar inícios humildes e ações questionáveis.
     Na seara da História Intelectual, muitos estudos contribuíram para a reavaliação do renitente mito da “Atenas Brasileira”, até então profundamente incorporado à historiografia local. Trata-se da noção, amplamente propalada pelas instâncias tradicionais de consagração, de que o Maranhão teria alcançado um patamar superior na produção intelectual e literária no século XIX, elevando-se muito mais alto, em comparação, que o restante do país. José Henrique de Paula Borralho dedicou suas pesquisas de mestrado e doutorado a este tema[28]. Estratégias discursivas similares, voltadas a constituir consagração pelo acionamento de uma pretensa excelência peculiar da região, realizadas por gerações de literatos maranhenses no início do século XX, vêm sendo analisadas por Dorval do Nascimento[29], entre outros.
        Uma pesquisa de Regina Helena Martins de Faria, professora do curso de História da UFMA, demonstrou o valor da contribuição específica da disciplina para esse processo de reorientação das abordagens. Em “Mundos do Trabalho no Maranhão Oitocentista: os descaminhos da liberdade[30], Faria realizou um estudo de história cultural voltado para a análise das representações criadas pelas elites maranhenses do século XIX a respeito de índios, negros, pobres livres, imigrantes e forros e a articulação dessas representações com as circunstâncias que se desenrolavam ao seu redor. Ela percebe uma nítida transformação nas representações, numa linha que acompanha o movimento descendente da economia agroexportadora. No contexto de dissolução das relações escravistas, ao enfraquecimento da capacidade coercitiva sobre os trabalhadores correspondeu o crescimento das vozes que falavam em decadência e em crise por falta de braços. Essa minuciosa reconstituição das linhas de representação exercidas pelas diversas categorias de indivíduos componentes das elites maranhenses vinha de encontro com as análises de Alfredo Wagner Berno de Almeida, contribuindo para situá-las de maneira mais circunstanciada no interior de acontecimentos históricos regionais, nacionais e mundiais. Ligava a ideologia da decadência e seus temas subsidiários a conjunturas específicas, demonstrando a articulação entre o discurso e os interesses, necessidade e lutas sociais em andamento.
     Além disso, Faria ofereceu, num outro capítulo dessa mesma obra, um estudo socioeconômico que permitiu recusar a ideologia da decadência com base em dados demográficos e econômicos. Ela apontou que, ao contrário do que diziam os clássicos, a produção agrícola, a ocupação do território e os índices demográficos no Maranhão permaneceram em expansão ao longo do século XIX. O que ocorreu, ela detecta, foi a substituição da grande lavoura agroexportadora pelos pequenos estabelecimentos rurais tocados por pobres livres, índios, quilombolas, colonos e imigrantes internos, operando a partir de novas formas de organização do trabalho e voltando-se para a produção de itens dedicados ao consumo interno. Ela rompia, dessa forma, a invisibilidade que as análises ortodoxas impuseram sobre esse novo regime econômico. A seu modo, a historiografia praticava sua própria modalidade de relativização do conceito de riqueza: na pesquisa de Faria, a pequena economia rural voltada para o consumo interno e, em parte, para subsistência, é reconhecida como atividade econômica válida. A invisibilidade que recaía sobre ela devia-se, em muitos casos, ao fato de que os historiógrafos teimavam em buscar os índices de produtividade da região apenas naquelas atividades que geravam divisas na balança comercial do estado.

     A exposição realizada neste ensaio não dá conta, evidentemente, do enorme volume da produção historiográfica maranhense, que vem se tornando ainda mais torrencial diante da recente criação de cursos de pós-graduação em história, da realização periódica de congressos e simpósios e da manutenção de publicações regulares dedicadas ao estudo da história regional. Além das pesquisas mencionadas neste ensaio, muitas outras, realizadas por historiadores, colaboram em campos específicos, para a abertura de novas frentes de abordagem que promovem o abandono dos paradigmas tradicionais, permitindo olhar para a realidade maranhense a partir de outras perspectivas. O ensaio procurou, a partir da análise de alguns casos específicos, demonstrar uma orientação geral da produção historiográfica local.
     Todas estas disputas simbólicas e estes embates de interpretações geram consequências que extrapolam seus âmbitos originais. Longe de estarem circunscritas à esfera acadêmica, essas tomadas de posição com relação aos grupos sociais e suas trajetórias no tempo têm desdobramentos reais bastante nítidos. Desde o século XIX, como muitos desses estudos assinalam, os discursos que invalidavam a contribuição econômica da pequena agricultura fundamentada em lógicas estranhas às do mercado capitalista tiveram caráter instrumental, justificando intervenções que se diziam destinadas a resolver o atraso, desestagnar, fazer progredir, modernizar etc. Por seu lado, os discursos de antropólogos, sociólogos e historiadores comprometidos com a revisão dessa forma tradicional de entender a trajetória maranhense se converte em instrumento de luta para os grupos oprimidos. Significam um gesto de reconhecimento de sua existência e do valor de suas práticas.
     Em alguns momentos, a efetividade dessas disputas simbólicas fica mais evidente. Em 1999, a Procuradoria Geral da República determinou à Associação Brasileira de Antropologia (ABA) que designasse um de seus membros para a tarefa de elaborar um laudo antropológico. Tal documento instruiria um inquérito civil público que averiguava a ocorrência de irregularidades na implantação da Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara. O empreendimento, iniciado nos 1980, deslocara uma grande quantidade de famílias de suas terras originais, e ameaçava outros milhares de pessoas em desdobramentos posteriores. A ABA encarregou a tarefa a Alfredo Wagner Berno de Almeida. O antropólogo reuniu os dados coletados na publicação “Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara[31]. Amparado numa vasta gama de fontes, Almeida estabelecia a ancestralidade da propriedade da terra, reconstituindo as modalidades e as etapas de formação dos territórios étnicos de Alcântara. O resultado apontava para o reconhecimento do direito daquelas comunidades à permanência naqueles territórios. O feito de Almeida, no entanto, não significou o ponto final dos conflitos. Segue indecidida, até os dias que correm, a situação dos conflitos territoriais em Alcântara.

     As eleições para governador realizadas em 2014, mencionadas no início deste texto, marcam uma reconfiguração dessa prolongada disputa simbólica que vem se desenrolando no Maranhão. O que surpreende, nesse momento, é a inversão que ocorre no emprego das interpretações.
     É a oposição que agora recorre a uma variante do decadentismo. A campanha de Flávio Dino, ao insistir em descrever o estado do Maranhão como uma região atrasada, reeditou as interpretações que a elite brasileira do final do século XIX fazia do Brasil interior, estribada nos ideais modernos emanados da Europa central. Na primeira entrevista após a vitória, Dino declarou que pretendia “fazer uma revolução democrática burguesa, com 300 anos de defasagem”[32]. Tal afirmação contém um lamento pelo suposto atraso do estado, um reconhecimento de inferioridade, creditado à forma incompleta com que a modernização ocorrera no Maranhão. Dino aproxima-se, dessa maneira, do pensamento dos letrados brasileiros da virada do século XX, diante do que consideravam mera “troca de figurino” no momento da instauração da República:

A revolta da Vacina, a precária situação sanitária das populações pobres, o banditismo no nordeste, a guerra do Contestado e sobretudo a Guerra de Canudos – dramaticamente inserida na consciência nacional pela narrativa de Euclides da Cunha em Os Sertões – eram apenas alguns sinais de que, se pequena parte do país ingressava na onda modernizadora possibilitada pela expansão do capitalismo internacional, bem mais substanciais eram o atraso, a ignorância e as condições precárias em que viviam mergulhadas as populações pobres. Violência, superstição, arcaísmo, obscurantismo, inércia e resistência à mudança eram as definições mais correntes a respeito da maior parte do país: ou seja, o avesso da racionalidade, do progressismo e da ordem que deveriam guiar os rumos de um Brasil que ‘ia avançar’”[33].

     Os partidários do PIB, ao lançarem mão do recurso de pôr em cheque as próprias categorias analíticas com que se aborda a realidade maranhense, ensaiam uma aproximação inusitada – e que revelava, talvez, certo grau de desespero - com as propostas que antropólogos, sociólogos e, mais recentemente, historiadores, vêm empregando em seus estudos sobre o Maranhão. Parecem se esquecer de que eles próprios incorreram sistematicamente no mesmo discurso que agora recusam. Falavam em nome do “progresso”, da “modernização” e do combate ao atraso. Promoveram nas últimas décadas uma série de ações “modernizantes” e “saneadoras”, todas elas ocasionando impactos altamente negativos na vida de diversas comunidades tradicionais do Maranhão. Esse dano jamais foi reparado, ou sequer reconhecido, pelos perpetradores. Foi justamente no sentido de proporcionar o reconhecimento das formas de viver e trabalhar dessas comunidades, contra o status quo que as sufocava, que atuaram os intelectuais ligados ao novo pensamento antropológico maranhense. É, portanto, surpreendente essa conversão repentina dos políticos, que agora se apropriam do discurso que foi forjado, em muitos casos, justamente para combatê-los.




Referências bibliográficas

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PINASSI, Maria Orlanda. Três Devotos, Uma Fé, Nenhum Milagre – um estudo da Revista Niterói, 1836. Tese de Doutorado em Sociologia. Campinas: UNICAMP, 1996.

REIS, Flávio. Guerrilhas. São Luís: Pitomba/Vias de Fato, 2012.

SAID. Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SCHWARTZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.




[1] Almeida analisou os escritos de Raimundo José Souza Gaioso, Francisco de Paula Ribeiro, Frei Francisco de N. S. dos Prazeres, Antônio Bernardino Pereira do Lago, João Antônio Garcia de Abranches e Manoel Antônio Xavier; nenhum deles era nascido no Maranhão, apenas um era brasileiro, e apenas dois foram residentes na Província.
[2] ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A Ideologia da Decadência: leitura antropológica a uma história da agricultura do Maranhão. Rio de Janeiro: Editora Casa 8/Fundação Universidade do Amazonas, 2008. p. 31.
[3] ALMEIDA, 2008, p. 22.
[4] apud. ALMEIDA, 2008, p. 43.
[5] Almeida percebeu na adoção desse marco cronológico uma harmonização com a política de Pombal, que empreendera uma luta ferrenha contra jesuítas e outras ordens religiosas e a quem não interessava conceder reconhecimento sobre suas contribuições desde o século XVII (ALMEIDA, 2008, p. 43).
[6] ALMEIDA, 2008, p. 62.
[7] REIS, Flávio. Guerrilhas. São Luís: Pitomba/Vias de Fato, 2012. p. 21.
[8] ALMEIDA, 2008, p. 141.
[9] A segunda edição, de 2008, mantem a tradição da primeira e continua a transitar por fora dos circuitos convencionais, rompendo, na opinião o autor, “o silêncio sobre aquelas referências bibliográficas
que desdizem os cânones instituídos por notáveis e por instituições que dominam a vida intelectual” (ALMEIDA, 2008, p. 11). A circulação é agora amparada e potencialmente ampliada por novas tecnologias que permitem duplicações virtualmente instantâneas e infinitas.
[10] SAID. Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 114.
[11] Somente nas imediações da cidade de Alcântara, de acordo com dados da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) recolhidos por Almeida, existiam no ano de 2001 mais de 8 mil moradores distribuídos em pelo menos 90 povoados identificáveis como remanescentes de quilombos; cfe. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombolas e a Base de lançamento de foguetes de Alcântara. Brasília: Edições Ibama, 2006. vol. 2, p. 21.
[12] ANDRADE, Maristela de Paula. Apresentação – Uma antropologia do campesinato no Maranhão. In: SÁ, Laís Mourão. O Pão da Terra – Propriedade Comunal e Campesinato Livre na Baixada Ocidental Maranhense. São Luís: EDUFMA, 2007. pp. 9–16.
[13] ANDRADE, Maristela de Paula; SOUZA FILHO, Benedito de (Org.) Fome de Farinha: deslocamento compulsório e insegurança alimentar em Alcântara. São Luís: EDUFMA, 2006.
[14] O caráter autônomo desse processo implicou no não reconhecimento da propriedade efetiva das terras no plano jurídico. Ex-escravos, caboclos e seus descendentes usufruíram da posse informal por muito tempo, quase sem enfrentar contestações, mas a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara e o reforço da economia capitalista na região, nas formas do agronegócio e da mineração, trouxeram novos interesses sobre as terras, que passaram a ser objeto de disputa, de forma que hoje os grupos comunitários organizados precisam lutar pelo reconhecimento oficial da titularidade desses territórios.
[15] ANDRADE et SOUZA FILHO, 2006, p. 120.
[16] ANDRADE et SOUZA FILHO, 2006, p. 31.
[17] BITENCOURT, João Batista (Coord.). “Relatório Final de Pesquisa - NO RASTRO DE CLIO: UM INVENTÁRIO ANALÍTICO DA HISTORIOGRAFIA MARANHENSE NO SÉCULO XX”. São Luís, 2013. Este material foi gentilmente encaminhado pelo professor João Batista Bitencourt.
[18] BITENCOURT, 2013, p. 4.
[19] BITENCOURT, 2013, p. 6.
[20] BITENCOURT, 2013, p. 7.
[21] Os textos foram posteriormente recolhidos na coletânea Guerrilhas, citada na nota 8.
[22] REIS, 2012, p. 16.
[23] Ainda hoje, passados mais de 15 anos da publicação de “A Fundação Francesa de São Luís e seus mitos” (2001), os defensores de La Ravardière empenham-se numa singular espécie de rito anual. O Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão promove ciclos de debates, sempre por ocasião das efemérides da suposta fundação, em que convida partidários de um e de outro lado para intensos e acesos debates, constituindo uma espécie de “fla-flu” historiográfico.
[24] REIS, 2012, p. 17-18.
[25] CAMPOS, Marize Helena de. Maripozas e Pensões: um estudo da prostituição em São Luís do Maranhão na primeira metade do século XX. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade de São Paulo, 2002.
[26] A tese de 2009 seria publicada em livro no ano seguinte: CAMPOS, Marize Helena de. Senhoras Donas: economia, povoamento e vida material em terras maranhenses (1755-1822). São Luis: Café & Lápis, 2010.
[27] MOTA, Antonia da Silva. As famílias principais: redes de poder no Maranhão colonial. São Luís: Editora da Universidade Federal do Maranhão, 2012.
[28] BORRALHO, José Henrique de Paula. A Athenas Equinocial: a fundação de um Maranhão no império brasileiro. Tese (Doutorado) História. Universidade Federal Fluminense, 2009; e BORRALHO, José Henrique de Paula. Terra e Céu de Nostalgia: tradição e identidade em São Luís do Maranhão. Dissertação (Mestrado) História. Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, 2000.
[29] NASCIMENTO, Dorval. Antônio Lobo, de Babilônia a Atenas – as estratégias de construção da Nova Atenas em Os Novos Atenienses. In BITENCOURT, João Batista; GALVES, Marcelo Cheche. Historiografia Maranhense – dez ensaios sobre historiadores e seus tempos. São Luís: Café & Lápis/Editora UEMA, 2014. pp. 129 – 150; e NASCIMENTO, Dorval. Estratégias de consagração no campo intelectual maranhense na Primeira República. Dimensões - Revista de História da UFES , v. 27, p. 239-254, 2011.
[30] FARIA, Regina Helena Martins de. Mundos do trabalho no Maranhão Oitocentista: os descaminhos da liberdade. São Luís: EDUFMA, 2012.
[31] ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombolas e a Base de lançamento de foguetes de Alcântara. Brasília: Edições Ibama, 2006. 2 volumes.
[32]PC do B fará revolução burguesa no Maranhão, diz comunista Flávio Dino”; Folha de São Paulo, 04/11/2014.
[33] MURARI, Luciana. Natureza e Cultura no Brasil (1870-1922). São Paulo: Alameda, 2009. p. 26


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