quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sobre o Haiti

Sempre que um evento é veiculado tão insistentemente nos noticiários surge uma oportunidade de discussão em sala de aula. Em geral, o contato com as informações disseminadas pelos meios de comunicação de massa gera uma noção superficial e sensacionalista do fato. O uso de textos analíticos inteligentes pode servir como exercício de aprofundamento da compreensão e dá margem para se enxergar as estruturas profundas por trás da notícia. O texto que posto abaixo, publicado na segunda-feira no jornal Folha de São Paulo, permite ver as raízes históricas do desmantelamento do Haiti, demonstra os atores históricos envolvidos nesse processo e as intenções que moveram suas ações. Sobretudo, é uma chance de mostrar o peso do passado na vida cotidiana. Treinar as mentes para que façam esse tipo de análise pode ajudá-las a compreender melhor seus próprios contextos, um dos objetivos das aulas de história.



OMAR RIBEIRO THOMAZ e OTÁVIO CALEGARI JORGE ESPECIAL PARA A FOLHA, EM PORTO PRÍNCIPE

O TERREMOTO no Haiti, que afetou de forma particularmente arrasadora sua capital, foi há cerca de uma semana. O pouco de um Estado já frágil foi destruído, a missão das Nações Unidas foi incapaz de ir além de resgatar seus próprios mortos e feridos, a ajuda internacional tarda, e o que vemos são haitianos ajudando haitianos. Entre quarta-feira e sábado, caminhar pelas ruas do centro de Porto Príncipe e de Pétionville era observar o civismo dos haitianos que, muitas vezes, e como nós, sem entender claramente o que havia acontecido, procuravam cuidar dos feridos, resgatar aqueles que ainda estavam vivos sob os escombros, e dispor de seus mortos. O que vimos foi, de um lado, solidariedade, de outro a ausência quase que total e absoluta das forças da ONU e da ajuda internacional. Por quê? Afinal, a Minustah não estava no Haiti há cerca de seis anos e não dizia estar agindo no sentido de estabilizar o país e reconstruir o Estado haitiano? Quando nos perguntávamos do porquê da demora de disponibilizar comida e remédios já no aeroporto de Porto Príncipe para as centenas de milhares de pessoas que se aglomeravam nos campos de refugiados improvisados por todos os lados, a resposta era que não existiam canais locais capazes de serem mobilizados para a tarefa. Homens e mulheres que tinham vindo para ajudar, e as coisas que traziam, se aglomeravam num aeroporto controlado por forças militares americanas, como se de uma operação de guerra se tratasse. Após seis anos no Haiti, aqueles que diziam que estavam ali para reconstruir o país, não tinham entendido nada, ou muito pouca coisa. Quando fomos às praças e campos de futebol transformados em campos de refugiados, eram as "dame sara", mulheres que controlam as redes comerciais existentes no país, que garantiam o acesso dos haitianos a produtos; eram aquelas que cozinham na rua, "chein jambe", que ofereciam galinha, espaguete, arroz, feijão e verduras aos haitianos e haitianas aglomerados; eram caminhões pertencentes a empresários locais que distribuíam água potável. Haitianos ajudando haitianos. Por que não aproveitar esta energia e estas redes existentes para fazer chegar a ajuda? Por desconhecimento, talvez, ou talvez por duvidar de sua eficácia, ou da possibilidade de uma vítima ser mais do que uma vítima passiva à espera de ajuda. O desconhecimento, no entanto, é duvidável. Em nossa visita ao batalhão brasileiro da Minustah, horas antes do terremoto, pudemos ver na apresentação do coronel João Bernardes um extremo conhecimento do funcionamento da sociedade haitiana. Infelizmente, a falta de ajuda parece estar mais ligada às disputas internacionais pelo controle do futuro do povo haitiano do que à emergência da situação. Sim, os haitianos são vítimas, mas estão longe da passividade: pra cima e pra baixo, entre as "dame sara" e o "chein jambe", vimos jovens escoteiros removendo entulho, jovens pedido ajuda com alto-falantes, médicos haitianos dando atendimento aos feridos nas ruas, freira haitianas prestando os primeiros socorros quando possível. Paralelamente, o aparato da Minustah, cerca de 5.500 militares de diferentes nacionalidades, ou estava parado, ou mobilizado na atenção dos próprios quadros da ONU. Os haitianos ajudam haitianos, a ONU ajuda a ONU.
Culpas internacionais Duas reações foram recorrentes nos dias que se seguiram aos terremotos. Uma, talvez a mais primária, era a de responsabilizar a natureza. A outra, a de responsabilizar os próprios haitianos pelo caos que sucedeu ao cataclismo. Afinal, foram incapazes de construir um Estado e, por isso, são incapazes de reagir. Ambas as reações são perversas. Não estamos só diante de um cataclismo natural, mas também de uma catástrofe social. E o desmantelamento do Estado haitiano não é responsabilidade exclusiva dos haitianos, muito pelo contrário. País com pouca margem de manobra no contexto caribenho ao longo das décadas de Guerra Fria, viu as grandes potências apoiarem uma ditadura regressiva e particularmente violenta; concomitantemente, e especialmente a partir do fim dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, o Haiti, como tantos outros países, foi vítima de profissionais engravatados que aplicavam a mesma receita em qualquer lugar: desregulamentação, estado mínimo, livre comércio. Foram as pressões do FMI e do Banco Mundial que obrigaram o Haiti a desproteger a produção de arroz no início dos anos 1980. O Haiti era, até então, autossuficiente em arroz. Em pouco tempo não só se viu obrigado a importar este produto, como massas de camponeses foram expulsas do campo para a capital do país, aglomerando-se em habitações precárias, as mesmas que foram abaixo com o terremoto. Tal como ocorreu com o arroz, o cimento também foi afetado. Antes era produzido no país, e desde finais de 1980 foi importado dos EUA, o que obrigou os haitianos a fazerem uso de tijolos pobremente produzidos com areia. Tais tijolos são frágeis e acabam afetando a própria condição das construções. E podemos seguir adiante para demonstrar que o desmantelamento do Estado haitiano foi obra da "comunidade internacional". Somente uma crítica sistemática ao próprio caráter da ajuda internacional nas últimas décadas poderá ajudar o Haiti a sair de um atoleiro que não foi construído apenas por ele. O que pudemos observar, além da passividade da própria comunidade internacional, capaz de mobilizar mundos e fundos, mas incapaz de conversar com as "dame sara" para imaginar uma saída criativa para a distribuição da ajuda, foi um movimento mais do que preocupante. Milhares de soldados americanos ocupam, mais uma vez, o país, como se houvesse uma situação de guerra civil, e o Brasil, já imerso há seis anos em toda essa lama, entra no circo das potências que querem "ajudar" o Haiti. Sem termos presente o fato de que o Haiti é um país soberano, e que os haitianos não são vítimas passivas de catástrofes naturais, dificilmente sairemos do circulo de pobreza e miséria criada pela própria "comunidade internacional", no qual o Brasil ocupa um trágico lugar central.


OMAR RIBEIRO THOMAZ, 44, é professor de antropologia da Unicamp; OTÁVIO CALEGARI JORGE , 21, é estudante de ciências sociais na mesma universidade

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Luiz Felipe Pondé e o ofício do professor

Foi publicado ontem no jornal Folha de São Paulo um artigo de Luiz Felipe Pondé que faz considerações sobre o ato de ensinar. Bastante perturbador pelas afirmações pouco otimistas e por apontar coisas que todos sentimos mas nunca dizemos... A íntegra pode ser lida em http://integras.blogspot.com/2010/01/quem-cre-que-educacao-cria-novos-seres.html. Posto abaixo um trecho selecionado:


"Acreditar na educação é crer que com ela criamos novos seres humanos. Isso não acontece porque a maioria de nós professores, como todo mundo, ganha menos do que queria, é mais infeliz do que esperava, é mais sozinho do que sonhava, é muito menos importante do que imaginava. Esse não costuma ser um perfil indicado para "criar novos seres humanos" porque nele facilmente brota o rancor, o fracasso, a inveja e, por isso mesmo, a mentira.
A maioria de nós acabou como professor por falta de opção ou ilusão juvenil ou incapacidade de enfrentar o mercado profissional ou porque sonhava em ser um novo Marx ou um novo Freud. Quem crê que a educação cria novos seres humanos o faz para disfarçar seu cotidiano ordinário, é uma mentira contada a si mesmo todo dia.
O conhecimento é um risco e não uma ferramenta de alegria. Um fardo, uma dádiva de um Deus que parece torturar os covardes ou uma sequela de uma seleção natural sonambúlica e cruel. A educação é um ofício que nos prepara para nosso destino. Uma conversa infinita entre mortos e vivos sobre o enfrentamento desse fardo, que nos une a todos no mesmo tecido cego."
Foto: arquivo pessoal

sábado, 12 de dezembro de 2009

Resenha: Movimentos Sociais - novas tendências

Resenha final do curso "Movimentos Sociais, novas tendências" do lato senso da PUC-SP.

Uma breve explicação

“Deus está morto” decretou Nietzsche no século XIX. Junto com Ele, sucumbiram também seus sucedâneos materiais, as grandes metanarrativas apoiadas na crença racionalista inaugurada pelos renascentistas e consolidada pelos iluministas. Esse cataclisma na base mental do Ocidente, detectado pelos filósofos há mais de um século, se disseminou para as outras esferas do pensamento, contagiando progressivamente a arte, a ciência e, a esta altura, até o senso comum. Essa nova configuração intelectual, identificada como relativismo pós-moderno, tem sido analisada pelos impactos negativos que provoca, sendo atacada por pensadores oriundos de setores tão díspares quanto a Igreja e o marxismo.
Hoje não é tão simples, para o profissional de história, se posicionar metodologicamente, ideologicamente, politicamente. Não há grandes eixos aos quais se alinhar comodamente, sem reflexão. As dúvidas profundas que se impõe a respeito da validade dos conceitos absolutos levam à necessidade de se repensar as bases sobre as quais se fundamentam as contruções mentais.
Esse estudo tem como objetivo desenvolver reflexões sobre os impactos dessas mudanças no trabalho do historiador. Ele foi suscitado pela leitura do artigo[1] de Irma A. Antognazzi, exigida para o curso “História dos Movimentos Sociais: Novas Abordagens”. A contundência de suas afirmações provocou um movimento de reavaliação de valores, práticas e ideias que precisou se alimentar de outras fontes para esboçar algumas prematuras conclusões. Outras formas de encarar a questão foram encontradas em Ciro Flamarion Cardoso[2] e Keith Jenkins[3]. Ainda há um grande volume de obras a ser percorrido antes de se chegar a considerações mais conclusivas. A estratégia de abordagem desse texto é descrever e comparar as ideias desses três autores, havendo algum espaço para reflexão pessoal. Nesses momentos, optei pelo uso da primeira pessoa, recurso que facilita a construção das sentenças baseadas em minhas ideias. Ao final, além de considerações finais sobre a questão discutida, reservei uma seção para considerações subjetivas e impressionistas sobre o impacto do relativismo no ensino da história.



Análise das Ideias de Irma A. Antognazzi, Ciro Flamarion Cardoso e Keith Jenkins a respeito do posicionamento do historiador
em sua atividade profissional.


No filme brasileiro “Narradores de Javé”[4] esboçam-se algumas críticas ao processo de escrita da história que podem servir de introdução ao debate que se inicia. Na obra de Eliana Caffé conta-se a história de um vilarejo, Javé, prestes a submergir nas águas de uma represa criada para alimentar uma hidrelétrica. Frente a essa ameaça, os moradores se reunem e discutem uma forma de evitar a tragédia, chegando à conclusão que o único caminho possível para salvar a cidade é provar que ela tem valor histórico, elevando-a à categoria de “patrimônio”. Como não há registros da sua história, resolvem produzir um, convocando para tal tarefa Antônio Biá, único letrado da região. Este, munido de um caderno onde objetiva escrever a história “científica”, passa a colher as provas do valor histórico de Javé, trazidas à tona através de relatos de alguns de seus habitantes. Os fatos narrados, no entanto, variam de acordo com o entrevistado, que dão ênfase hora a um, hora a outro vulto do passado javélico. Os realizadores dessa obra acabaram criando uma metáfora poderosa que desnuda os mecanismos de produção e consumo do saber histórico, entrando na discussão acirrada que atualmente se impõe aos que se dedicam a esse ramo do saber. Afinal a história ainda é, para alguns, uma ciência objetiva, que é capaz de apreender fidedignamente a realidade de seu objeto (o passado) e ainda, aos moldes das ciências da natureza, é meio de “descobrir” as leis que regem os movimentos das sociedades no tempo e das classes entre si. É essa a visão que se questiona no filme. Que fatos são esses, que cambiam ao sabor dos interesses de cada um dos narradores? Que imparcialidade é essa, uma vez que os produtores da história já têm uma conclusão pronta a ser corroborada pelo manuseio hábil do passado? Que critérios objetivos são esses que elegem determinados narradores como porta-vozes do passado, em detrimento de outras vozes? Como, afinal, se pretende científica uma história que agrega em seu processo de constituição elementos tão subjetivos, aleatórios e imprevisíveis como os citados acima? Qual é, então, a verdadeira natureza da história, e como deve o historiador se posicionar nesse pântano de incertezas?
Para a argentina Irma A. Antognazzi, a história é uma ciência capaz de desvendar a realidade do mundo. Em artigo recente, ela expõe suas ideias a respeito das alterações ocorridas no campo historiográfico e das ciências sociais. Fundamenta seu texto na defesa das teorias de Marx e do materialimo histórico; é a partir dessa posição que erige seus argumentos. Ela reconhece o abandono dessas concepções, atribuindo-o a ações intencionais de grupos ligados ao grande capital transnacional, que ao mesmo tempo fomentam as ideias relativistas. Tal estado de coisas interessaria a esses grupos, uma vez que a ausência de um paradigma totalizante explicativo da realidade social e a adoção de chaves de compreensão fragmentárias impedem a formação da consciência, tolhem o entendimento dos mecanismos do mundo e, em consequência, obstam as ações reformadoras ou revolucionárias.
No que tange especificamente à historiografia, Irma defende que as “novas tendências” (estudos que contemplem mentalidades, cultura, cotidiano, etc. ) devem ser vistos como complementares ao marxismo. Retira deles o caráter de “novidade”, uma vez que aponta a existência de abordagens desse tipo desde o século XIX, que eram feitas sem o abandono da perspectiva totalizante.
Sobretudo, o que a autora defende é a tomada de posição por parte do historiador, que deve compreender a possibilidade de atuação no presente e servir de “guia consciente” das forças do povo, revestindo de ciência os esforços, evitando o método de ensaio e erro. A exortação é para que o trabalho do historiador seja voltado para a revolução, para a melhoria nas condições sociais via combate aos dominadores/exploradores. Todos esses esforços, fica evidente, devem ser embasados teoricamente por orientações marxistas.
A visão de mundo que se subentende a partir da análise desse artigo é bastante simplificadora: existem dois pólos contraditórios, a massa que é explorada e que ignora os mecanismos e as causas que a devoram, e uma camada de exploradores que age intencional e conscientemente no sentido de dominar e manter a dominação mediante a ocultação dos sistemas de controle. Nesse contexto entra em cena o historiador, que desvenda tudo com seu olhar treinado. Ele deve então fazer sua escolha: seguir o caminho do bem e resgatar a massa de sua ignorância ou aventurar-se pelo caminho do mal, juntando esforços com os dominadores para produzir teorias diversionistas que encubram no lugar de descobrir. Nesse universo de forças tão bem definidas, existe apenas uma trajetória de luta, que é o da compreensão, sob a ótica do materialismo histórico, da realidade social e a consequente revolução proletária. Essa é a única verdade aceita, e todo o resto é equívoco, intencional ou inconsciente.
O objetivo do texto é claro. Trata-se de tentar convencer da necessidade de não se abandonar o paradigma marxista, defendendo-o como o único caminho verdadeiro. Trata-se também de sugerir que essa visão permeie os cursos de formação das novas gerações de profissionais de história e cientistas sociais. Em última análise, o que se sugere é a doutrinação do historiador, que deve sair de sua etapa formativa fiel às diretrizes do prisma marxista.
Ciro Flamarion Cardoso situa a discussão num outro nível. Apesar de crer na necessidade da existência das visões holísticas do social, único meio de propor mudanças, percebe o descrédito delas como oriundo de outros fatores. Não há aqui o maniqueísmo de Antognazzi, não se apontam “mãos invisíveis” tramando deliberadamente pela queda do marxismo. Ciro vê um movimento maior, uma contestação mais profunda que leva de arrasto não só o marxismo, mas todas as teorias fundadas no paradigma iluminista. A crença na razão e na ciência como promotores do progresso entram em declínio, entre outros fatores, em função da desilusão que o contato com as mazelas geradas por elas produziu nos indivíduos ao longo do século XX. O futuro brilhante projetado pelos arautos do cientificismo dos séculos XVIII e XIX se consolidou num cenário de morte e miséria no século XX. O abandono dessa visão marca o fim de uma era, momento do qual se aproveitam elementos conservadores e neoliberais para impor configurações favoráveis aos seus interesses. Elementos que se beneficiam do contexto, mas que, ao contrário do que sustenta o texto de Irma Antognazzi, não o engendraram. Ciro aponta ainda um fenômeno concomitante, uma transformação profunda que nos coloca com “um pé no mundo das primeiras revoluções industriais, outro no mundo nascente”. Esse movimento rumo ao indefinido põe em xeque visões holísticas. O futuro, no entanto, tempo de estabilização, trará um novo paradigma totalizante, que carregará “elementos do marxismo”, mas que será novo e singular. Se a realidade está sempre mudando, é impossível criar uma visão holística absoluta, senão circunstancial e temporária. E a nova visão holística não surgirá enquanto o novo não emergir e se estabelecer: é impossível teorizar o casual.
Os escritos de Irma Antognazzi e Ciro Flamarion Cardoso têm em comum a crença na necessidade de uma visão holística do social e a crítica ao modelo pós-moderno; divergem quanto aos motivos do ocaso das visões holísticas, e também no apego ao marxismo: Antognazzi reafirma sua validade, Ciro se despede dele.
Keith Jenkins, no obrigatório “A História Repensada”, enxerga a emergência do pós-modernismo como fruto de uma nova fase de desenvolvimento do capitalismo, onde as forças do mercado são tomadas como valor máximo. Diante dessa nova baliza, tudo perde seu valor intrínseco e passa a ser avaliado mediante sua relação com as outras coisas. É a morte do absoluto. Ao contrário de Ciro e de Antognazzi, Jenkins percebe o relativismo como algo positivo, benéfico e potencialmente renovador.
No que se refere à história, ele parte da demonstração da cisão fundamental entre a ciência e seu objeto para evidenciar a impossibilidade de se atingir a objetividade. O principal obstáculo à cientifização da história é que seu objeto de estudo – o passado – é de natureza diferente, e o processo de transformação do passado em história é permeado por situações condicionantes que inviabilizam a invocação da “verdade”. Uma dessas condicionantes é o caráter ilimitado do passado: o que resta dele, através dos vestígios, é apenas uma fração, incapaz de fornecer uma visão completa do todo. Essa constatação obsta os esforços dos que pensam na história como a simples narração do passado como ele foi realmente: a perspectiva positivista. Além disso, o que nos chega do passado são relatos, já contaminados da subjetividade de seus produtores. Mesmo que os intérpretes desses relatos conseguissem se livrar de toda sua subjetividade (o que na prática é impossível), eles não conseguiriam expurgar a subjetividade inerente aos documentos do passado. O máximo que se pode fazer é comparar tais relatos, o que torna a história um exercício de interpretação dos discursos sobre o passado. Por fim, há a condicionante subjetiva, ou seja, o papel do historiador na intermediação entre passado e história, situação em que obrigatoriamente serão agregados ao resultado do trabalho os “constructos pessoais” do historiador, sua perspectiva.
Em suma, Keith Jenkins procura demonstrar que a história é um “campo de forças”, onde interesses dos diversos grupos e indivíduos combatem na tentativa de fazer prevalecer suas ideias e percepções. Eventualmente um deles predomina sobre os outros, e impõe aos outros o seu discurso como o verdadeiro, universalizando-o. No discurso de Jenkins o próprio conceito de verdade perde a validade, sendo também indentificado como um constructo parcial e subjetivo, sustentado por uma estrutura de poder.
Todo o trabalho de Jenkins, que desmonta conceitos tão caros e fundamentais para tantas pessoas, poderia levar a um posicionamento negativista: se nada é absoluto, se tudo é construção, se nada há de sólido além do simbólico, as possibilidades de compreender e transformar o mundo se anulam. Essa é, aliás, a crítica central que Ciro, Antognazzi e muitos outros dirigem ao pensamento pós-moderno, apontando seu aspecto desmobilizante e antirrevolucionário. Essa crítica, segundo Jenkins, é infundada, uma vez que ele deixa claro que a atuação política é amplificada no campo do relativismo, já que em essência esse tipo de raciocínio colabora para desvendar os jogos de poder manipulando os discursos e as verdades. Além disso, ao negar a existência de um centro interpretativo único, abre-se espaço para que mais pessoas e mais grupos possam produzir sua história e fazer-se ouvir, produzindo efeitos no mundo.
Dessas considerações se depreende que as ideias dos autores analisados ocupam posições diferentes no espectro intelectual. Ao que parece, o olhar pós-moderno de Jenkins engloba os outros e os demonstra como reflexos dos jogos de poder, coisa que seus autores não aceitam. Ciro sugere, em suas conclusões, um equilíbrio entre as perspectivas iluminista e pós-moderna, equilíbrio que, em minha opinião, é impossível de ser alcançado. Uma vez demonstrada a ausência de suportes lógicos e reais aos discursos, uma vez evidenciado seu aspecto parcial e sempre subjetivo, o único caminho a ser empregado pelo historiador que deseja realmente ser senhor de seu discurso é o da aceitação da impossibilidade de ser unânime e hegemônico. O caminho é perceber a natureza transitória dos postulados e a impossibilidade de alcançar uma explicação universal.

Considerações sobre os conflitos de paradigmas e
seus efeitos no ensino de história

Nesta seção, tentarei relacionar o conflito entre os paradigmas que se desenrola hoje com fenômenos manifestados no ensino de história. Estes escritos serão necessariamente inconclusivos e baseados majoritariamente em minha experiência pessoal, uma vez que não houve tempo hábil para realizar as leituras necessárias.
Ocorre um movimento de transformação na natureza e na essência do ensino de história, e ele se relaciona com uma transformação maior, no nível das mentalidades, a respeito da configuração ideal do conhecimento. O ensino baseado no paradigma iluminista ainda é hegemônico. Os livros didáticos, em sua imensa maioria, tendem a apresentar pastiches da história, explicações generalizantes de períodos, homogeneizando aspectos díspares numa tentativa de conferir certo sentido e lógica à narrativa. Busca-se a visão explicativa universal, criam-se categorias de compreensão, rótulos, compartimentos, onde é acondicionado o conhecimento histórico. Essa divisão começa na eurocêncentrica e arbitrária divisão da história em 5 etapas. Fala-se em “feudalismo” na Europa, por exemplo, sem se considerar as peculiaridades de cada tempo e espaço. A impressão final formada na mente do estudante é que a história evolui positivamente, e que o sistema civilizatório criado pelos europeus e disseminado pelo mundo é o ápice dessa evolução. Esse tipo de estudo cria a noção de que existem leis universais regendo os fatos. Sem contar a invisibilidade das massas: tudo é creditado a grandes personagens. O “povo”, quando aparece, é uma massa sem forma e sem cara, uma variável na equação.
O método de ensino dessa história distorcida é o tradicional, baseado na transmissão/recepção de informações.
Evidente que existem milhares de outras configurações, tanto de conteúdo quanto de método, no ensino de história, mas é esse o padrão desejado e exigido pelos vestibulares das grandes e prestigiosas instituições de ensino superior brasileiras, as mesmas, aliás, em cujos currículos constam autores e ideias que contrariam esse modelo.
Essa “história engessada” é usada também para a doutrinação política, por parte de professores que não se furtam de ser proselitistas, manejando os dados de maneira a criar no estudante uma visão sectária e dogmática do processo histórico, estimulante da “revolução”.
Novos ventos, entretanto, tem arejado o cenário. A adoção de novas formas de ingresso nas instituições de ensino superior simbolizam uma reorientação geral. Nessa nova configuração, o aluno é instado a trabalhar com as informações, compreendendo-as, interpretando-as, conectando-as. Trata-se de construir o conhecimento, no lugar de memorizar saberes já prontos. Além disso, a queda dos conceitos absolutos provocou uma revisão no próprio papel do professor e do currículo: se pensarmos de acordo com o novo paradigma, o que se ensinava antes nas aulas de história não era história, mas um discurso sobre o passado, amparado num determinado equilíbrio de poder, que tinha como finalidade justificar e conservar o status quo.

Considerações Finais

Comecei a refletir sobre esses assuntos em função de uma certa culpa que sentia por atuar de maneira despolitizada enquanto professor de história. Achava que faltava um alinhamento político claro permeando meu trabalho, mas ao mesmo tempo pensava ser incorreto doutrinar os estudantes numa determinada linha interpretativa. Ao ler o artigo de Irma Antognazzi estremeci: estaria eu sendo vítima da fragmentação intencional da visão social, imposta por forças terríveis para evitar a luta por igualdade e justiça? Busquei compreender melhor o que está se passando no campo das ideias, para decidir se o discurso de Irma é ou não válido. Descobri dois textos que aprofundaram gradualmente a questão. No de Ciro, descritivo, a queda do marxismo e das outras visões generalizantes é reputada não a forças intencionais, mas ao desenvolvimento histórico da sociedade. É um movimento natural. Mas ainda restava um ranço negativista em relação ao pós-moderno, e então busquei no texto filosófico de Jenkins uma visão otimista. E me convenci, afinal, de que a melhor postura que pode adotar um profissional de história é a de sempre desnudar e desconstruir os discursos, apontando os interessados em sustentar as “verdades”, e adotando simultaneamente, e em consequência, um respeito pelos discursos alheios, permitindo-lhes a existência e dialogando com eles.
Os textos discutidos, é evidente, possuem muitos outros ângulos de análise não abordados nessa simples resenha. E a discussão feita não se conclui aqui. Ainda precisa ser alimentada com muitas outras leituras. Mesmo assim, esse trabalho serviu como um ponto de partida para um processo de reposicionamento consciente dos fundamentos de minha atuação.


FONTES CONSULTADAS


ANTOGNAZZI, Irma A. Necessidade do Enfoque Historiográfico para Explicar os Processos Sociais do Presente. In: Projeto História (revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) nº29. São Paulo, dez/2004. Pág. 35 a 51. Tradução: Vera Lúcia Vieira.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Introdução: História e Paradigmas Rivais. In: Domínios da História.

JENKINS, Keith. A História Repensada. Tradução: Mário Vilela. São Paulo: Contexto, 2001.

NARRADORES DE JAVÉ. Dir. Eliane Caffé. Brasil. 2003

sábado, 28 de novembro de 2009

resenha - Paul Thompson

Esta resenha apresentei como trabalho de conclusão de curso da disciplina "Tendências da Historiografia Contemporânea", ministrada no primeiro semestre de 2009 pela professora Lilia, no Latu Senso da PUC-SP.
Paul Thompson - A Voz do Passado - História Oral
Introdução
Trata-se de uma obra multifacetada e de importância vital para todos os que se utilizam de reminiscências, memórias e relatos orais em suas atividades de pesquisa e escrita da história. A História Oral emergiu muito recentemente como possibilidade historiográfica. O primeiro projeto nominalmente ligado a esta corrente surgiu em 1948, nos EUA, liderado pelo professor Allan Nevis, criador do “Oral History Project”. Como toda novidade, causa certo desconforto entre os guardiões das tradições acadêmicas, e precisa provar sua validade para ser aceita plenamente. Ainda há um senso comum que descarta sumariamente a História Oral por considerá-la demasiadamente subjetiva e imprecisa.
Thompson parte justamente deste ponto, porque sabe que é a frente que exige os maiores esforços defensivos. E começa atacando: ao invés de perder tempo tentando provar que as fontes coligidas pelos métodos da história oral são objetivas, afirma e procura provar que a subjetividade é um dado real em todas as fontes históricas. O fato de ser escrito e oficial não torna o documento mais fiel à realidade. O único remédio para lidar com esses desvios é submeter as fontes a um rígido sistema crítico.
O autor demonstra, ao longo da obra, que a História Oral é um método que tem os mesmos problemas e limites de quaiquer outros, mas que apresenta vantagens muito grandes do ponto de vista da abrangência. A história oral permite uma escrita mais democrática, muito ligada ao movimento novo conhecido como “história vista de baixo”. Dá voz aos que, nos documentos tradicionais, não seriam considerados.
Thompson é um guerrilheiro da nova história, é um entusiasta das possibilidades que ela traz ao campo da história. Em muitos pontos, seu trabalho é quase panfletário, e o tom se aproxima, por vezes, daquele empregado nas campanhas publicitárias.
Ao mesmo tempo, ele é um apaixonado defensor da revolução social. Defende que a função de um historiador é contribuir para que se alcance esse ideal. Thompson vê a história como instrumento para agir na sociedade e provocar mudanças. Em suas palavras, “o que se requer é uma história que leve à ação, não para confirmar, mas para mudar o mundo”. Ainda que o leitor mais tradicionalista considere esse arroubos um tanto exagerados, a obra mantém seu valor porque não se resume a isso. Thompson faz uma profunda reflexão sobre o uso de fontes orais, memórias e relatos, apontando suas limitações e possibilidades.
História e Comunidade
Thompson faz uma discussão acerca dos métodos e fontes tradicionalmente empregados na escrita da história, buscando compará-los com aqueles obtidos através da história oral. Nesse processo, ele reafirma sua filiação às diretrizes da Nova História.
A afirmação inicial é um libelo em defesa da importância da história. A necessidade de conhecer e explicar o passado, e através dele compreender melhor o presente e se situar no mundo é descrita como universal e inerente à condição humana. Sempre houve história, em qualquer sociedade, a qualquer tempo.
Infelizmente, por muito tempo ela foi escrita por pessoas ligadas aos grupo dominantes das sociedades, fato que levou a uma seleção muito restrita do que deveria ser registrado e preservado. Era uma história etnocêntrica, elitista e que fechava os olhos para as mulheres e para os menos favorecidos. É a velha crítica que os historiadores da Nova História fazem à historiografia tradicional.
Thompson parte dessa constatação já aceita e estabelecida para reforçar sua defesa da história oral. Segundo ele, mesmo após a ampliação do campo de interesse da história, permaneceram problemas graves, uma vez que as fontes tradicionais refletem a distorção promovida pela historiografia tradicional. Apenas os documentos que interessavam aos propóstitos daquele tipo de história foram preservados. Mesmo que a abordagem seja nova, as fontes permanecem conservadoras. Para o autor, recorrendo-se à história oral pode-se resolver esse problema. Os relatos orais podem preencher essas lacunas deixadas pelas fontes tradicionais.
Thompson vai além, e aponta outras vantagens decorrentes do emprego da história oral. As constatações dele transcendem os campo historiográfico tradicional: a história oral é algo tão revolucionário que suas implicações transbordam da história para outras áreas de atuação humana. Ela promove a remoção das barreiras entre historiadores e público leigo, apaga as fronteiras entre instituições de ensino e comunidade, rompe o distanciamento entre professores e alunos. Uma de suas vertentes tem funções curativas: é a terapia da reminiscência, que ajuda pessoas idosas desalentadas diante da modernidade, recuperando pela memória sua identidade.
Essa expansão impressionante do campo de atuação da história oral, apontada triunfalmente por Thompson, merece uma discussão mais aprofundada, uma vez que esse processo provoca, inveitavelmente, um distanciamento das razões originais do método: alimentar as pesquisas históricas.
Historiadores e história oral
O autor faz um grande passeio pela historiografia, apontando o uso de relatos orais, memórias e reminiscências como fontes de informação histórica. É um importante e minucioso levantamento, uma compilação de todos os que fizeram uso desse tipo de fonte ao longo da história.
Thompson constata que a tradição oral foi a primeira espécie de história, que somente no século XIX deixou de ser considerada pelos historiadores. Diversas sociedades reservavam espaço para a existência de indivíduos que se dedicavam especificamente a memorizar e transmitir os conhecimentos históricos, como os skald na escandinávia, os rajput na Índia e os griot na África ocidental.
Grandes nomes da historiografia antiga e medieval, como Heródoto e Bede, recorreram preferencialmente às fontes orais. No século XVIII, os iluministas fizeram largo uso dos relatos. Voltaire não via diferenças entre as fontes orais e documentais.
Thompson demonstra que, em muitos casos, os testemunhos orais são vistos como mais confiáveis que os documentos escritos. É o que ocorre nos tribunais, onde as testemunhas devem ser ouvidas; essa exigência vem da convicção de que os documentos são mais fáceis de forjar. Os registros contábeis devem ser auditados anualmente, ou seja, lidos em voz alta.
Por que, então, os historiadores relegaram os relatos ao esquecimento? A profissionalização do historiador, no século XIX, contribuiu para isso. Leopold von Ranke foi um grande ator nesse processo. Ele procurou sistematizar a disciplina ao longo de seus 60 anos de atuação acadêmica. Buscava criar um método próprio à história, e passou a desprezar radicalmente tudo o que considerava subjetivo. A ele interessava descobrir as coisas “como realmente foram” (wie es eigentlich gewesen ist). Seu método se espalhou e fez adeptos, como os franceses C.V. Langlois e Charles Seignobos, que afirmavam sem reservas que “se não há documentos, não há história”. De fato, o objetivo foi alcançado: a abordagem documental deu aos historiadores seu método próprio, peculiar, diferenciando-os como especialistas num determinado campo. Como afirma Thompson, essa noção de propriedade profissional era muito importante no século XIX.
Outro motivo para o abandono das fontes orais foi a mudança de atitude dos próprios historiadores em relação a sua realidade social. Restringindo-se aos documentos os historiadores podiam isolar-se socialmente, arrogando uma “neutralidade objetiva” em função da ausência de contato com o mundo.
No começo do século XX essas convicções foram caindo por terra, num processo que acompanhou uma mudança de paradigmas geral e universal. As velhas chaves de compreensão não conseguiam mais explicar o moderno mundo multifacetado, aberto ao relativismo. Os historiadores passaram a aceitar que a diversidade de fontes contribuía para uma aproximação de seus trabalhos com a complexidade do mundo real.
Considerações Finais
Não vivemos em tempos fáceis para historiadores. A trajetória humana sofreu uma radical transformação no decorrer do século XX, num processo tão profundo que tornou obrigatória uma revisão geral na mentalidade e na estrutura do pensamento. Os velhos modelos de explicação histórica, que se pretendiam absolutos e aos quais nada escapava, tornaram-se obsoletos, incapazes de compreender a realidade. Tornaram-se objetos de culto de obstinados militantes, que agarram-se a eles de maneira desesperada, procurando extrair algum sentido de suas desgastadas engrenagens.
Frente a esse mundo complexo e multifacetado, uma abordagem histórica que considere, com método e critério, as informações adquiridas diretamente das testemunhas dos fatos tende a ser mais fiel à realidade.
A obra de Paul Thompson oferece bons argumentos de reflexão para o historiador que se utiliza de tais fontes em seu trabalho.

terça-feira, 17 de novembro de 2009


segunda-feira, 2 de novembro de 2009


terça-feira, 27 de outubro de 2009

Ilha das Flores


Em 1989 um filme de 13 minutos de duração, dirigido por um brasileiro, rodou o mundo chamando atenção para os problemas sócio-econômicos do país. O valor da obra foi oficialmente reconhecido através da concessão de vários prêmios de peso, na Europa, nos EUA e no Brasil. Seu idealizador, Jorge Furtado, apropriando-se das técnicas fílmicas de documentários construiu, através da saga de um tomate, uma narrativa analítica da cisão social e econômica do país. E o fez de maneira tão direta, objetiva e aparentemente simples que a tornou uma das mais usadas fontes de discussão sobre o tema, completando 20 anos de exibição garantida em salas de aula de todo o país. Trata-se, como já deve saber a esta altura o leitor, do curta metragem “Ilha das Flores”.
Qual o segredo do sucesso da obra, que projetou o nome do diretor para fora do Rio Grande do Sul? Que elementos a mantém viva no imaginário dos professores do ensino fundamental e médio, tornando-os seus divulgadores entre as novas gerações? Não há dúvida de que o tema é bastante atrativo, sobretudo num país que acabava de sair de um longo ciclo ditatorial onde tais verdades eram varridas para baixo do tapete. Os aspectos técnicos também ajudaram a alavancar a obra, sua edição eficiente e ao mesmo tempo inovadora, suas inusitadas inserções musicais, como o tema de “O Guarani”, facilmente reconhecível após décadas desgastando-se como vinheta de abertura da famigerada “Hora do Brasil”, ou a narração em tom entre compenetrado e irônico do ator Paulo José, que acentua as passagens impactantes com um forte apelo emocional. Mas creio que o que realmente marcou a obra com o signo do universal foi o recurso discursivo escolhido pelo diretor, que também assinou o roteiro.
“Ilha das Flores” procura fazer um novo olhar sobre os ítens mais básicos do cotidiano, coisas tão elementares que deixaram de ser postas sob o olhar crítico das pessoas, coisas que migraram para a categoria do axioma. Dinheiro, trabalho, família, entre outros, são elementos escrutinados a frio, como que por uma criança, despidos dos destroços que os encobrem e impedem a observação de sua essência. Depois de desnudados, são novamente apresentados ao telespectador através de definições diretas, saídas de dicionários, cínicas, antagonizando com as imagens, explicitando a distância hipócrita entre o dito e o real.
Esse exercício de revisão e ressignificação das coisas mais elementares é extremamente saudável e necessário, e deve fazer parte das atividades rotineiras do historiador. A ciência histórica, seus métodos, teorias e práticas são objeto de extensa discussão, preenchendo milhões de páginas de publicações nas mais diversas línguas. O profissional de história – professor, pesquisador, estudante – vive imerso nesse emaranhado de opiniões, visões, interpretações, teorias, que se acumulam ao longo dos séculos sobre a prática da história. Os conceitos tornam-se familiares, aclara-se na mente do estudioso a estrutura que sustenta toda essa produção, as linhas, correntes, escolas de produção historiográfica. Toda essa rede de elementos intelectuais é capaz de confundir o jovem iniciado, especialmente quando ele se depara com a bizarra estrutura organizacional dos cursos de formação acadêmica, onde a teoria é estudada como se fosse corpo autônomo dissociado de qualquer elemento real.