quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Asilo Santa Thereza, 1855

Documento interessante para o estudo de gênero, trata-se do regimento do então recém-criado Asilo, na cidade de São Luís, em 1855. Publico abaixo alguns trechos mais sugestivos. O texto integral pode ser encontrado no local indicado no final da postagem.



"Do ensino


Art. 34. O ensino se dividirá em quatro classes, do modo seguinte: 1ª doutrina cristã e deveres morais e religiosos, leitura, escrita, aritmética até frações, princípios elementares de gramática nacional, noções gerais de geografia e história pratica de desenho; 2ª exercícios de agulha de todo gênero; 3ª pratica de trabalhos e economia doméstica, como cozinhar, lavar, engomar, confeitaria de todas as especialidades etc.; 4ª noções gerais de música.


(...)



Do casamento das desvalidas, e de seus dotes.


Art. 38. O director do asylo, sob a direcção do presidente da provincia, promoverá, quanto lhe for possível, o casamento das meninas desvalidas, logo que cheguem à idade de 16 annos. Quando, porem, não tenha podido conseguir-lhes o casamento, procurará acomoda-las convenientemente em casas de família de conduta abonada, não tendo elas pessoas de sua família para onde possam ir.


Art. 39. Aquelle que pretender casar-se com alguma das colegiais desvalidas, deverá dirigir ao presidente da provincia uma petição, em que delcare seu estado, naturalidade, domicílio, oficio, profissão, ou qualquer meio de vida que possa ter. O presidente da provincia, depois de ouvido o director do asilo, e informando este favoravelmente, concedera a licença pedida; e a negará sempre que for desfavorável a informação do diretor; ou quando, por outra qualquer via, tiver conhecimento da existêcia de algum facto, pelo qual não a deva dar. – Quando a colegial for órfã, será ouvido o juiz de orphãos.


Art. 40. As desvalidas que se casarem com licença do presidente da Província terão um enxoval no valor de trezentos mil reis, e perceberão, depois de casadas, o dote de quinhentos mil reis, que será entregue ao noivo pelo diretor no fim de oito dias. Em cada ano havera somente quatro dotes, que serão dados às primeiras desvalidas que se casarem.”

Trechos do regulamento de fundação do Asilo de Santa Tereza, para amparo de meninas órfãs, desvalidas e expostas, In: Relatório do Presidente da Província Eduardo Olímpio Machado, 5 de maio de 1855, seção “Documentos Oficiais” nº 5, sem numeração de página. Este material pode ser encontrado no Arquivo Público do Estado do Maranhão - APEM, em São Luís.

Construção de casas e higienismo

O higienismo, responsável por modificações profundas nos modos de sentir e pensar, e em alterações materiais enormes em diversas cidades do Brasil, também deu as caras em São Luís. No final do século XIX a elite letrada começou a olhar a cidade de outra maneira, ressentindo-se da ausência de luz e ventilação nas casas, preocupando-se com o destino do lixo e do esgoto, com o calçamento das ruas, com a procedência da água. Essa mentalidade determinou alterações no traçado urbano de São Luís, anexando novas áreas de ocupação e relegando outras ao ocaso. Interferiu também nos costumes, gerando uma nova economia de gestos e hábitos.
O documento abaixo versa sobre modificações nas técnicas construtivas que se criam necessárias para assegurar os novos padrões de higiene.



“Construcção de prédios
É também de absoluta necessidade que com urgência se estabeleção regras fixas e invariáveis para serem observadas na construção dos prédios destinados a moradia, de modo a se ir melhorando as condições hygienicas da nossa capital, onde não é raro encontrarem-se casas com quintaes tão pequenos que as latrinas (fossas fixas permanentes) tenham por falta de espaço sido abertas junto das paredes, por baixo das varandas e cosinhas, e ainda junto dos poços, donde os moradores tiram a água necessária para todos os usos domésticos.
Taes inconvenientes só poderão ser obstados marcando-se, por occasião da concessão de licença para a construção de cada prédio a área necessária para o quintal, no qual se determinará a posição da latrina, cujas dimensões e demais condições hygienicas deverão ser estabelecidas por lei, enquanto não tivermos um bom systema de esgotos.
O escoamento das águas pluviaes deve tambem merecer especial attenção afim de impedir-se que águas servidas passem de umas para outras casas, infeccionando-as, sempre que a posição do terreno permitir deve-se obrigar o dono do predio, embora com mais algum dispendio, a encaminhar as águas para a rua.
Só assim, em casos de epidemia, e em que um rigoroso isolamento se torna indispensável, poderão as autoridades sanitarias e municipaes fiscalisar a fiel observância das medidas impostas pelas necessidades da occasião.”

Mensagem ao Congresso do Estado pelo vice-governador Alexandre Collares Moreira Junior, de 11 de fevereiro de 1903, p. 4 – Documento pode ser encontrado no APEM.

UMA CIDADE DOENTE

Diante do que considerou “um péssimo estado sanitário” da Província, atacada por epidemias que ceifavam centenas de vidas, o presidente Almeida e Albuquerque nomeou uma comissão de médicos para que elaborassem um relatório sobre as causas e que estabelecessem um conjunto de medidas a serem adotadas para minimizar os estragos.
O resultado aparece transcrito abaixo.

“1º Quesito
Quaes as causas da insalubridade da capital?
R. – Deve-se considerar como causas de insalubridade desta capital a completa falta de asseio do matadouro, dos mercados, dos chãos vasios, dos quintaes e das praias, etc. etc. em consequencia dos detritos de materias organicas decompostas e de corpos de animaes em via de putrefação. Além destas causas, existem outras, como sejam a grande quantidade de pântanos que cercão a cidade, a exposição das praias ao sol ardente, a collocação dos cemiterios, a irregularidade das estações e provavelmente o uso da carne em virtude do modo porque são conduzidos e tratados os animaes.

2º Quesito
Quaes os meios de removel-a?
R. – Para a limpeza da cidade deverão as authoridades competentes nomear comissões fiscalizadoras que dirijão o prompto asseio do matadouro, mercados, chãos vasios e quintaes etc. etc. de maneira que o lixo e outras immundícies sejão, á proporção que forem tirados, conduzidos em carroças e lançados fora do centro povoado. Para a remoção de muitas das causas apontadas seria necessário muito tempo, e para a de outras existe verdadeira impossibilidade.

3º Quesito
Quaes as endemias da província?
R. – As endemias da província são as febres intermitentes simples – as perniciosas – as remittentes simples – as biliosas – as diarrhéas – as dysenterias – a varíola – as ophtalmias e o beri-beri. São muitas destas moléstias desenvolvidas por occasião da mudança das estações e da vasante dos rios, tempo em que algumas tomão a forma epidêmica.

4º Quesito
Quaes as circunstâncias que as entretem?
R. – As causas que as entretem são as mesmas já enunciadas para a insalubridade da capital, accrescendo mais, a vasante dos rios, em certa epocha, fazendo com que as águas geralmente bebidas pela população ribeirinha do interior da província, corrão sujas de lodo e outras immundicies, que ellas acarretão das margens à proporção que as vão deixando livres e expostas a ação solar.
5º Quesito
Reina alguma epidemia?
R. – Grassão fortemente as epidemias de beri-beri e variola, tendo tomado a segunda, neste último mez até esta data, proporções agigantadas.

6º Quesito
Desde quando e qual a sua causa?
R. – O beri-beri existe bem conhecido e caracterisado, ha 6 annos, apresentando-se ora menos, ora mais intenso e extenso, principalmente na estação invernosa.
Com o caráter epidemico, reina a varíola entre nós ha 5 annos, e se tem conservado sempre ora menos, ora mais forte, como presentemente.
7º Quesito
A febre amarella de 1º de janeiro a 30 de junho ultimo tem se revelado bem caracterisada?
R. – De 1º de janeiro a 30 de junho ultimo nem um do s membros desta commissão observou caso algum de febre amarella bem caracterisado.

8º Quesito
Até hoje quantos casos registraram-se dessa moléstia?
R. – A commissão só conhece um caso registrado de febre amarella, dado na pessoa da portugueza Gertrudes Rosa da Silva. Esse caso se acha publicado no Paiz de 28 de julho p. p. pertencendo ao obituário do dia 26 do mesmo mez e foi observado unicamente por um dos membros desta comissão o Sr. Dr. Jauffret.

9º Quesito
Com plausível fundamento deve-se cre-la reinando epidemicamente?
R. – A vista de ter o Sr. Dr. Jauffret affirmado a realidade do caso que também fora reconhecido pelo Sr. Dr. Hall, médico assistente de Gertrudes da Silva, parece não haver dúvida de que, ao menos esporadicamente já foi ella aqui observada.

10º Quesito
Finalmente os edifícios publicos correspondem satisfactoriamente ao fim de sua instituição?
R. – Quanto a este quesito, responderemos que, nos edificios publicos muito haveria que melhorar, mas como nos parece que sobre a quadra actual nada influem directamente, nada diremos.

OBSERVAÇÕES

Como é a epidemia de varíola aquela que actualmente mais disima a população e traz ao seu seio o terror pannico, a commissão entende dizer, sobre a maneira de attenual-a e evitar maiores desgraças, alguma coisa de mais pratica, e então acha de magna importância, que o governo crie, para os atacados de varíola:
1º Hospitaes com accommodações vastas, afastados do centro povoado e bem providos de pessoal para o tratamento dos doentes.
2º Que obrigue, de alguma maneira, a população vaccinar-se e revaccinar-se.
3º Que nomeie commissões ou agentes vaccinadores pelas diversas freguezias.
4º Que auxilie, na repartição da vaccina, ao commissário vaccinador, augmentando-lhe o número do pessoal para o serviço da vaccinação.
5º Deverá o chefe da casa onde existir um doente e varíola, mandar vaccinar todas as pessoas ainda não vaccinadas e revaccinar aquellas que já o tiverem sido há muitos annos.
6º O governo fará com que os facultativos declarem nos attestados de óbito, si o doente era ou não vaccinado, a fim de se poder mostrar com uma estatística o erro dos descuidados em vaccinar-se ou revaccinar-se.
7º O governo fará com que os particulares deem immediatamente parte, por escripto ao inspector de saude publica, que teem em sua casa um doente de varíola confirmada, para que por meio de uma boa estatística bem se possa avaliar da extensão e do progresso da epidemia.
8º O governo mandará examinar as casas em que lhe constar existir um doente atacado de varíola entregue a curandeiros, e o fará remmeter para um dos hospitaes.
9º O governo mandará oferecer ao inspector da saúde pública, os desinfectantes que elle achar necessários para o serviço dos hospitaes.
10º O governo prohibirá, com assistência de agentes policiaes, que se lavem roupas dos doentes de varíola nas mesmas fontes, em que se lavão outras.
11º O governo nomeará, para enquanto durar a epidemia, uma commissão de tres medicos com os quaes se entenderá sobre as medidas a tomar e sobre o melhor meio de pôl-as em prática.
Como já se acha registrado, entre nós, um caso de febre amarella e ella tem reinado forte e epidemicamente no Rio de Janeiro, de onde nos vem vapores de 10 em 10 dias, convem que o governo crie, como medida preventiva, um Lazareto na Ponta d’Area, onde possão ser recolhidos e tratados os doentes que, por accaso, nos forem vindo de fora. Outro sim porá em pratica as medidas já expendidas, em relação à variola, nos arts. 1º, 7º, 8º, 9º e 11º.
Podemos assegurar que, ha mais de 20 annos, existe o beri-beri nesta capital, posto que não fosse conhecida sua verdadeira natureza, e nem tivesse sido descripto ainda com essa denominação.
Alguns, d’entre nós, tratarão há muitos annos, de um certo número de doentes que apresentavão todos os symptomas do beri-beri, o qual era ora classificado como paralysia nervosa e reflexa, ora como congestão e hydropisia da medulla espinhal, comquanto não parecesse, mesmo então, acertado este diagnostico, por se não poder explicar satisfactoriamente, a combinação da hydropisia e da paralysia que caracterisão esta moléstia.
A maior parte dos casos observão-se entre as mulheres, depois do parto, outros porém complicavão as affecções hepaticas produzidas pellas febres intermittentes, e parecião nada mais ser do que, uma forma especial de cachexia paludosa.
As descripções que havião do beri-beri da India, por muito resumidas e imperfeitas, não permitiam reconhecer a identidade da natureza da moléstia, então observada, como a do beri-beri e a do barbier das costas do Malabar e de Ceylão, comquanto houvesse entre ambas notáveis analogias.
Desde que, porém, o beri-beri, ganhando em extensão, tornou-se epidêmico, entre nós, e declarou-se, não com menor intensidade, na capital da Bahia, então mais completos estudos foram feitos sobre sua symptomatologia, e foi reconhecido como indêntico com a affecção endemica da India, denominada beri-beri.
Há pouco mais ou menos 6 annos, que o beri-beri tomou, aqui, o caracter epidemico, attacando, annualmente, podemos dizer sem exageração, mais de 300 pessoas.
Nos primeiros 4 annos notou-se que elle se desenvolvia, com mais força, durante os mezes mais chuvosos de Março, Abril e Maio, sem que, comtudo, desapparecesse na estação secca.
No anno de mil oitocentos, setenta e cinco, pelo contrario, principiou a recrudescer em julho, agosto e setembro. Este anno a sua marcha parece ser, pouco mais ou menos, a mesma.
O beri-beri tem atacado, entre nós, tanto os brancos como os pretos e pessoas de raça cruzada, e com igual intensidade, ambos os sexos, sendo sempre as mulheres mais expostas a contrahil-o no estado de gravidez e no estado puerperal. Não ataca sempre com a mesma intensidade e varião suas formas, desde a mais grave e rapidaque, paralysando o coração, mata em poucos dias, até a forma benigna que não tende a aggravar-se, e que abandonada a si mesma, termina pela cura expontanea.
É esta uma verdade que se deprehende da resistencia que apresenta o beri-beri aos tratamentos mais bem aconselhados, quando é de forma grave e progressiva, e da facilidade com que cede, muitas vezes, aos mesmos meios ou a quaesquer outros por mais insignificantes e irracionaes que pareção.
Sabemos que a emigração para fóra desta capital tem sido o recurso mais proveitoso aos beri-bericos, ao qual muitos devem a vida, e desse facto parace dever concluir-se que o beri-beri é, aqui, entretido ou por qualquer princípio miasmático derramado na atmospheral, ou pela influência prejudicial de qualquer dos generos da nossa alimentação.
Á respeito da prophilaxia do beri-beri, nada podemos dizer, por isso que ainda não se conhecem as suas causas especiaes.
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Para julgar-se do estado sanitario desta capital, apresentamos um mappa da mortalidade dos ultimos quatro meses.




Do prezente mappa ve-se que a variola que já existe epidemica, nesta capital ha 5 annos, tomou nos ultimos quatro mezes grande incremento e sobretudo no mez de julho passado em que a mortalidade que, em termo-medio, não passa dos 90 obitos por mez, elevou-se a 163, dos quaes 66 por conta da variola.
Pelo que se vê a mortalidade trazida pela variola é um accrescimo sobre a ordinaria, pois deduzidos 114 obitos devidos a variola nos ultimos 4 mezes, restão 388, o que dá uma média de 97, ainda superior a ordinaria.
É diminuta, sem duvida, a mortalidade pelo beri-beri, o que explica-se pela emigração dos doentes mais gravemente affectados, e por ter sido, mais geralmente benigna a molestia no corrente anno.

Maranhão, 10 de agosto de 1876

Dr. José Maria Faria de Mattos
João Francisco Corrêa Leal
J. R. Jouffret
Dr. Antonio Eduardo de Berredo
Dr. Antonio dos Santos Jacinto
Fabio Augusto Bayma
Dr. Amancio Alves d’Oliveira Azedo"


Relatório do Presidente da Província Senador Frederico de Almeida e Albuquerque, 07/12/1876, p. 39 – 44. O documento pode ser encontrado no APEM.

Anúncio de Sorvetes em São Luís - 1846

“Com 320 réis unicamente muda o indivíduo a atmosfera que reina dentro de toda a máquina intestinal, irritando a vítima com as exalações calóricas! Passa-se de um verão meridional para uma brisa fresca e consoladora! E tudo por 320 réis é mil vezes melhor que um passeio a carro, ainda que fosse pelo mesmo preço, pois o sorvete toma-se descansado, e no carro leva-se tombos que fazem doer a cúpula cerebral”.



Anúncio publicitário do Hotel Porto sobre os sorvetes “bons, baratos e perfeitos” que comercializava. Anúncio de jornal de 1846. In LEFÈVRE, Renée; COSTA FILHO, Odylo. Maranhão, São Luís e Alcântara. São Paulo: Editora Nacional, 1979, p. 17

Tiquira







In: JOFILLY, José. Morte na Ulen Company - 50 anos depois.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A jocunda


 "Lionardo fez para Francesco del Giocondo o retrato de Mona Lisa, sua esposa; trabalhou quatro anos nele e deixou-o inacabado; essa obra está hoje com o rei Francisco da França em Fountainebleau; quem quiser ver até que ponto a arte consegue imitar a natureza, poderá compreendê-lo facilmente observando aquele semblante, pois nele estão reproduzidas todas as minúcias que é possível pintar com sutileza. os olhos têm o brilho e a umidade que se costumam ver nos seres vivos, e em torno deles percebem-se zonas lívidas e rosadas, assim como pelos, coisas que não é possível fazer sem muita sutileza. os cílios, representados no modo como nascem na carne, ora mais densos, ora mais ralos, obedecendo ao giro dos poros, não poderiam ser mais naturais. o nariz, com aquelas belas narinas róseas e tenras, parece estar vivo. a boca, cuja fenda termina em cantos de um vermelho que se une à carnação do rosto, na verdade não parece feita de tintas, mas de carne. Na base de seu pescoço, quem olhar atentamente verá a pulsação das artérias: na verdade, pode-se dizer que essa pintura foi feita de uma maneira capaz de causar medo e temor a qualquer artista valente, fosse ele qual fosse. Lionardo valeu-se do seguinte artifício: enquanto retratava a Mona Lisa, que era belíssima, por perto sempre havia pessoas a tocar ou a cantar, bem como bufões que a mantinham alegre, para eliminar aquela melancolia tão frequente na pintura e nos retratos que se fazem. e nesse retrato feito por Lionardo há um sorriso tão agradável, que mais parece coisa divina que humana, tão admirável por não ser diferente do natural."

Giorgio Vasari, Vida dos Artistas, 1550. 
Ed. brasileira 2011, p. 448; trad. Ivone Castilho Bennedetti

Who watches the watchmen?

'Eu tava marcado', diz estudante Fábio Hideki ao relatar prisão após protesto

O estudante e funcionário da USP Fábio Harano, 27, deixou de ir a manifestações para passar dia e noite ao lado dos pais, o engenheiro aposentado Edson e a dona de casa Helena Harano. Ele ficou preso por 45 dias, acusado de participar de protestos violentos em SP. Depois que um laudo desmentiu que portasse explosivos, foi libertado pela Justiça. Ainda é investigado por associação criminosa e desobediência.
*
Harano diz que apanhou da polícia e que se sentiu mais seguro na cela, com presos, do que com autoridades do Deic. Dormiu num colchão com cheiro de vômito, dividiu o espaço com dezenas de pessoas, fez dieta aconselhado por companheiros de cela. Antes de ser preso, estava lendo o quadrinho "Watchmen". Agora, quer terminar a série de Harry Potter. Abaixo, um resumo da conversa:

Marlene Bergamo/Folhapress
O estudante e funcionário da USP Fábio Harano com sua mãe durante entrevista
O estudante e funcionário da USP Fábio Harano com sua mãe durante entrevista
A PASSEATA
Eu tava bem apreensivo [na passeata da av. Paulista, em junho, em que terminou preso]. Não nego: meu coração deu uma acelerada quando vi a quantidade de policiais.
*
Eles ficavam numa disputa velada, com os cavalos tentando fazer com que andássemos rápido. Quem está atrás tenta segurar para não deixar a gente ser simplesmente conduzido. Mas não teve porrada, xingamento, ninguém quebrou nada. No Trianon, o pessoal dispersou.
*
Eu estava na catraca do metrô Consolação. Ouvi o som de um tiro. Coloquei de volta o meu capacete, as luvas, o EPI, equipamento de proteção individual, como se diz na segurança do trabalho: máscara, vinagre, pano, roupa grossa, calçado bom pra correr. Equipamento de quem não quer apanhar. Pensei: "Vou lá para tirar foto, filmar". A gente tirar fotos das identificações dos policiais, das placas dos veículos.
*
Na escada, um sujeito à paisana chama: "Ei, você". E começa a me puxar. Vêm outros, "polícia, polícia civil". Minha reação foi pedir para pessoas com celular: "Filma, filma". Pensei: "Tô preso".
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Eu tiro as coisas da mochila ali, sem medo. Sempre me falam: "Você leva a casa nela". Aprendi com minha mãe. Eram duas camisetas, duas cuecas, meia, para o caso de eu ter que dormir fora.
Helena - Escova de dente, um monte de sacola plástica.
Fábio - Na saída do metrô, fiz um gesto de resistência, e os policiais: "Para com isso, você agora é o José Genoino [que, quando preso, em 2013, ergueu o braço]?"
*
Entrei no carro da PM. E eles fazem zigue-zague para a pessoa ficar tonta, bater a cabeça. Me apoiei. "Querem que eu fique desesperado, não vou dar esse gostinho."
NO DEIC
No Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), me algemaram. Me levaram para uma sala em que já estava o Rafael [Lusvarghi, também preso na manifestação], machucado, algemado. "Seu vagabundo, baderneiro, japonês, não tem nem vergonha, não?" Como se fosse desonra um japonês participar de manifestação. Eu estava no lugar que hoje chamo de cova dos leões.
Eu perguntei para o Rafael: "Cara, qual é o seu nome?". Aí um policial, que eu sei reconhecer, me deu um soco, joelhada e chute na barriga. Vi estrelas. Ele me jogou no chão: "Aqui é o Deic, porra! Quem manda aqui é nóis" [a polícia nega as agressões]. Tiraram fotos minhas com seus celulares, como se tivessem um álbum de bandidos. Reviraram minha mochila.
*
Eu sempre carrego telefones de advogados. Eles riram, "nossa, lista de advogados, é bandido mesmo". Tinha o do deputado Paulo Teixeira, do PT. E eles: "Tinha que ser PT mesmo". Eu carrego o cartão dele porque em uma marcha da maconha, em 2009, eu ia ser levado para a delegacia. Ele conversou [com policiais] e não me levaram. Como ele já me salvou uma vez, né?
*
Chegou o diretor do Deic e cochichou: "Você tá fodido." Depois me ofereceu Coca-Cola, tentou tirar informações, saber se eu era black bloc.
*
Quando eu estava prestando depoimento, um policial entrou e me mostrou o tubo [apontado como explosivo]. Plantaram a "bomba" nas minhas coisas para eu ser acusado de crime inafiançável. Mas em nenhum momento entrei em pânico. Conheço gente que chorou em situações como essa. Eu, não.
Edson Harano - Ele já tava nessa vida [de manifestações] há muito tempo, né?
Fábio - Não é assim. Quando percebe que está no Deic, muita gente desaba. Só chorei uma vez, no presídio de Tremembé. Um colega de cela tava chateado porque o pai não foi visitá-lo na cadeia.
Helena - Chorou! Chorou! Ele tava sensibilizado. É que o rapaz era reincidente. E o pai ficou muito chateado.
Fábio - Não sei se é isso.
Helena - Ele supõe.
Fábio - Eu não. Você é que tá supondo! E eu só não fico com vontade de chorar agora porque, ainda bem, na semana seguinte, o pai dele foi.
*
Dormi na cela do Deic. Todos lá tinham assaltado banco. Perguntaram: "E você tá aqui por quê?". Manifestação e tal. E eles: "Nossa, mas é cada uma! Putz grila". Me senti seguro ali. Aquele lugar eu não chamo de cova dos leões!
*
O lugar é muito sujo. Tem o boi, um buraco no chão [privada]. Uma mangueira é usada como descarga, chuveiro, tudo. Subi numa pedra, que é o espaço para deitar, sem colchão. Tirei o tênis, coloquei os pés num saco plástico, me encolhi todo e dormi.
*
[Os pais dizem que, embora soubessem que, como ativista, ele corria o risco de ser preso, não imaginavam que o caso tomaria tamanha proporção. Harano já havia sido detido em 2011, em greve da USP. Pagou fiança e foi solto.]
Helena - Ele já virou freguês [risos].
Edson - O pior passou. A vida continua. Não vamos ficar nos martirizando.
Helena - Ele fez essa opção [de ser ativista]. Há muito tempo ele está nessa vida. A gente não interfere.
Fábio - Alguém tem que fazer algo, afinal. Eu sou um ativista, um militante independente. Sou do sindicato da USP, mas não sou filiado a corrente política nem sou membro formal de movimento social. Sou um cara aí que quer melhorar as coisas.
NO CDP DE PINHEIROS
Fui transferido para lá. Me avisaram: "Aqui você não tem alternativa. Vão te chamar de ladrão e você vai falar: "Não, senhor. Sim, senhor. Com licença, senhor". Cortaram o meu cabelo. Não tive opção.
*
Fiquei na sala de inclusão, bem suja. Eram 12 pessoas quando cheguei. No fim do dia, já eram uns 30. Tinha um espanhol, muitos da América Latina, um egípcio. Estavam ali por causa da Lei Maria da Penha, tentativa de estupro, embriaguez no volante. Existe aquele temor: "Cadeia! Será que [o preso] vai ser estuprado? Vão extorquir?" Vi que não. Porque lá tá todo mundo ferrado, igualado, no mesmo barco.
*
Não tem espaço e todo mundo em pé. Quem dorme na praia, que é a gíria para chão, tem direito ao colchão, mas dormem em três.
*
A refeição vem na marmita, sem talher. Um suco em pó é misturado numa garrafa pet de dois litros que vai passando, todo mundo bebe no gargalo. À noite, um dos presos leu um trecho da Bíblia, todos cantaram. Eu não tenho religião, mas cantei com força. Pensei: "Muita gente quer que eu fraqueje. Mas tô tranquilo".
*
Senti uma dor abdominal, fui para a enfermaria. Um cara ao lado tava com abstinência alcoólica. O meu colchão tava com um cheiro estranho. Alguém tinha vomitado lá. Foi o pior momento.
TREMEMBÉ
No dia seguinte fui transferido para o presídio de Tremembé. Os guardas não são tão grossos porque lá tem muitos policiais presos, pessoas conhecidas, com contatos, capital social. Te entregam um kit com colchão, coberta, uma escova de dentes, caneca, colher e bandeja.
*
Eu me exercitava, lia. Sozinho, o tempo não passa! No dia 30, chegou um preso. Era o meu aniversário. Deixei quieto, não comentei. Num outro dia, minha avó e meu irmão trouxeram roupas e gibis dos Cavaleiros do Zodíaco. Li não sei quantas vezes.
*
Depois fui para uma cela com três pessoas. Pessoal gente boa, tranquilo. Eles faziam dieta. Eu procurei seguir. Não vou mais comer carboidrato à noite! Eu aparecia na TV e o pessoal gritava: "Olha o japonês na Globo".
*
Do jeito que a armação tava [referindo-se à sua prisão], pensei: "Ho, ho", como Papai Noel: vou passar o Natal aqui. É preferível ser pessimista do que otimista e quebrar a cara. O José Saramago dizia: "Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo".

Reprodução
Bilhete com 'salve' a presos que Fábio conheceu na prisão
Bilhete com 'salve' a presos que Fábio conheceu na prisão
ESQUERDA CAVIAR
Além de ser algo que não cabe ali [referindo-se ao despacho em que o juiz diz que Harano é da "esquerda caviar"], é a ideia de que, de classe média para cima, não pode ser de esquerda. E ele falou que usamos tênis Nike.
Helena - Olha o tênis que ele usa!
Fábio - É Asics. Não pago mais de R$ 200 num tênis.
Edson - Ele é contra smartphone, não quer ter de jeito nenhum.
Fábio - Se me conhecesse, ele [juiz] poderia me chamar de esquerda muquirana.
PRESO POLÍTICO
Todo preso é preso político porque toda prisão decorre de uma decisão política, de se criminalizar uma conduta. Mas, no meu caso, foi descaradamente persecutório. Inclusive um policial me falou: "Você me fodeu, japonês. Eu queria ver o jogo do Brasil e recebi ordens de te seguir a tarde toda e de te prender depois". Eu tava marcado.
VIDA DE ATIVISTA
Desde 2013, fui a mais de 20 passeatas. Pelo passe livre, pela legalização da maconha, apoiando a galera do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), contra roubalheiras e injustiças da Copa.
*
De política eu comecei a gostar com 13 anos.
Helena - [suspira] Ai, ai.
Fábio - Eu queria inclusive mandar um "salve" para o professor Adelardo, meu professor de história na 8ª série.
Helena - Com 17 anos, ele passou na Poli [Escola Politécnica da USP]. Não é fácil.
Fábio - Em 2007, passei a me envolver com ativismo, movimento estudantil. Mudei para ciências sociais. Mas não terminei. Em 2012, fiz vestibular para jornalismo, na ECA (Escola de Comunicação e Artes). E estou lá.
*
Se eu tiver que resumir, eu defendo democracia de base e direitos humanos. Sou um cara internacionalista, contra essa limitação do Estado nação. Eu não acho que os black bloc sejam um movimento. Se todo mundo que joga lixo no chão for chamado de sujismundo, vamos ter vários sujismundos. Não significa que exista um partido dos sujismundos. Não faço o que eles fazem, isso mostra que não concordo com eles.

Marlene Bergamo/Folhapress
O engenheiro aposentado Edson Harano, pai de Fábio Hideki
O engenheiro aposentado Edson Harano, pai de Fábio Hideki
Não vou dizer em quem voto para não fazer propaganda de nenhum lado.
Helena - Melhor não. Ele ta numa situação delicada.
Fábio - Mas o PSDB é o pior partido do Brasil, sem dúvida.
*
Estou lendo "Introdução à Economia", de vários autores, e o 5° livro do Harry Potter. Faz dez anos que tô enrolando para terminar a série. E quadrinhos eu gosto. Tava relendo "Watchmen" antes de ser preso.
*
Agora eu quero mesmo é me livrar desse processo estapafúrdio e tocar a vida. Se eu vou a passeatas? [olha para o pai antes de responder] Vamos ver, né? Tenho que conversar direito com o advogado. Mas tô de molho.
*
Não vou dizer que, na prisão, todo mundo gosta de todo mundo, mas quero reforçar que ninguém me tratou mal. Medo eu tive lá na cova dos leões [com os policiais]. Aliás, não sei se você tem como fazer isso. Mas o pessoal de Tremembé pediu que, se eu desse entrevista, mandasse um "salve" para eles. Então eu quero mandar um "salve" para o Nicolas, o Diego, o Arroz... Melhor escrever.
*
Fábio Harano pega uma folha e uma caneta.
A mãe dele sorri e suspira. "Ai, ai. Ai, meu Deus."
mônica bergamo Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

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Comentários

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n/c (297)

(06h49) há 6 minutos Denunciar
Quanta injustiça! O rapaz era um seminarista e que entoava cânticos gregorianos enquanto andava pela Av. Paulista quando foi pego pela polícia! Mas, afinal onde estariam os "machos" que desafiavam a polícia e quebravam tudo? Sumiram!!!!
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