quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Clara dos Anjos - Lima Barreto

Esta descrição do subúrbio carioca, presente em "Clara dos Anjos", serviu para um gostoso trabalho em sala de aula. Mais do que transpirar beleza em cada frase, o trecho deu ensejo a uma boa reflexão sobre o Brasil, de ontem e de hoje...

“O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central.
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passamos por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, torna-se preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, "correres" de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos "avenida".
As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o "toque de reunir": "Mimoso"! É um bode que a dona chama. "Sereia"! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus — tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.
Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro, Um "belchior" de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.
Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.
Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais.
Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os caminhos são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que poderiam ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no campo-santo municipal. Quem passa por aqueles caminhos, quase sempre topa com um. Os de "anjos" são carregados por moças e os destas também pelas da sua idade. Não há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que para os bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de branco, carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando uma poeira de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão aos saltos, para evitar atoleiros e poças d'água.
Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há sempre uma modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros procuram roupas escuras, se não pretas; mas, às vezes, surge o escândalo da sua calça branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam, "quebram o corpo", isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado.
Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a seu destino. Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía da venda, olhava o caixão e dizia: Eles que estão lá dentro, que o carreguem. Chegaram ao cemitério e deram por falta do defunto. "Mas não era você que o vinha carregando?" — perguntava um. "Era você" — respondia o outro; e, assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansadíssimos e semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o camarada falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E o pobre homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos camaradas levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois, o resto do caminho para a última morada, ele a fez graças aos esforços de dois burros, que estavam habituados a puxar carga bem diferente e muito menos respeitável.
Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.
Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o Estado do Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a parte. O interior dos carros está apinhado e os vãos entre eles como que trazem quase a metade da lotação de um deles. Muitos viajam com um pé num carro e o outro no imediato, agarrando-se com as mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade sentados na escada de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais ousados, dependurados no corrimão de ferro, com um único pé no estribo do veículo.
Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário.
O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras;
nas casas, é raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à entrada.
Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d'água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na avenida Central.
O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica...”

Colhido em http://www.culturabrasil.pro.br/zip/claradosanjos.pdf

terça-feira, 1 de setembro de 2009


segunda-feira, 31 de agosto de 2009


domingo, 30 de agosto de 2009

Resenha Crítica elaborada como trabalho de conclusão de curso da disciplina "História: Novos Agentes Sociais, Etnia e Gênero"

A autora

Maria Izilda Santos de Matos possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1978) e doutorado em História pela Universidade de São Paulo (1991), tem pós doutorado Université Lumiere Lyon 2/França (1997). Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, colaboradora da Universidade Estadual do Ceará e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Participou de vários outros projetos de pesquisa, é pesquisadora 1do CNPq. Em 1994 recebeu o prêmio SESI-CNI de Teses Universitárias, com o trabalho Trama e Poder, em que estuda as indústrias paulistas, entre 1890-1934. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: historia, música, gênero, historia das mulheres e cidade. Entre suas obras destacam-se: Melodia e Sintonia: o masculino, o feminino e suas relações em Lupicínio Rodrigues. RJ, 2ª ed., Bertrand Brasil, 1999. Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50. RJ: Bertrand Brasil,2.ed,2002. O imaginário em debate. SP, Olho d'água, 1998. A Cidade em debate. SP, Olho D'água, 1999. Por uma história das mulheres, SP, EDUSC, 2000. Meu lar é o botequim, SP, Cia Editora Nacional, 2.ed., 2002. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho, SP, EDUSC, 2002. Ancora de Emoções, Bauru, EDUSC, 2005. Gênero e Terceiro Setor. Ed. Catavento, 2005. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo de Adoniran Barbosa. Bauru, EDUSC, 2008. História e Deslocamentos: os portugueses. Bauru/Porto, EDUSC/CEPESE, 2008[1].

A obra

“Âncora de Emoções” é uma obra que cruza dois universos: o do pensamento e discurso médicos dos fins do século XIX e início do XX, e o dos compositores de músicas populares do Brasil das décadas de 1930, 1940 e 1950. O objetivo desse encontro é estabelecer discussões sobre a questão dos gêneros, suas relações e conflitos. A análise desses dois campos, aparentemente irreconciliáveis, nos permite encontrar surpreendentes similaridades, assimilações e paralelismos. Parte do discurso médico foi absorvida e reproduzida nas noções de masculino e feminino expressas nas letras das canções, mesmo nas produzidas por artistas do sexo feminino, como Dolores Duran, o que mostra a penetração que tais idéias tinham na sociedade.
Além disso, a obra traz um conjunto de reflexões sobre os novos campos de análise histórica, bem como das novas técnicas de investigação, novas abordagens, novas metodologias e conceitos.


Outras histórias

A produção historiográfica se modifica ao longo do tempo, caminhando lado a lado com as transformações mais gerais ocorridas na sociedade e, principalmente, na forma de pensar e entender o Universo. O século XX foi pródigo em revoluções de paradigmas, levando a um profundo processo de reconstrução e revisão de mentalidades. A História, como “filha de seu tempo”, não passou incólume.
Apesar de algumas obras já contrariarem essa generalização, a produção historiográfica anterior ao século XX resumia-se a algo produzido dentro de uma determinada perspectiva, qual seja, a do homem de elite europeu. Tudo o que diferia desse escopo era visto como distorção, como exceção. Com o advento de novas correntes de análise, outras possibilidades passaram a fazer parte do trabalho do historiador. Descobriu-se a historicidade de todas as coisas humanas, de sentimentos a sensações, de pensamentos a técnicas. Dentro desse grande movimento, abriu-se espaço para os estudos voltados às minorias, às mentalidades, e, finalmente, análises visando as relações entre homens e mulheres ao longo do tempo, delimitando o campo de gênero. Os historiadores abriram os olhos para agentes históricos que estavam relegados à obscuridade nos escritos, mas que tinham importância capital na realidade, e assim a produção historiográfica ganhou profundidade e consistência.

Música: caixa de ressonância das sensibilidades

A produção musical de um determinado período, se analisada da maneira correta, pode servir como uma poderosa fonte de conhecimentos acerca de aspectos pouco abordados em outros tipos de documentos: a sensibilidade, a emoção, os padrões morais. É o público quem determina o que é sucesso ou não. É ele que mostra desejo por certas temáticas e rejeita outras. Dessa forma, muito se pode conhecer da sensibilidade de uma época através da análise das canções que estavam na “boca do povo”.

Mulheres e o discurso médico

Nos fins do século XIX e início do XX o Brasil passava por grandes transformações. Em processos que ocorriam concomitantemente, a República se instalava, a urbanização e a industrialização avançavam; a ciência ganhou espaço, e a medicina ganhou lugar de destaque. Socialmente, a burguesia ascendia e buscava normatizar a sociedade de acordo com seus ideais. Nessa trajetória, certos comportamentos foram condenados, outros foram elevados ao patamar de modelos.
O discurso médico da época, apesar de apresentar divergências e contradições, era relativamente convergente em alguns pontos, especialmente na delimitação das condutas ideais para homens e mulheres.
No que se refere ao feminino, os médicos estabeleceram dois arquétipos diametralmente opostos. De um lado, apresentavam o modelo mãe-esposa: frágil, assexuada, confinada ao mundo doméstico, com funções meramente reprodutivas. A esta se contrapunha a degenerada, mulher pública, sexuada, identificada com a prostituição. Os médicos buscavam conformar as mulheres com o primeiro modelo, apresentando argumentos “científicos” para tal imposição.
Do ponto de vista das enfermidades, os médicos desenvolveram um tratamento distinto para homens e mulheres. O útero era visto como a raiz de todos os males, e qualquer desequilíbrio nesse órgão levaria a patologias em outras áreas do corpo. Muitas vezes, os tratamentos tinham caráter punitivo, com o fim de penalizar a transgressão dos modelos e padrões impostos.

Perfil masculino: definição pelo discurso médico

Assim como definiu padrões positivos e negativos para a feminilidade, o discurso médico delimitou modelos também para o homem. O homem ideal era o marido-provedor, que deveria estar sempre apto para o trabalho, evitando hábitos e ambientes que dissipassem suas energias.
O alcoolismo era visto como fator esvaziante do poder do homem, capaz de impedi-lo de cumprir suas obrigações. O combate a esse mal e a tudo que a ele se associa (vida noturna, jogos, boemia), toma espaço central no discurso médico sobre a masculinidade.

A historicidade das sensibilidades

Com a abertura propiciada pela expansão do campo historiográfico, lançou-se luz sobre um aspecto pouco estudado até então, as sensibilidades. Percebeu-se que comportamentos, valores e sentimentos são elementos contruídos socialmente e que, portanto, variam ao longo do tempo. São, dessa forma, passíveis de análises históricas.

Copacabana nos anos 1950: território da boemia

Nos anos 1950, graças a obras de urbanização, a remota praia de Copacabana foi integrada à cidade do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o bairro tornou-se o ponto mais badalado da noite carioca. Avenidas foram traçadas ao longo da linha da praia, as famosas calçadas de pedra portuguesa facilitaram o caminhar dos pedestres. Um número crescente de automóveis passou a circular pela região.
Apesar da tomada de importância da sociabilidade de praia, onde corpos eram exibidos e admirados, a essência do bairro aparecia mais nitidamente no território da noite. Antônio Maria, cronista desse processo, descreveu a profusão de tipos que se cruzavam nas boates, cabarés, cassinos e casas de espetáculo: políticos, artistas, malandros, boêmios profissionais, homens de negócio. Nesses cenários, emergem novas relações entre os gêneros.
Apesar de ainda resistir o velho “espírito de bairro”, calcado na pequena solidariedade e na plena vigilância, surgia um modelo “moderno” de conviver em sociedade, uma certa impessoalidade nas relações, um certo individualismo privativista.
Copacabana acabou por sofrer um inchaço na sua vida boêmia a partir do governo do Marechal Dutra, quando as autoridades passaram a atacar redutos da malandragem em outras áreas da cidade, como a Lapa e a Praça Onze. Desalojados de seus locus costumeiros, esses boêmios se “transferiram” para Copacabana, o último bastião da vida noturna carioca.

Dolores Duran: intérprete das sensibilidades femininas

Autodidata, oriunda das camadas menos privilegiadas, Adiléia Silva da Rocha ficaria conhecida na noite carioca como Dolores Duran, a artista que deu voz à alma feminina. Após os anos iniciais como intérprete, Duran deu início, nos anos 50, a uma fase em que assumiu sua veia compositora. Nesse momento, afloraram em suas letras os sentimentos próprios das mulheres da época, uma vívida contradição entre os valores modernos em ascensão e os arcaísmos persistentes na relação entre os gêneros.
Com seu discurso coloquial, Dolores captava os “instantâneos do dia-a-dia”, flagrando “dor, saudades, remorsos e outros sentimentos”. O amor, na visão da artista, é algo doloroso, que condena aquele que o sente a sofrimentos agudos. A ausência, o abandono e a solidão são elementos onipresentes no seu temário. O sentimento de culpa é assumido pela entidade feminina nas canções, o que mostra a internalização, por parte das mulheres, da culpabilidade feminina imposta pelo discurso masculino.

Perfis de gênero em Lupicínio Rodrigues

Um dos poucos artistas fora do eixo Rio-São Paulo a se tornar popular neste período, o gaúcho Lupicínio Rodrigues compunha fortemente influenciado pelo contexto boêmio, pela cultura portenha, pelo tango e pelo bolero. Suas letras acertavam em cheio o gosto popular. Contava o que vivia, e por isso acabou por traduzir com propriedade as características do cotidiano boêmio, suas “experiências, situações e emoções”.
A mulher encontra-se no centro das preocupações na obra de Lupicínio. Segundo ele, somente as que o fizeram sofrer lhe traziam dinheiro, uma vez que inspiravam canções pungentes e repletas de emoção. Dessa forma, é a mulher infiel, perversa e traidora que transparece em seu discurso. Predicados positivos em relação às mulheres aparecem de raro em raro, mais como um modelo a ser seguido. Para ele, a mulher ideal é honesta, casta, fiel, sincera e obediente.
Em parte, a visão de Lupicínio Rodrigues incorpora o discurso médico, reforçando a dicitomia entre a mulher pública-sexuada e a privada-assexuada.
O homem, em geral, é retratado como sincero e amoroso. Nas relações entre os gêneros, o homem é superior; é racinal e corajoso, e o sentimentalismo lhe é vetado. Em contraste com a algoz feminina, é vítima de seus sentimentos.

O Ébrio: Vicente Celestino e o perfil do etilista

Filho de imigrantes italianos, Vicente Celestino sempre apresentou pendores artísticos. Em sua extensa carreira, desempenhou as mais variadas funções artísticas, destacando-se como cantor, compositor e ator. O auge de seu sucesso ocorreu nas décadas de 1930, 1940 e 1950. O surgimento de novas correntes culturais, mais modernas, colocou-o num relativo ostracismo, juntamente com outros artistas de sua geração.
Num cenário urbano marcado pela industrialização e pelo trabalho, ganhou destaque nas produções cultirais a ênfase nos locais de descontração e lazer, uma busca pela fuga das pressões do dia-a-dia.
No temário de Vicente Celestino, o ébrio é uma constante. Em geral, trata-se do homem que sofreu por amor, foi traído pela mulher amada e refugiou-se na bebida. À mulher, mais uma vez, é reservado o papel de “semente do mal”, propensa à infidelidade e ao delito amoroso.
Às vezes o ébrio aparece como um pobre coitado, inofensivo e inerte, como em “O Ébrio”, grande sucesso de 1936. Em outros casos, é furioso e homicida, que em crise de ciúme alcoólico faz “justiça com as próprias mãos” e dá cabo à vida da infiel, como na canção “Matei”, de 1940.

Contribuições da Obra: considerações críticas

A obra de Maria Izilda Santos de Matos contribui para ampliar em muito as reflexões sobre diversas discussões historiográficas. Em primeiro lugar, estabelece uma clara delimitação das novas formas de se abordar os problemas históricos. Reafirma a emergência de novos campos de investigação, especialmente o de gênero, categoria de análise que tem permitido uma revisão da historiografia tradicional com grande benefício para um entendimento mais fiel da trajetória humana.
Mais que isso, a obra apresenta um método bastante inovador de análise, buscando em fontes pouco ortodoxas respostas para questionamentos complexos. Compreender o processo histórico acerca das sensibilidades e dos sentimentos é um desafio para qualquer historiador, e a autora demonstra sagacidade ao se valer das letras das canções populares para encontrar pistas sobre esse problema. Com relação ao discurso médico, a autora consegue obter um retrato da mentalidade da época a respeito dos papéis ideais determinados para os gêneros. Demonstra como a “ciência” é posta a serviço dos interesses de determinados grupos, que através dela almejam impor seus modelos para a sociedade em geral. Mostra ainda a maneira pela qual o gênero masculino busca justificativas “racionais” que deem embasamento a sua dominação sobre as mulheres.
Em suma, a obra nos permite aprofundar as discussões sobre essas questões extremamente pertinentes, tão caras aos estudos mais modernos da historiografia.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de Emoções – Corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, SP: Edusc, 2005.


[1]Fonte: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4723167J4 acessado em 23 de junho de 2009, às 20:43h.

Matéria publicada na Folha de São Paulo de hoje, no caderno Cotidiano.

"Mestres se veem na berlinda diante de novo ambiente escolar "

Como a tecnologia, a violência e as doenças do aprendizado mudam as salas de aulas, trazendo desafios e provocando a discussão sobre o papel do professor
OCIMARA BALMANT
LETÍCIA DE CASTRO
DA REVISTA DA FOLHA

Em uma escola na periferia da zona sul de São Paulo, mais de 2.000 alunos gritam ao mesmo tempo que querem ser dispensados para assistir ao jogo de futebol. Não são atendidos e colocam fogo em carteiras.
No colégio de classe média na zona norte, um aluno de 12 anos diz à professora que é ele quem paga o salário dela e que deve fazer tudo o que ele quer.
Perto do parque Ibirapuera, a professora é avisada pela coordenadora de que um dos seus alunos foi mal na prova, mas não pode ser reprovado porque há um laudo atestando que sofre de déficit de atenção.
Os episódios ilustram alguns dos desafios que os docentes enfrentam nas salas de aula. Há problemas antigos, como a violência, e outros bem atuais, como a concorrência com equipamentos eletrônicos ou as doenças do aprendizado.
Geração on-line
A lousa está repleta depois da aula de português. O adolescente não copia uma sentença: basta pegar o celular e registrar tudo com a câmera. O episódio foi no colégio Santa Maria, zona sul. Não houve broncas."A tecnologia é matéria-prima, objeto de estudo. Não posso dizer que não presta ou proibir", explica Elizabeth Fantauzzi, 47, responsável por disciplinas como web design e fotografia digital.
A praga do laudo
Depois de uma discussão com um aluno, a professora Silvia Barbára, 49, coloca o estudante de 16 anos para fora da sala de aula. Ele sai, mas a xinga de "puta". A coordenadora da escola explica que o mau comportamento se deve a uma troca de medicamentos. A professora vive esbarrando em diagnósticos de déficit de atenção.
Segundo a psicóloga da Unicamp Cecília Collares, que estuda a "patologização da educação", o fenômeno causa reação em cadeia. Os pais reagem como se fosse uma fatalidade, a escola se isenta, e o professor se vê desvalorizado.
Discriminação e violência
B.C., 49, professor da rede estadual há 29 anos ficou uma semana na UTI depois de ter a diabetes descontrolada. O motivo: preconceito. Uma dupla de alunas pediu o afastamento do professor homossexual.
Para a educadora da Unicamp Angela Soligo, casos de agressão física e de depredação são decorrentes do processo de sucateamento a que a escola pública foi submetida.
Outra questão é a falta de diálogo e a incapacidade da escola de assimilar a nova cultura juvenil. Soligo defende que poder público, professores, gestores, alunos e pais se envolvam para discutir o problema.
Onde está a família?
Diante de uma turma com dificuldade de aprendizado, a professora Margarida Costa, da Escola Municipal Oliveira Viana, no Jardim Ângela, avisa: quem não terminar não vai brincar no intervalo. Ninguém terminou o exercício a tempo.
A classe inteira optou por ficar sob a tutela de um adulto no recreio. "A carência de atenção é tão grande que a possibilidade de usufruir de um tempo ao lado do professor deixou a turminha de crianças animada", explica Margarida.
Na escola da periferia da zona sul, a estratégia que a diretora, Jucileide Mauger, encontrou foi ampliar o diálogo com os alunos e abrir-se para a comunidade. Abrir espaço para a família participar das decisões é um dos segredos, no Jardim Angela ou no Alto de Pinheiros. No Oliveira Viana, pais de alunos ocuparam as salas de aula para um encontro de casais. No colégio Vera Cruz, há desde 2005 a Organização de Pais Solidários, com palestras sobre drogas, infância e sociedade.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Coisas de velho...


Segunda feira, às 20 horas, um comerciante foi morto numa tentativa de assalto. Como Iguape é uma cidade pequena, o ocorrido ganhou ares de assunto da semana. É realmente incomum este tipo de coisa por aqui. Desde 2006, é a segunda vez que acontece uma morte violenta relacionada a roubo. Na manhã do dia do crime estive na loja do comerciante e conversei com ele sobre uns reparos que pretendia fazer no banheiro de casa.
Hoje espalhou-se a notícia da prisão dos autores do crime: quatro adolescentes oriundos de uma cidade vizinha.
Lembrei disso hoje, quando conversávamos na sala dos professores, sobre a apatia geral que percebemos nos alunos. Uma professora, que também dá aulas para crianças do ensino básico, relatou que essa condição se manifesta desde cedo. Alunos de oito anos apresentam grande desdém pela escola, preguiça, falta de vontade, o que é incomum, já que nesta fase da vida a curiosidade natural deveria guiar as mentes, e a energia da infância proporcionaria uma conduta ativa. Adolescentes, passando por grandes mudanças hormonais, tendem a ser mais sazonais, menos ativos em determinados momentos.
Comentei os resultados fracos dos alunos dos terceiros anos no simulado que realizei na semana passada, e ouvi que “era de se esperar”, uma vez que eles não demonstram nenhuma vontade de aprender. Em geral, os professores acabam culpando os alunos pelo fracasso escolar.
Mais tarde, li na revistá Época dessa semana uma matéria intitulada “E escola que nossos jovens merecem”, onde cinco adolescentes foram acompanhados em seu dia-a-dia e registraram suas impressões sobre a vida escolar, entre outras coisas. A matéria trazia diversas estatísticas que “comprovam” o fracasso do Ensino Médio no Brasil, destacando aspectos como o alto índice de evasão e reprovação no ciclo. O teor geral da matéria, bem como dos relatos dos alunos, é de que a escola e os professores é que são os culpados pelo caos na educação escolar. O que é oferecido por ambos seria antiquado, desinteressante, pouco sedutor. O sistema, como disse uma das pessoas entrevistadas, foi elaborado para atender às demandas da sociedade de vinte anos atrás, e foi incapaz de se adequar à nova realidade...
No meio desse tiroteio, fico sempre confuso. Aliás, muito confuso. Sou eu que estou errando, como professor, falhando na tarefa de despertar o interesse dos jovens? Ou são eles que não querem saber de nada mesmo, não importando o quanto me esforce? Concordo que o que se oferece para os jovens hoje é algo que destoa de seus desejos. Talvez possa ser classificado como “antiquado”. Por outro lado, não posso deixar de sentir a apatia dos estudantes, o descaso com a escola, a ausência de um ”sentido de escola” por parte deles. Para a maioria, a escola é apenas um lugar pra onde se vai encontrar os amigos, se divertir, sem compromisso nenhum com qualquer tipo de projeto.
Ninguém está oferecendo a eles um projeto... Nem os pais, nem nós professores. O que se oferece é a ilusão do mundo cintilante que aparece na TV, nos clipes, nas letras das músicas, nas revistas de celebridades. Ou a lógica do microcosmo religioso emitida dos púlpitos ocupados por estelionatários profissionais, pessoas com alergia de trabalho honesto.
Acho que a crise é muito maior do que supõe os que contrapõe alunos e professores. As mudanças que o mundo vem sofrendo nos últimos anos destruiram modelos de conduta, tanto do indivíduo para consigo mesmo quanto nas relações entre as pessoas. Romperam formas tradicionais de lidar com os jovens que, mesmo inadequadas ou injustas, funcionavam...
Lembrei do crime porque, às vezes, convivendo com os jovens, me bate uma incerteza grande, um medo do futuro... Não sei se isso é “coisa de velho”. Sei que os mais velhos reclamam dos jovens desde a antiguidade, fato registrado em textos que sobreviveram aos milênios. Mas quando os vejo pelas ruas, estropiando a língua portuguesa, expondo formas pouco ortodoxas de comportamento, me sinto acuado. Sinto que algo se perdeu. Espero estar errado. Espero estar sofrendo da mania dos velhos de criticarem a juventude...

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Chegando ao final (?)


Os estudantes ainda estão ocupados em preencher suas tabelas. Já têm mais segurança no uso dos computadores e na localização da informações. Alguns foram além do esperado, produzindo tabelas especiais ampliadas e coloridas, outros usaram seus conhecimentos em informática para fazer suas tabelas no editor de textos. Agora que o trabalho se aproxima do fim, brota a dúvida sobre como aproveitar os esforços feitos e criar um fechamento que dê sentido a tudo o que foi desenvolvido. É um momento crucial, que pode tanto salvar quanto perder tudo que fizemos.

Nessas horas percebo as lacunas de minha formação com mais força, e fica claro o grau de dificuldade envolvido na atividade pedagógica. Afinal, em que esse trabalho contribuiu para a formação desses jovens? Que elementos foram somados a suas essências em formação? Preciso encontrar uma forma de avaliar que etapas foram proveitosas e quais foram inúteis...

Na quinta-feira irei encerrar, com os segundos anos, o trabalho com as tabelas e, se houver tempo, iniciarei o uso dos textos. Não fui capaz de reproduzir os capítulos do livro ainda, como queria. Apenas a introdução está disponível, e é por aí que começarei. Uma cópia para cada aluno foi disponibilizada, graças aos esforços da coordenadora pedagógica, que driblou a pane do computador da sala dos professores e imprimiu o texto na secretaria (mas isso é segredo...)

Tentarei fazer uma leitura em conjunto, extraindo de cada parágrafo ideias, conceitos e informações. Um dos alunos espontaneamente se dispôs a digitalizar o resto do livro...