terça-feira, 18 de maio de 2010

Resenha - "O que é a Comuna?" de Karl Marx

Karl Marx: seu tempo e suas ideias

Quem era o homem que observou os acontecimentos da França de 1871 e extraiu deles considerações e conclusões profundas a respeito da dinâmica social daquele país, de suas diretrizes econômicas e instituições políticas? Compreender o escrito “O que é a Comuna?” é tarefa que exige, antes de qualquer coisa, que se saiba melhor de que ponto seu discurso é emanado.
Karl Marx nasceu numa Europa que ainda sentia as vibrações das grandes alterações trazidas pela Revolução Francesa. Filho de um advogado pequeno burguês de origem judaica, membro de uma família acossada pelo antissemitismo que se viu forçada à conversão ao protestantismo, ele cresceu numa região fronteiriça recém assimilada pela Prússia. Um governo de tendências absolutistas havia sido imposto pelo Congresso de Viena e tentava extinguir as influências da Revolução de 1789, enfrentando resistência quase sempre. Nesse cenário, ocorria ainda a consolidação e o antagonismo de duas forças jovens em ascensão: a burguesia e proletariado. Marx viveu no limiar de um período de transição histórico onde as forças sociais e econômicas se reacomodavam, e cuja configuração final ainda era indefinida. As possibilidades estavam abertas.
Sua formação foi variada, mas no doutorado Marx dedicou-se à filosofia. Impossibilitado de alcançar a almejada cátedra na universidade por conta de suas posições ideológicas divergentes das dos mandatários, ele encontrou no jornalismo um canal para veiculação de suas concepções. Desde a juventude, Marx preocupou-se com questões concernentes ao bem-estar da humanidade. No cenárrio em que viveu, identificou-se com a classe operária e se alinhou aos socialistas que buscavam formas de solucionar as mazelas que atingiam esse segmento da sociedade. Descontente com as ideias socialistas existentes, dedicou-se à formulação de um novo socialismo científico.
Em conjunto com Friedrich Engels, Marx elaborou um modelo de explicação que via a economia como elemento determinante das estruturas políticas e sociais. Detectou a existência de classes com interesses antagônicos em constante conflito. Essa disputa pela primazia entre as classes seria responsável pelos movimentos e transformações ao longo do tempo. Em sua obra mais conhecida, “O Capital”, de 1867, Marx empregou esse prisma para desnudar os mecanismos de funcionamento do capitalismo, apontando a contradição entre capital e trabalho e concluindo com a previsão de que os proletários acabariam por conquistar espaço mediante a supressão da propriedade privada.
A partir desse conjunto de ideias Marx criou um programa de ação e procurou colocá-lo em prática através da doutrinação do proletariado. Essa é uma característica marcante desse pensador: sua atuação política real e direta. Marx participou de inúmeras assembleias e reuniões de operários e líderes sindicais, onde argumentava a favor de suas ideias, além de promover sua doutrina por meio da imprensa, sendo reconhecido em toda parte como uma força política pró-operariado, a ponto de ser preso em 1848 sob a acusação de incitar rebeliões. No entanto, recusou sistematicamente todos os convietes para participar de movimentos armados. Desejava a libertação “de dentro para fora”, uma insurreição baseada na compreensão, não na força.
No plano pessoal e familiar, tais opções ideológicas trouxeram infindáveis problemas e inúmeros dramas. Foi obrigado a se deslocar constantemente, fugindo de perseguições, até encontrar um porto seguro em Londres. Submeteu-se e aos seus a uma vida miserável, onde a fome, o desconforto material e as doenças eram companheiras habituais. Três de seus filhos morreram ainda na infância, em decorrência dessa vida atribulada e pobre.
Em seus últimos anos de vida, debilitado e cada vez menos ativo, Marx percebeu uma tendência que iria se acentuar após sua morte: o empobrecimento de suas ideias. Seus discípulos promoveram uma interpretação ruim de seu pensamento, resultando em escritos e ações economicistas, reducionistas e dogmáticas. O aviltamento era tão patente que o próprio Marx se declarava não marxista.

A França no século XIX: na vanguarda da revolução

Para Marx, a França era um interessante laboratório de provas para suas teorias, uma vez que era o núcleo dos movimentos sociais que convulsionavam a Europa, a vanguarda do desenrolar dos acontecimentos e palco de uma luta prolongada entre as forças da burguesia contra o proletariado. Ele empregou a metodologia do materialismo histórico para empreender uma explicação dos acontecimentos da França. Estudou as engrenagens e a dinâmica de seus sistema econômico e identificou uma coincidência entre as alterações dele e as convulsões políticas. Percebeu, por exemplo, que a aristocracia financeira foi beneficiada no governo de Luis Felipe e que a exclusão dos outros setores sociais fomentou a Revolução de 1848. Estabeleceu uma clara relação entre os movimentos econômicos com os sociais e políticos, inferindo o determinismo daqueles nestes. Essa análise da situação francesa foi retomada e ampliada mais tarde, quando Marx se dedicou a explicar a Comuna.
Resta apontar ainda que, à época da Comuna, Marx já havia publicado sua obra principal e que os acontecimentos de abril de 1871 pareciam confirmar as predições expostas nela. A partir da Inglaterra, ele acompanhou vivamente os eventos que se sucediam na Paris communard, e declarou de imediato o apoio da Internacional Comunista ao movimento.

Aspectos Formais do Texto

Essa é a essência do discurso de Marx presente em “O que é a Comuna?”: desvendar, em cada evento político, as forças sociais e econômicas que se beneficiam dele, ou que se prejudicam com ele, apontando o sentido dos esforços dos atores envolvidos.
Neste escrito, Marx dedica-se inicialmente a descrever a formação do Estado moderno, apresentando-o como uma construção burguesa que surgiu como instrumento de tomada e manutenção de poder, em sua luta contra a estrutura feudal. Uma vez apagados os sinais dessa forma arcaica de organização socio-econômica, o Estado burguês torna-se ferramenta de controle sobre as classes trabalhadoras pelo capital.
Dessa forma, demonstra que a burguesia francesa aperfeiçoou progressivamente seus mecanismos de coerção sobre o proletariado florescente e cada vez mais organizado. A revolução de 1830, vista por esse prisma, é mais do que a mera substituição de monarcas: a ascensão de Luis Felipe representa a troca de grupo dominante no poder, dos proprietários de terra pelos capitalistas
A sujeição das classes produtoras se acirra com a chegada de Napoleão III ao poder. A burguesia, superando momentaneamente as dissensões internas, concentra nesse personagem seus poderes, o que leva a uma centralização radical que acabou ferindo de morte o sistema parlamentar. Segundo Marx, esse foi o ápice do domínio burguês, momento em seus ganhos atingiram níveis “jamais sonhados por eles mesmos”. Sintomaticamente, foi um período de grande miséria para a massa trabalhadora.
O desastre dos projetos imperialistas delirantes do governo abriu espaço para que os parisienses realizassem uma forma de governo que repudiava não só o regime monárquico como também a própria dominação de classe. A Comuna representava, nessa análise, o modelo de governo ideal para as classes trabalhadoras. Uma vez senhores do governo, os representantes dos trabalhadores atacaram diretamente os maiores pilares de sustentação do Estado burguês: as forças policiais e militares, que perderam suas atribuições políticas, e a Igreja, destituída de seus bens e de sua influência sobre os destino espirituais. Os sistemas judiciário e escolar e a administração pública sofreram reformas que expurgaram os mecanismos benéficos às classes possuidoras. É esse o sentido que Marx confere às ações que a Comuna desempenhou nos pouco mais de dois meses em que permaneceu no controle de Paris.
Do meio da profusão de acontecimentos e da nuvem de interpretações e opiniões, Marx extraiu uma diretriz geral e se entusiasmou com experiência comunal e autogestionária corporificada em Paris. Tratou de defender, ponto por ponto, as ideias e ações da Comuna, apontando-a como elemento inédito na história política da Europa. Ele procurou demonstrar que a Comuna, longe de querer destruir o Estado, desejava universalizar o acesso a ele, retirando-o das mãos de um único segmento social. O mesmo afirma em relação à propriedade privada: o que se pretende é socializá-la, arrancando-a do controle de uns poucos privilegiados e colocando-a a serviço do bem comum.
Para Marx, a comuna é a materialização das ideias expostas em “O Capital”: o esgotamento do sistema capitalista, a assunção do “mandato histórico” de arautos de um novo tempo pelas classes trabalhadoras, que libertam com suas ações as novas forças. É ainda a demonstração empírica de sua noção de luta de classes como desencadeadora de dinâmicas e transformações.
A derrota da Comuna, canibalizada pelos asseclas do “anão monstruoso”, Monsieur Thiers, amparados por Bismarck, fez Marx repensar alguns de seus conceitos. Daí por diante, ele passou a defender a necessidade de um período de transição entre a derrubada do capitalismo e a construção do socialismo, um hiato a ser ocupado por uma “ditadura do proletariado” capaz de superar, com suas forças centralizadas, o caos que se desenvolve nos momentos de transformações profundas.

Considerações Finais

O século XIX testemunhou o zênite da economia capitalista ortodoxa. Depois de uma longa etapa de desenvolvimento e elaboração, as forças desse novo modelo de organização sócio-econômica se viram livres de suas amarras mercantilistas e finalmente puderam realizar aquilo que Adam Smith e seus seguidores preconizaram em suas obras: uma economia onde o mercado dava as cartas e ordenava, sem outras orientações senão a da auto-regulamentação, a vida produtiva das sociedades. O trabalho e a terra, até então protegidos da lógica de mercado, foram finalmente assimilados e transformados em mercadorias.
Esse fenômeno sem precedentes na história provocou efeitos contrários e radicais: por um lado, as forças econômicas atingiram um auge de poder, criando um mundo de realizações grandiosas e impensáveis num passado não muito distante. A capacidade de intervenção das forças humanas se tornou imensa e, por um momento, virtualmente infinita. Por outro lado, porém, a mercantilização do trabalho representou uma transformação brutal na vida dos indivíduos, um movimento que quase destruiu as sociedades. Os dois extremos foram atingidos: a riqueza mais elevada e a miséria mais absoluta.
O que impediu a destruição foi uma reação quase instintiva de repúdio aos novos modos de organização. Aos poucos, o nível de consciência sobre os mecanismos de funcionamento do capitalismo cresceu. O ápice dessa tomada de consciência veio em 1867, com a publicação de “O Capital”, obra que pôs a nu o novo sistema econômico e, ao mesmo tempo, ofereceu uma perspectiva de mudança revolucionária para as massas oprimidas. A Comuna de Paris representou, afinal, um dos momentos em que o sofrimento do povo se converteu em luta.


Referências Bibliográficas

KONDER, Leandro. Marx: Vida e Obra.

MARX, Karl. ”O que é a Comuna?” In: FERNANDES, F. (org.). Marx e Engels - História. Col. Grandes Cientistas Sociais n° 36. São Paulo: Ática, 1983.

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