Uma
constante em nossa sociedade desde os tempos da Independência: somos portadores
de uma cultura de caráter “postiço, inautêntico, imitado” (p. 29). Um problema
de fundo que permeia as visões de mundo de indivíduos ligados às mais variadas
correntes: modernos, românticos e naturalistas, esquerdistas e direitistas etc.
A
roupa de papai noel é inadequada; a
guitarra e a democracia são vistas como
inadequadas; o liberalismo (ideia) e a escravidão (real) são observados como
elementos incompatíveis pelos contemporâneos do século XIX; em suma, “todos
comportam o sentimento de contradição entre a realidade nacional e o prestígio
ideológico dos países que nos servem de modelo” (p. 30).
O
“caráter imitativo de nossa vida cultural” (p. 30) aparece no ambiente
acadêmico: troca-se de “escola” ao sabor das modas, sem que se respeite um
projeto de construção de conhecimento duradouro, sem que se resolvam questões
abertas pela escola anterior; um eterno recomeçar, um eterno dar de costas ao
que se produziu pela geração passada, etc.: “Tem sido observado que a cada
geração a vida intelectual do Brasil parece recomeçar do zero” (p. 30), o que
gera “descontinuidade da reflexão” (p. 30). Alguns “grandes” – ele cita Machado,
Mario de Andrade e A. Cândido – sobressaíram-se porque inovaram (estiveram de
ouvidos abertos para o novo) sem desligar-se dos antecessores[1]:
eis as palavras de Schwarz: “Não se trata, portanto, da continuidade pela
continuidade, mas da constituição de um campo de problemas reais, particulares,
com inserção e duração histórica próprias, que recolha as forças em presença e
solicite o passo adiante” (p. 31). A própria ideia de ruptura, ele assevera,
nada significa sem que a preceda (ou possibilite) esse “adensamento cultural”
anterior.
Diante
dessa constatação, aparece a atitude defensiva instintiva de passar ao polo
oposto e censurar toda e qualquer “tendência metropolitana”: fechar-se em copas
e agarrar-se a uma suposta pureza particular e pugnar incessantemente pela
manutenção de sua virgindade.: essa ideia foi forte nos nacionalismos de
esquerda e de direita.
Se
“hoje” parece improvável (inverossímil) que esse cenário impoluto se possa
realizar, Schwarz afirma que “há 20 anos” (refere-se aos anos 1950-60) era
possível pensar numa cultura a salvo da contaminação da cultura de massas e da
penetração dos elementos estrangeiros.
“Reinava um estado de espírito
combativo, segundo o qual o progresso resultaria de uma espécie de reconquista,
ou melhor, da expulsão dos invasores. Rechaçado o Imperialismo, neutralizadas
as formas mercantis e industriais de cultura que lhe correspondiam, e afastada
a parte antinacional da burguesia, aliada do primeiro, estaria tudo pronto para
que desabrochasse a cultura nacional verdadeira, descaracterizada pelos elementos anteriores, entendidos como corpo
estranho”[2]
(p. 32).
Era
a “ilusão própria ao nacionalismo populista, que coloca o mal todo no exterior”
(p. 33). Isso levava a uma visão idealizada do elemento nacional: ele é bom por
natureza, basta desembaraçá-lo desses tentáculos estrangeiros. “[E]speravam
achar o que buscavam através da eliminação do que não é nativo. O resíduo dessa
operação de subtrair, seria a substância autêntica do país” (p. 33): nacional
por subtração.
No
século XIX, pretendeu-se afastar a influência portuguesa com uma pretensa cultura
nacional que foi, de fato, apenas o resultado da diversificação de modelos
europeus.
“Hoje”
esse nacionalismo por exclusão parece anacrônico e provinciano: para quem está
(cresceu, “se entendeu”) no interior da “cultura de massas” – americanizada etc.
– parece inverossímil desejar um país “limpo” dessas influências (que nem podem
ser vistas como influências, são o cenário natural, pura e simplesmente): “Nesta
atmosfera ‘global’, de mitologia unificada e planetária, o combate por uma
cultura ‘genuína’ faz papel de velharia. Fica patente o seu caráter ilusório,
além de provinciano e complementar a formas arcaicas de opressão” (p. 34). Essa
crítica, assevera Schwarz, esconde um conformismo: atacar as formas nacionalistas
do passado e suas opressões – coisa válida e necessária – esconde uma atitude
de aceitar placidamente o cenário de “hoje”, como se ele fosse anódino, como se
nele não se processasse também uma estrutura de poder e opressão; a comunicação
de massa não é libertária, não é diferente daquela a quem “substituiu”. Os “globalistas”
[gostaria de chamá-los de “pós-modernos”] se colocam no papel de vanguarda dos oprimidos
abrindo caminho para a libertação – os heróis desbravadores, os messias –
vencendo as velhas posições opressoras; de fato, são parte de um processo
triunfante e, ele sim, opressor, porque hegemônico e maciço, excludente e autoritário.
“Alinham-se com o poder como quem faz uma revolução” (p. 34) [que definição
mais precisa pode-se cunhar para os pós-modernos?]
[1] Esse trecho lembra a crítica dos
antimodernistas que lamentavam a ruptura dos modernos com os padrões do passado;
concordavam que se fizessem inovações, mas sem esquecer o que se fizera até
então, que se partisse do ponto em que a tradição havia chegado e se a levasse
adiante; e é estranho também encontrar Mario de Andrade nessa enumeração
tripartite: ele que fora um iconoclasta (que sei eu?), ele que fora adepto da
ruptura: que tradição ele retomou?
[2] E não era isso mesmo o que pensavam os
modernistas sobre a cultura brasileira? Exceto que trocavam de inimigo: não o “imperialismo”,
mas o “academismo”: a Academia instalada em 1826 era vista como responsável
pela interrupção do desenvolvimento de uma cultura autóctone, poluída por
elementos estrangeiros; e era sua intenção justamente limpar esse legado “acadêmico”
e retomar a cultura nacional do ponto em que fora interrompida e novamente levá-la
a se desenvolver; isso se mostrou de maneira particularmente clara no caso da
arquitetura: Ricardo Severo – o primeiro arquiteto-modelo dos modernistas –
pugnava pelo estilo “neocolonial”.
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