terça-feira, 18 de janeiro de 2011

FERNANDO

"Quando eu nasci, com oito meses, nasci com problema nas vistas. A primeira vez que fui passar no médico lá no Hospital das Clínicas fizeram vários exames e os médicos descobriram que no meu olho, eles falaram que eu tinha uma cicatriz no fundo do olho e depois dos exames mandaram colocar um colírio no olho só para endireitar a vista para o olho ficar certo. Fiquei fazendo tratamento e minha mãe ficou procurando escola. Ela veio no Isaías e eles falaram que se não tivesse problema de cabeça tudo bem. Mandaram fazer exame na cabeça e não deu nada, graças a Deus. Entrei na escola com nove anos. O problema nos olhos era estrabismo.
Mais tarde na minha vida eu fiquei traumatizado porque meu pai entrou na bebida. Eu fico sofrendo muito. Hoje ele vive internado, se tornou um alcoólatra e eu sofro muito. Por causa disso o pouco dinheiro que ele ganha da licença não dá. Eu podia viver muito melhor, mas esse problema do meu pai atrapalhou tudo. Eu preciso trabalhar só que até hoje nada achei, está muito difícil arrumar emprego pra poder ajudar em casa.
Meu pai nunca me explicou nada. Comecei a falar com cinco anos, minha mãe achava que eu era mudo. Passava no médico e ele falava que um dia eu ia desenvolver. Cresci e comecei a entender as coisas pouco a pouco e soltei a voz, fui desenvolvendo a fala, fui desenvolvendo com um pouco de dificuldade. Sou muito tímido, tem muita coisa que eu não entendo, eu troco as palavras. Agora eu ajudo minha mãe varrer a casa e lavar o banheiro e depois secar o chão. Ajudo também a lavar a roupa, ponho a roupa no varal e pego um monte de prendedores e ponho um em cada roupa, e a roupa estendida no sol seca mais rápido. A tarde assisto televisão ou pego um livro e começo a ler. Gosto de sair para distrair um pouco, para não pensar muita besteira e refrescar a cabeça. Chego em casa numa boa, janto e visto minha roupa para ficar vestido. Quando chega a noite eu vou para a escola na hora certa. Tem dia que chego atrasado na sala de aula porque chego e os professores já estão passando lição na lousa, começo a copiar a lição da lousa e fico atrasado.
Eu já viajei bastante de ônibus. Fui para Aparecida do Norte, a primeira viagem, e eu achei muito estranha, porque em Aparecida do Norte tem o que eu quiser para comprar. A feira lá é muito grande: tinha quadro de Santo Expedito, vende também uma sanfoninha de brinquedo, vende até violão de time, tinha de tudo quanto é time lá: tinha do São Paulo, do Corinthians, tinha do Santos, tinha do Grêmio, tinha do Palmeiras e tinha do São Caetano. Lá em Aparecida do Norte vende de tudo. Eu andei na feira todinha e depois de andar na feira eu fui entrar na Igreja. Depois da missa o povo saiu para acompanhar a procissão até chegar na outra Igreja. Chegamos lá na outra Igreja tinha um mundão de gente, todo mundo achou banco para sentar, mas eu não achei banco pra eu sentar. Eu tive que ficar de pé, e um bocado de pessoas ficou de pé também. Nós estávamos rezando o Pai Nosso e a Ave Maria e Creio em Deus Pai, e depois foi acabando a missa e na saída da Igreja eu peguei a máquina fotográfica e tirei a foto da Igreja. No outro dia fui revelar e algumas saíram, outras não, quase todas foram queimadas. Tirei foto dentro do ônibus, tirei foto com o meu pai e minha mãe e com duas vizinhas. Nós ficamos dentro do ônibus até chegar a hora do motorista avisar os passageiros para virem todos, mas ficaram faltando pessoas, e só quando todos entraram no ônibus nós fomos embora. Eu cheguei em casa tardão da noite, mais de 11:00h e eu fui dormir. Meu pai tinha saiu do para o trabalho e ficou no serviço até o dia amanhecer, e aí encheu a cara de bebida e ficou lá desmaiado, e caiu um tombo e machucou o rosto todinho e quebrou o queixo. Meu pai estava na UTI, chegamos e os médicos puseram ele numa cama, ele tinha que fazer uma cirurgia e tinha que emendar o osso do queixo. Por causa das pingas e das bebidas. Este é todo o sofrimento da minha vida.
Passou o tempo e as coisas começaram a melhorar um pouquinho. Aquele tempo eu já era grandinho e meu pai tinha um pouco de responsabilidade. Pagava as contas de água e de luz e o imposto foi ele que pagou.
Depois que eu cresci as coisas não ficaram boas pro meu lado. O meu pai voltou para as bebidas, e começou a agredir minha mãe. Não queria saber mais de trabalhar, só queria entrar na bebida. Estas bebidas deixam a cabeça do meu pai atrapalhada. Ele perdeu a carteira de trabalho e teve roubada também uma bicicleta novinha que ele comprou a prestação. De tão bêbado meu pai estava desmiolado da cabeça e os ladrões pegaram a bicicleta nova dele e montaram na garupa e foram embora. Ele chegou em casa sem a bicicleta, roubaram os documentos e foi roubado também um cartão de crédito, e foi tirado o dinheiro do banco. Meu pai tirou também o dinheiro do Banco para ir atrás de beber pinga, e o carteiro foi trazendo cartas que reclamavam de ele tirar o dinheiro. A minha mãe brigou com o meu pai para parar de ficar tirando o dinheiro, mas ele não tomou jeito e não tomou vergonha nesta cara. O homem do banco Nossa Caixa disse que meu pai ficou tirando o dinheiro sem parar, e o gerente reclamou e deu uma bronca no meu pai porque ele só fazia empréstimo no banco e ficou devendo. Agora ele tem pagar só daqui a dois anos, em 2007. Por causa da cagada do meu pai ele agora está ganhando muito pouco, só trezentos reais. Daí em diante as coisas começaram a se complicar, e o gerente teve que chamar minha mãe e reclamar que estavam tirando o dinheiro todo sem chegar o dia de receber. Quando o gerente falou pra ela que estavam tirando o dinheiro sem parar minha mãe ficou admirada e chegou em casa já começou a brigar com ele para parar de tirar dinheiro a russo, de ficar fazendo empréstimo. Ele já começou com a ignorância dele, começou a agredir minha mãe, começou a ficar agressivo, começou a bater a porta e o portão e já correu para o bar atrás de beber pinga. Aí era do bar para casa, já chegava em casa bêbado e desmaiava. A vida do meu pai era só dormir e quando levantava era ir atrás de pinga. A minha mãe não tava mais agüentando essa maldita pinga. Minha mãe falou que se não parasse de beber ela não queria mais morar junto com ele. Minha mãe estava nervosa e perdeu a paciência. Ela foi na advogada reclamar, e contou que meu pai estava agressivo em casa e quebrando tudo dentro de casa, e por causa da ciumeira dele ele quebrou o vidro da janela. Por que a minha mãe foi dar boa tarde para o vizinho o meu pai ficou com ciúme e deu um murro na janela da sala e quebrou o vidro, estuporou o vidro todo, só porque o vizinho passou na rua e deu boa tarde. O meu pai ficou com ciúme e encheu a cara de pinga. Minha mãe brigou com ele e bateu no meu pai, e levou um tapa na boca que até saiu sangue da boca. Pára de ficar destruindo tudo dentro de casa."

Publiquei esta postagem em 31/08/2008

SOBRE CAINGANGUES E A MORTE CULTURAL


Minha terra natal, Araçatuba, era habitada até o começo do século XX pelos índios caingangue, chamados pelos colonizadores de “cabeças coroadas”. A palavra caingangue significa “homem viril superior”, que era como os indivíduos desse grupo se classificavam em relação aos demais. E eles eram realmente fortes e altivos. Pertencentes ao tronco lingüístico Jê, eram guerreiros temidos e treinados nas artes marciais. Usavam tacapes que chegavam a 1,80 m, exigindo grande força para manejar. Seus arcos ultrapassavam os 2,00 m, e as flechas podiam atingir alvos a centenas de metros. Para se ter uma idéia de sua ferocidade, basta saber que a principal diversão dos caingangues eram as lutas entre si mesmos, em que nenhum dos oponentes poderia sair ileso, sob risco de ser ridicularizado pelos demais. Fraturas, concussões e contusões eram comuns.
Quando os primeiros colonizadores brancos chegaram, trazendo as linhas férreas nos primeiros anos do século XX, tentaram estabelecer contato com os caingangue, “pacificá-los” e integrá-los à sociedade civilizada. Essas tentativas foram rechaçadas com violência pelos índios. É bem conhecido triste fim do religioso conhecido como Padre Monsenhor. Em inícios do século XX ele estabeleceu uma missão nas matas da região, e espalhou presentes pela floresta. Quando foi verificar a reação dos índios, percebeu que eles não só ignoraram as ofertas como haviam fincado flechas e tacapes no chão ao redor deles. O Padre Monsenhor percebeu o perigo e tentou fugir pelo rio, mas foi mortalmente ferido com flechadas.
Muitos outros perderam a vida no confronto com os caingangues. Para resolver a situação, foram contratados capitães-do-mato especializados em matar índios, chamados bugreiros. Eles usavam táticas brutais em suas ofensivas. Escolhiam sempre as primeiras horas do dia para ordenar os ataques às tribos, pegando os oponentes de surpresa. Também costumavam espalhar pela floresta roupas e tecidos contaminados com o vírus da varíola, que dizimavam famílias inteiras. Em algumas décadas de combates aguerridos, os “civilizados” finalmente exterminaram os caingangues, pacificando a região e tornando-a apta para o desenvolvimento de seus projetos agro-econômicos. Em Araçatuba, os nomes dos bugreiros mais eficientes foram dados a Escolas, ruas e praças. Nenhuma rua da cidade ganhou o nome de nenhum caingangue. Aliás, os milhares de guerreiros caingangues, que nunca se renderam frente à violência nem se intimidaram com a superioridade dos brancos, viveram e morreram anônimos. Nenhum livro de História pode ostentar seus nomes desconhecidos.
Essa história rende considerações mais profundas sobre nosso cotidiano. Não seriam as escolas a primeira tentativa de “amansar” os “selvagens”, tornando-os aptos a se inserir em nosso empreendimento comercial chamado “sociedade”? Levi-Strauss, que agora completa 100 anos de idade, já desconfiava disso, quando conviveu com os índios brasileiros na década de 1930. Ele percebeu que a introdução da cultura “civilizada” por força das armas ou pela religião, anulava a milenar cultura dos índios, enterrando-a para sempre. É inevitável que eu me pegue a pensar essas coisas em alguma altura de todos os anos letivos. O que garante que aquilo que diariamente insiro no universo mental e cultural dos meus alunos é necessário e útil? Que elementos culturais mato nesse processo? Que direito tenho de julgar e escalonar as coisas e decidir o que é “bom” e o que deve ser excluído? Até que ponto posso ter certeza da validade das coisas que ensino?
Companheiras de trabalho deste professor: a incerteza e a dúvida...

publiquei este texto em 27/11/2008, em outro blog, nos meus tempos de professor...
IMAGEM: museumarechalrondon.blogspot.com

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

domingo, 2 de janeiro de 2011

Bluebird - Bukowsky

há um pássaro azul dentro do meu coração
e ele quer sair
mas eu sou duro com ele
eu digo “fica quieto, eu não vou deixar
ninguém
ver você”

há um pássaro azul dentro do meu coração
e ele quer sair
mas eu o afogo em whisky e o sufoco com
fumaça de cigarro
e as putas, os balconistas do boteco,
os caixas da mercearia
nunca saberão que ele
está lá.

há um pássaro azul dentro do meu coração
e ele quer sair
mas eu sou duro com ele
eu digo “Fica quieto, você quer me complicar?
quer acabar com o meu trabalho?
quer arruinar a venda de meus livros na Europa?”

há um pássaro azul dentro do meu coração
e ele quer sair
mas eu sou esperto, só o deixo sair à noite, às vezes,
quando todo mundo está dormindo.
eu digo “eu sei que você está aí dentro,
então,
não fique triste”.
e então eu o tranco novamente.
mas ele está cantando lá dentro,
eu ainda não consegui matá-lo.
assim nós mantemos em segredo
nosso pacto secreto
e isso é belo o bastante para fazer um homem chorar,
mas eu não choro.
e você?

in a galaxy far far away...


Cyanide and happiness


sábado, 1 de janeiro de 2011