sexta-feira, 3 de março de 2017

Veronese e a Inquisição (Pintores, poetas e doidos)



"Hoje sábado, 18 de julho de 1573, sendo chamado, perante o Santo Ofício, Paulo Caliari Veronese, morador da paróquia de São Samuel, e interrogado, respondeu assim:

Juiz: Qual é a sua profissão?
Réu: Pinto e desenho figuras.
J: - Sabe a razão porque comparece neste tribunal?
R: - Não.
J: - Nem sequer supões qual ela seja?
R: - Quer-me parecer que sim.
J: - Diga então o que pensa.
R: - Penso que é por causa do assunto de quem me falaram os reverendos padres ou antes o prior, cujo nome ignorava e que me declarou ter vindo aqui e que vossas senhorias ilustríssimas mandaram que ele me dissesse que em vez do cão que pintei no meu quadro, pusesse uma Madalena. Respondi que sim, o faria, de muito boa vontade, não só por honra minha, como do próprio quadro; porém, não sabendo a razão porque havia de pintar a figura de Madalena, não o fiz.
J: - E que quadro é esse de que fala o réu?
R: - O que representa a última ceia do Cristo com os apóstolos em casa de Simão.
J: - Onde se acha esse quadro?
R: - No convento dos frades de São João e São Paulo.
J: - É fresco, pintado em madeira ou em tela?
R: - Em tela.
J: - Quantos pés tem de altura?
R: - Pode ter dezessete pés.
J: - E de largura?
R: - Trinta e nove, mais ou menos.
J: - O réu pintou serventes?
R: - Sim, pintei.
J: - Quantos? Em que se ocupa cada um deles?
R: - Primeiramente o estalajadeiro Simão; depois dele um outro personagem que comparece curiosamente, como quem quer ver que tais são as iguarias, etc., ainda há outras figuras de que não me lembro porque já há bastante tempo que fiz este quadro.
J: - O réu pintou ainda outros quadros sobre o mesmo assunto?
R: - Sim, pintei.
J: - Quantos pintou e onde estão?
R: - Fiz um em Verona para os reverendos de São Lázaro, está no refeitório. Fiz outro que está também no refeitório do convento de São Jorge, aqui em Veneza.
J: - Mas este quadro não representa uma ceia, e menos ainda a de Jesus Cristo. Como é isso?
R: - Fiz outro para o refeitório do convento de São Sebastião, de Veneza; outro em Pádua para os padres de Madalena. Creio que não fiz mais.
J: - Na ceia que pintou para o convento de São João e São Paulo, há uma figura que deita sangue pelo nariz; que quer isso dizer?
R: - É um servente a quem um acidente qualquer fez com que lhe sangrasse o nariz.
J:- Que significam esses homens vestidos à moda alemã?
R: - É preciso explicar o meu pensamento.
J: - O réu pode explicar-se.
R: - Nós outros, pintores, temos liberdades e licenças, igualmente como os poetas e os doidos, por isso representei esses alabardeiros, um comendo e outro bebendo; pareceu-me conveniente e possível que o dono da casa, rico, segundo o que me contaram, tivesse criados desta ordem.
J: - E aquele que está vestido de bobo, com um papagaio na mão, com que fim o representou o réu?
R: - É para ornato, porque é o uso.
J: - à Mesa quantos se acham sentados?
R: - Os doze apóstolos.
J: - Que faz São Pedro que é o primeiro?
R: - Trincha o cordeiro para passar aos outros.
J: - Que faz o outro personagem próximo?
R: - Palita os dentes com um garfo.
J: - Quais são as pessoas que verdadeiramente o réu supõe ter estado nesta ceia?
R: - O Cristo e os seus apóstolos: porém, quando num quadro há mais espaço, meto mais figuras de minha invenção.
J: - Foi alguém que recomendou ao réu que pintasse alemães, bobos e outras figuras semelhantes?
R: - Ninguém; porém deram-me liberdade para pintar como entendesse.
J: - As figuras que servem de ornato e que o réu tem o costume de pintar tem ali lugar porque convém ou são de mera fantasia, sem razão?
R: - Pinto com todas as considerações próprias de meu espírito e conforme entendo que é melhor.
J: - Então o réu acha conveniente pintar, na última ceia do Senhor, bobos, alemães embriagados, um anão e outras coisas somenos?
R: - Não.
J: - Então, porque razão o fez?
R: - Fi-lo porque supunha que toda essa gente estava do lado exterior da casa.
J: - E o réu sabe que na Alemanha e noutros lugares infestados de heresia é costume aviltar e ridicularizar o que é sagrado, para desse modo ensinar a falsa doutrina?
R: - Convenho que é mal feito, porém, repito o que já disse e é que o meu dever é seguir os exemplos que me deram os mestres.
J: - E o que fizeram os mestres? Fizeram talvez, coisas iguais?
R: - Miguel Angelo, em Roma, na capela do papa, representou Nosso Senhor, sua mãe, São João, São Pedro e a corte celeste, e o fez de modo que os personagens apareceram nus e em posições diversas e pouco decorosas e que a religião não inspira.
J: - O réu não sabe que representando o Juízo Final não há necessidade de pintar-se os vestuários, porque é provável que não existam? Porém estas figuras o quepodem pensar que não seja inspirado pelo Espírito Santo? Não há bobos, nem cães, nem armas, etc. etc.
O réu acha que o seu quadro é bom, é decente?
R: - Não, ilustres senhores, não quero provar isso; pensei apenas que não fazia mal; não prestei tanta consideração a estes pontos. Estava longe de imaginar tamanha desordem, tanto mais que esses bobos estão distantes do lugar onde se acha Nosso Senhor.

Ditas estas coisas, o juiz pronunciou as seguintes palavras:

J: - Paulo Veronese é obrigado a corrigir o quadro no espaço de três meses, a contar de hoje, e isto segundo o arbítrio e decisão do tribunal sagrado, ficando as despesas sujeitas ao mesmo Paulo.
Et ita decreverunt omni melius modo” [E assim decidiram pelo melhor]"

(em vez de fazer as alterações determinadas pelos inquisidores, Veronese apenas mudou o título da obra para Banquete na Casa de Levi. Ao fazer isso, o pintor conseguiu se livrar das acusações sem alterar sua obra, já que os próprios Evangelhos descreviam o Banquete de Levi como ocasião em que estiveram presentes "pecadores").

 

(Revista de Música e Bellas Artes, 6-12-1879)

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