sexta-feira, 29 de maio de 2009

Ao que vai nascer


(Milton Nascimento e Fernando Brant)


Memória de tanta espera
Teu corpo crescendo, salta do chão
E eu já vejo meu corpo descer
Um dia te encontro no meio
Da sala ou da rua
Não sei o que vou contar
Respostas virão do tempo
Um rosto claro e sereno me diz
E eu caminho com pedras na mão
Na franja dos dias esqueço o que é velho
O que é manco
E é como te encontrar
Corro a te encontrar

Um espelho feria meu olho e na beira da tarde
Uma moça me vê
Queria falar de uma terra com praias no norte
E vinhos no sul
A praia era suja e o vinho vermelho
Vermelho, secou
Acabo a festa, guardo a voz e o violão
Ou saio por aí
Raspando as cores que o mofo aparecer

Responde por mim o corpo
De rugas que um dia a dor indicou
E eu caminho com pedras na mão
Na franja dos dias esqueço o que é velho
O que é manco
E é como te encontrar
Corro a te encontrar

segunda-feira, 25 de maio de 2009

sexta-feira, 22 de maio de 2009

"Motoboys - Vida Loca"




Sempre fui fã de documentários. A sucessão de imagens, narrações, depoimentos, formando um mosaico que vai desenhando uma opinião, uma idéia, faz com que, durante o ato de assistir, minha cabeça funcione sem parar, formulando e reformulando o que os olhos vêem na tela... Ao final de um (bom) documentário, sinto que aprendi alguma coisa.

Recomendo o brasileiro/paulistano "Motoboys - Vida Loca", inclusive como ferramenta pedagógica. Caíto Ortiz, o realizador, tece uma trama intrincada de depoimentos, desabafos, opiniões, misturando isso com imagens vertiginosas dos motoqueiros em ação, "costurando" nos impensáveis estreitos entre as filas de carros, ônibus e caminhões que entopem as ruas de São Paulo. A edição, aliás, é um dos pontos altos da obra, dosando ação com reflexão, criando debates e momentos de confronto entre visões opostas.

Todos os lados envolvidos são ouvidos, com exceção da prefeita de São Paulo da época, que se omitiu. É um trabalho historiográfico em formato imagético. O filme consegue mostrar as causas do fenômeno (desemprego aliado à necessidade de rapidez na circulação de certos ítens) e exibe casos particulares, como o do jovem "Falcão", que faz da atividade uma fonte de "adrenalina", ou da trágica Maria Madalena, que talvez traga o relato mais pungente do filme.

Exibi esse documentário aos alunos de ensino médio em meio à discussão sobre Urbanização, e colhi resultados animadores.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Iluminismo - algumas considerações

É uma constante nos livros didáticos de História: ao tratar do tema Iluminismo, o que se exibe é um resumo muito parcial e incompleto do assunto. São citadas as principais obras de alguns autores (geralmente Voltaire, Montesquieu, Rousseau e Smith) acompanhadas de uma explicação muito sumária das principais idéias de cada um. Alguns livros trazem, a bem da verdade, pequenos trechos das obras iluministas, o que confere a eles um pouco mais de profundidade. Mas no geral, o livro aprisiona o tema, muito complexo e multifacetado, num esquematismo primário que retira muito do valor didático do assunto. Numa escola sem outros recursos de pesquisa, algo muito comum no ensino público, o tema acaba minguando por falta de elementos...
Na aula de hoje sobre o assunto, um dos alunos, que pesquisava Rousseau, quis saber sobre a atuação do filósofo no mundo real. Havia ele tentado em alguma ocasião por em prática as idéias que havia desenvolvido? Questionamentos semelhantes surgiram a respeito de outras figuras.
Para elucidar essas questões, decidi abordar paralelamente breves biografias destes pensadores. Este é um exercício interessante: comparar as idéias de alguém com sua trajetória pessoal, e tentar extrair dessa relação explicações de causa e efeito.

Posto abaixo textos biográaficos que selecionei na rede, com as devidas fontes citadas em seus rodapés.

Adam Smith – Perfil Biográfico
(Nascimento: ?/?/1723, Kirkcaldy, Escócia - Morte: 17/7/1790, Edimburgo, Escócia)




"Ao buscar seu próprio interesse, o indivíduo freqüentemente promove o interesse da sociedade de maneira mais eficiente do que quando realmente tem a intenção de promovê-lo." Defendendo o valor do interesse individual para garantir o interesse público, Adam Smith criou, neste trecho de sua "A Riqueza das Nações", o conceito de "mão invisível do mercado", fundamental para a doutrina do liberalismo.Filho de um fiscal da alfândega, Adam Smith fez seus primeiros estudos em Kirkcaldy, sua cidade natal. Aos 14 anos, ingressou na Universidade de Glasgow, onde se graduou em 1740 e conseguiu uma bolsa de estudos para a Universidade de Oxford, onde estudou filosofia.Seis anos depois, retornou à Escócia e tornou-se conferencista público em Edimburgo. Adquiriu reconhecimento como filósofo, o que lhe proporcionou ser professor de lógica na Universidade de Glasgow, em 1751. No ano seguinte, passou a lecionar filosofia moral, cadeira pleiteada alguns anos antes, sem sucesso, pelo filósofo David Hume.Nessa época, travou relações com nobres e altos funcionários, freqüentando a sociedade de Glasgow e, em 1758, foi eleito reitor da Universidade. Seu primeiro trabalho, "A Teoria dos Sentimentos Morais", foi publicado no ano seguinte.Por intermédio do político Charles Townshend, foi convidado para o cargo de tutor do duque de Buccleuch. Em 1763, Adam Smith renunciou ao seu posto na Universidade de Glasgow e mudou-se para a França. Passou quase um ano na cidade de Toulouse e depois foi para Genebra, onde se encontrou com o filósofo Voltaire.Já em Paris, Adam Smith pode freqüentar os salões literários e travou contato com os filósofos iluministas. Um incidente com um irmão de seu pupilo, no entanto, obrigou Adam Smith a ir para Londres, onde passou a residir.Em 1767, Smith retornou a Kirkcaldy, onde iniciou a elaboração e revisão de sua célebre teoria econômica. Passou mais três anos em Londres, onde seu livro foi concluído. "Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações" foi publicado em 1776, tornando-se um dos mais influentes livros de teoria moral e econômica do mundo. As teorias formuladas em "A Riqueza das Nações" lançaram as bases do liberalismo, como a teoria da livre concorrência e o conceito de livre mercado.Depois da publicação do livro, tornou-se comissário da alfândega na Escócia, o que lhe garantiu bons proventos. Reconhecido e considerado por seus contemporâneos, Adam Smith morreu em 1790, aos 67 anos.

Fonte:
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u337.jhtm


Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu – Perfil Biográfico
(Nascimento: 18/01/1689, La Brède, França – Morte: 10/02/1755, Paris, França )


Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu, foi um dos grandes filósofos políticos do Iluminismo. Curioso insaciável, tinha um humor mordaz. Ele escreveu um relatório sobre as várias formas de poder, em que explicou como os governos podem ser preservados da corrupção.Nobre, de família rica, Charles-Louis formou-se em direito na Universidade de Bordeaux, em 1708, e foi para Paris prosseguir em seus estudos. Com a morte do pai, cinco anos depois, voltou à cidade natal, La Brède, para tomar conta das propriedades que herdou.Casou-se com Jeanne Lartigue, uma protestante. O casal teve duas filhas. Em 1716 ele herdou de um tio o título de Barão de La Brède e de Montesquieu, além do cargo de presidente da Câmara de Bordeaux, para atuar em questões judiciais e administrativas da região. Pelos próximos onze anos ele esteve envolvido em julgamentos e aplicações de sentenças, inclusive torturas. Nessa época também participou de estudos acadêmicos, acompanhando os desenvolvimentos científicos e escrevendo teses.Em 1721, Montesquieu publicou as "Cartas Persas", um sucesso instantâneo que lhe trouxe a fama como escritor. Inspirou-se no o gosto da época pelas coisas orientais para fazer uma sátira das instituições e dos costumes das sociedades francesa e européia, além de fazer críticas fortes à religião católica e à igreja: foi a primeira vez que isso aconteceu no século 18. O livro tem um estilo divertido, mas também é desanimador: apresenta a virtude e o autoconhecimento como impossíveis de serem atingidos.Montesquieu começou dividir seu tempo entre os salões literários em Paris, os estudos em Bordeaux, o cargo na Câmara e a atividade de escritor. Logo, ele deixaria a função pública para se dedicar aos livros. Foi eleito para a Academia Francesa em 1728. Viajou pela Europa e decidiu morar na Inglaterra, onde ficou por dois anos. Estava muito impressionado com o sistema político inglês e decidido a estudá-lo. Na volta a La Brède, escreveu sua obra-prima, "O Espírito das Leis": foi outro grande sucesso, e também bastante criticada, como haviam sido as "Cartas Persas".Montesquieu quis explicar as leis humanas e as instituições sociais: enquanto as leis físicas são regidas por Deus, as regras e instituições são feitas por seres humanos passíveis de falhas. Definiu três tipos de governo existentes: republicanos, monárquicos e despóticos, e organizou um sistema de governo que evitaria o absolutismo, isto é, a autoridade tirânica de um só governante. Para o pensador, o despotismo era um perigo que podia ser prevenido com diferentes organismos exercendo as funções de fazer leis, administrar e julgar.Assim, Montesquieu idealizou o Estado regido por três poderes separados, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Essa é a teoria da separação de poderes e teve enorme impacto na política, influenciando a organização das nações modernas. O pensador levou dois anos escrevendo "Em defesa do Espírito das Leis", para responder ao vários críticos.Apesar desse esforço, a Igreja católica colocou "O Espírito das Leis" no seu índice de livros proibidos, o Index Librorum Prohibitorum. Mas isso não impediu o sucesso da obra, que foi publicada em 1748, em dois volumes, em Genebra, na Suíça, para driblar a censura. Seus livros seguintes continuaram a ser controvertidos, desagradando protestantes (jansenistas), católicos ordodoxos, jesuítas e a Universidade Sorbonne, de Paris.Montesquieu morreu, aos 66 anos, de uma febre. Estava quase cego. Deixou sem concluir um ensaio para a Enciclopédia, de Diderot e D'Alembert.

Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u639.jhtm




François-Marie Arouet (Voltaire) – Perfil Biográfico
(Nascimento: Paris, 21 de novembro de 1694 – Morte: Paris, 30 de maio de 1778)




François-Marie Arouet, ou Voltaire, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Seu pai era tabelião e possuía pequena fortuna. Sua mãe tinha origem aristocrática. Ela morreu depois do parto. François foi franzino durante a infância e teve saúde fraca durante toda a vida.
Reinava Luís XIV. A França era grande, e os franceses, infelizes. Ou melhor, nem todos, porque para um pequeno setor da nobreza o monarca construiu sua armadilha dourada: Versalhes.
A nova sede da corte era, basicamente, um suborno. A nobreza podia optar: continuar entre gado e campônios, nas fazendas, ou ir para Versalhes. E havia mais um incentivo: quem se mantivesse quieto sob o olhar do rei receberia como prêmio uma pensão.
A tentação era grande. E, enquanto ia sendo construído aquele sonho de jardins e salões a perder de vista, a nobreza afluía para usufruir uma vida brilhante e parasitária. A formação desse núcleo de ociosos em Versalhes mudaria o panorama intelectual da França. Abandonados os hábitos antigos, era preciso matar o tempo de outra forma. A nobreza agora lia, organizava concursos, interessava-se por ocultismo e filosofia.
O espírito versalhês não se fez em um dia. Na infância de Voltaire, ainda se estava formando. E nessa época Ninon de Lenclos, bela e inteligente cortesã francesa, ao sentir que envelhecia recolheu-se numa cidadezinha de província. Havia pouco se mudara para ali a família Arouet, e o olho treinado da cortesã distinguiu no menino François os ‘sintomas’ do jovem literato. Acabou deixando-lhe uma herança de 2 mil francos com a condição de que fossem gastos em livros. E assim François mergulhou nas leituras que determinariam o curso de sua vida.
Aos dez anos, em 1704, entrou para o colégio de jesuítas Louis-le-Grand, em Paris. Terminado o curso, matriculou-se na faculdade de Direito. Mas não ia às aulas. Freqüentava tavernas, perseguia as criadas e embebedava-se com relativa assiduidade. Para tirá-lo da libertinagem, o pai arrumou-lhe o emprego de secretário de um parente: o marquês de Châteaunneuf, que estava prestes a embarcar para Haia, em 1713. Na Holanda, François não arriscou um tostão pela glória de seu rei. Apaixonou-se por Pimpette, graciosa filha de um exilado. Pilhado em flagrante, foi obrigado a voltar para Paris em 1715, aos 21 anos.
Seu regresso coincidiu com a morte de Luís XIV, o “Rei-Sol”. Sob a regência liberal do duque de Orléans - já que Luís XV, o herdeiro do trono, era muito menino para governar – o estilo de vida de Versalhes e Paris, antes refreado pela autoridade de Luís XIV, eclodiu em mil cintilações.
Magrinho, espirituoso e rápido improvisador, o jovem Arouet logo se introduziu nesse ambiente muito à vontade, e não tardou a sentir o sabor do sucesso mundano. Mas esse sucesso tornava sua língua cada vez mais ferina. Todas as boas anedotas que corriam sobre o duque de Orléans lhe eram atribuídas. E custaram-lhe a liberdade. Em 16 de abril de 1717, aos 23 anos, François foi levado à
Bastilha, famoso cárcere parisiense onde se encontravam os opositores políticos, intelectuais rebeldes e simples desafetos dos amigos do monarca.
Nos onze meses de cárcere, François escreveu uma peça de teatro – Édipo – e um longo poema épico – Henriade. Durante esse período adotou o pseudônimo de Voltaire, cuja origem jamais explicou [em francês, a palavra significa ‘poltona de enconsto alto’]. Mas prender um poeta por tempo excessivo tornaria o regente impopular entre os elegantes. Achando que a lição terminara, o duque ordenou a soltura de Voltaire e destinou-lhe uma razoável pensão anual.
A Bastilha não rendeu a Voltaire apenas a pensão. Édipo foi o
grande sucesso teatral da temporada. Com o dinheiro das apresentações, fez investimentos. Nunca mais teria dificuldades financeiras. O pai, que morrera em 1722, quando Voltaire contava trinta anos, podia repousar sossegado.Embriagado pelo sucesso, lisonjeado por um séquito de aduladores, encenou sua segunda peça teatral: Artemire. A peça foi um fracasso, e as luzes se apagaram em torno de Voltaire, que começou a definhar. Em pleno declínio físico, contraiu varíola e entrou em estado de coma, do qual emergiu alguns dias depois para descobri que Henriade o tornara novamente popular.
Em 1726, durante um juntar no castelo do duque de Sully, o Cavalheiro de Rohan perguntou em tom de desafio: “Quem é esse sujeito que fala tão alto?”. “Alguém, caro senhor”, respondeu Voltaire, “que não precisa de um grande nome, porque faz respeitar aquele que possui”. O cavaleiro engoliu a afronta, mas enviou seus lacaios para espancar Voltaire à saída da recepção. No dia seguinte, coberto de ataduras, o poeta atravessou o teatro até o camarote do cavalheiro e desafiou-o para um duelo. Um nobre, contudo, não se batia com literatos; preferia encarcerá-los. Assim, Voltaire retornou à Bastilha, onde lhe ofereceram duas opções: permanecer nela ou emigrar para a Inglaterra. Escolheu a segunda.
A Inglaterra desse período era muito diferente da França. Ao contrário da França, a nobreza não constituía uma casta fechada. Voltaire tornou-se amigo do lorde Bolingbroke, nobre, comerciante e intelectual e certa reputação e travou conhecimento com os principais literatos do momento, entre eles Jonathan Swift.
A liberdade com que Bolingbroke, Swift, Pope, Locke, Berkeley e tantos outros filósofos e literatos discutiam religião e política deixou Voltaire perplexo. Do outro lado do canal da Mancha, esses autores estariam na Bastilha antes mesmo de pensar em publicar seus livros. O que Voltaire presenciava naqueles animados serões era o desabrochar do
Iluminismo.
Em 1729, serenados os ânimos, Voltaire retornou a Paris. Estava com 35 anos e era mais famoso por sua língua ferina que por sua pena. E provavelmente teria continuado por muito tempo assim se um editor, sem sua permissão, não resolvesse publicar em 1734, as Cartas sobre os Ingleses, que ele escrevera quando estava exilado na Inglaterra, com o título de Cartas Filosóficas.
O Parlamento de Paris mandou queimar o livro por considerá-lo escandaloso, contrário à religião e à moral. Pressentindo o cheiro da Bastilha, Voltaire resolveu escapar a tempo. E, para amenizar o isolamento, levou consigo Êmilie de Breteuil, marquesa de Châtelet.
No ano seguinte, por influência de amigos na corte, a condenação foi revogada, mas Voltaire continuava indesejável em Versalhes, e permaneceu no Castelo de Cirey, propriedade da marquesa Émilie de Breteuil, que despertara nele um amor sincero.E certamente também uma grande admiração.
De quando em quando Voltaire aparecia em Paris, para em seguida ser visto em misteriosas viagens à Bélgica, Holanda e à corte prussiana, onde se fizera amigo de Frederico II. Prestando serviços de diplomata oficioso, tentava recuperar as boas graças de Versalhes. Em Cirey, pela segunda vez desde a infância, Voltaire se lançou com grande empenho e entusiasmo à literatura.
Ao mesmo tempo que criava peças para teatro, iniciou um de seus trabalhos mais sérios – O século de Luís XV, em que pretendia revelar o sentido da história. Voltaire mal iniciara essa obra quando o cardeal de Fleury, conselheiro do rei, informou-o de que considerava ofensiva esta apologia de um rei que não teve como primeiro-ministro um príncipe da Igreja. E o autor, obediente, trancou a chave de seu manuscrito, para só publicá-lo em 1751.
Morto o cardeal de Fleury,
madame de Pompadour tornou-se a primeira influência na corte. Velha amiga e confidente do poeta, conseguiu-lhe o cargo de historiógrafo real, o que lhe permitiu reunir enorme documentação, o título de fidalgo e, finalmente, em 1746, um lugar na Academia.
Por essa época, Voltaire inaugurou um novo gênero literário: o conto filosófico, e passou a publicar alguns deles ao longo dos anos seguintes. Esses pequenos ‘romances’, como ele os chamava, constituem, juntamente com seus artigos da Enciclopédia, que ele reelaborou e ampliou para Dicionário Filosófico (1764), a parte mais viva e atual de sua obra.
Zadig (1747), Micrômegas (1752) e O Ingênuo (1767) têm em comum uma notável construção. Nada de supérfulo. São descarnados, puro diálogo e ação. Com uma veia cínica e cética na narração que revela o conhecimento os textos de Swift, desfilam a corrupção dos funcionários, os amores eternos que duram duas semanas, as discussões teológicas que terminam em massacres.
Em 1749, morria a marquesa de Châtelet, que Voltaire abandonara havia algum tempo em troca da vida versalhesa. Todavia, a morte da amiga abalou-o profundamente. A vida na França tornou-se amarga, e o poeta aceitou o convite para visitar a corte prussiana.
Frederico II, herdeiro do melhor Exército da Europa, era um príncipe muito especial. Admirador da França e do Iluminismo, desejoso de se tornar um clássico da língua francesa, importava a peso de ouro intelectuais da França para a sua corte. Entre eles, Voltaire.
Mas em pouco tempo o rei e o escritor se desentenderam. Voltaire devolveu-lhe a chave de camareiro, a fita da Ordem de Mérito e procurou regressar à França em 1754. Mas em Frankfurt foi detido pelos soldados reais. Esquecera de devolver um poema satírico de autoria de Sua Majestade, que não queria torná-lo público. O poema, porém, se perdera, e Voltaire permaneceu prisioneiro por duas semanas, até que se encontrou o manuscrito; só então ele pôde partir. Mas não queria voltar à França imediatamente. Preferiu adquirir uma propriedade perto de Genebra, na Suíça. Em Lês Délice, seu novo lar, escreveu o Ensaio sobre os Costumes e o Espírito dos Povos, em 1756, primeiro grande trabalho da historiografia moderna, que tenta mostrar como as sociedades evoluíram da barbárie para a civilização.
Nessa mesma época, juntou-se a D’Holbach, Condillac, Condorcet, Helvetius, Buffon, Montesquieu e iniciou a redação da Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das Artes e Ofícios. Sob a direção de Diderot, essa obra se tornaria a publicação mais importante do século XVIII, a bíblia do Iluminismo. Os verbetes de Voltaire estão entre os mais brilhantes da obra, mas não entre os mais profundos. Um deles, entretanto, sobre a cidade de Genebra – onde os protestantes haviam proibido os espetáculos de teatro - provocou grande tumulto e obrigou-o a mudar de residência. Manteve Lês Délices, mas comprou outra fazenda, em Ferney, na França, próximo à fronteira belga.
No dia de Todos os Santos do ano de 1755, um terremoto em Lisboa fez desabar igrejas. Trinta mil pessoas ficaram sepultadas, sob os escombros, e o clero francês explicava dos púlpitos que Deus castigara dessa forma o povo de Portugal por seus pecados.
Leibniz, grande matemático e filósofo, por seu lado, sustentara que ‘vivemos no melhor dos mundos possíveis’. A resposta de Voltaire resultou no melhor de seus ‘contos filosóficos’: Cândido, ou O Otimismo, publicado em 1759, em que Leibniz aparece sob a caricatura do dr.Pangloss. Enquanto o infeliz Cândido é vítima de injustiças, prepotências e loucuras, o dr.Pangloss garante-lhe que há motivos para ele se alegrar, já que vive no melhor dos mundos possíveis. Moral da história: o melhor é cultivar nosso jardim particular e deixar que o mundo enlouqueça lá fora.
Foi precisamente o que Voltaire procurou fazer em Ferney. Transformou a fazenda maltratada numa gleba produtiva, distribuiu justiça, dirigiu a irrigação, abriu escolas. E teria continuado nessas atividades se não tivesse recebido, num dia incerto de 1761, a visita de uma família aterrorizada, contando uma fúnebre
história de perseguição. Um jovem suicidara-se em Tolouse. Havia, contudo, uma lei pela qual o corpo dos suicidas deveria ser arrastado pelas ruas e, depois, enforcado em público. O pai do rapaz, Jean Calas, arranjara tudo pra que o suicídio parecesse morte natural e o corpo do filho fosse respeitado. Mas Calas era protestante, e acabou sendo acusado de ter assassinado o filho para que não se convertesse ao catolicismo. Foi preso, torturado e condenado à morte.
Enquanto Voltaire defendia a família e a memória de Jean Calas, o corpo de uma certa Elisabeth Sirven foi encontrado num poço, no ano de 1762. A família também era protestante, e o juiz acusou os pais de terem matado a jovem. Voltaire lançou uma campanha, contratou advogados, redigiu defesas e enviou-as para os tribunais. E foi nessa época que escreveu o Tratado sobre a Tolerância, publicado em 1763.
Esses casos ainda estavam sob a ordem do dia quando, em 1767, o jovem La Barre, de família protestante, foi acusado de mutilar crucifixos. Ao ser preso, encontraram em seu poder um exemplar do Dicionário Filosófico, escrito com a intenção de ridicularizar o fanatismo católico.
Do caso La Barre em diante, a atividade de Voltaire assemelhou-se à erupção de um vulcão: inundou o país de panfletos, livros, ironias, apelos. Todas as suas cartas terminavam com um veemente apelo: ‘Esmagai o infame’. Voltaire passou a ser aclamado pelo povo, pelo clero e pelos cortesãos iluministas o apóstolo do progresso. Tomado de gosto pelo papel de ‘defensor público’, passou a lutar por todos os que lhe pareciam injustiçados.
Morto Luís XV, nada mais o impedia de retornar a Paris. Sua volta foi uma apoteose. Mas a viagem desgastou-lhe as forças, e ele acabou recebendo as centenas de visitantes retido no leito. Um padre foi receber sua confissão ‘Quem o enviou’?, perguntou o enfermo. ‘Deus em pessoa’, respondeu o padre. ‘Bem, vejamos então as credenciais…’.
O melhor era chamar alguém que conhecesse Voltaire. Mas um abade de suas relações recusou-se a ouvir a confissão se ele não assinasse sua submissão completa à Igreja Católica. O doente despachou-o, chamou secretário e ditou uma declaração: ‘Morro amando Deus, amando meus amigos, não odiando meus inimigos e detestando a superstição. 28 de fevereiro de 1778’.
Mas, em vez de morrer, fez triunfal visita à Academia Francesa. Compareceu à Comédie, onde foi aplaudido durante longos vinte minutos. Cobriram-no com uma coroa de louros. Era a glória que ainda mantinha vivo aquele moribundo.
Por fim, entrou em agonia e lutou contra a morte como se travasse uma batalha corporal. Gritava como um possesso e ainda teve forças para expulsar do quarto o último padre. Mas em 30 de maio teve a batalha vencida. Voltaire, com 84 nos, mesmo morto, ainda daria algum trabalho: como em Paris recusaram-lhe sepultura cristã, os amigos colocaram o corpo numa carruagem, fazendo-o passar por vivo, e levaram-no sentado até Salier, onde foi enterrado. Doze anos depois a Assembléia Nacional da Revolução obrigou Luís XVI a trasladar o corpo para o Panteão de Paris, Setecentas mil pessoas seguiram o cortejo. Sobre seu túmulo, Voltaire pedira que escrevessem apenas uma frase: “Ele defendeu Calas”.

Fonte: Vida e Obra de Voltaire, Ed. Nova Cultural, 1996

Fonte:
http://palavrassussurradas.net/?p=60 e http://www.consciencia.org/voltaire.shtml

Jean-Jacques Rousseau - Perfil biográfico
(Nascimento: 28/6/1712, Genebra, Suíça – Morte: 2/7/1778, Ermenonville, França)


Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 28 de Junho de 1712Ermenonville, 2 de Julho de 1778) foi um filósofo suíço, escritor, teórico político e um compositor musical autodidata. Foi uma das figuras marcantes do Iluminismo francês.
Ao defender que todos os homens nascem livres, e a liberdade faz parte da natureza do homem, Rousseau inspirou todos os movimentos que visavam uma busca pela liberdade.
Filósofo suíço, natural de
Genebra, não chegou a conhecer a própria mãe, que faleceu após o trabalho de parto. Era filho do relojoeiro calvinista Isaak Rousseau, cujo avô era um huguenote e tinha fugido da França. O pai de Rousseau morreu quando ele tinha 10 anos, de modo que ele teve uma juventude agitada. Ele morou em lugares diferentes e soube desde pequeno o que era ser explorado, deparando-se com a necessidade de trabalhar.
O menino Jean-Jacques aprendeu a ler e a escrever ainda muito novo, influenciado pelo pai. Mais tarde, fora aluno do Pastor Lambercier, de rígida disciplina moral e religiosa. Precisou trabalhar desde cedo e sentira o que significava ser maltratado.
Relatou, no fim de sua vida, o quanto gostava dos passeios pelos campos e bosques. Vaguear pela natureza era um grande prazer na vida do menino Rousseau.
Na adolescência, encontrando os portões da cidade fechados, quando voltava de uma de suas saídas, opta por vagar pelo mundo. Acaba tendo como amante uma rica senhora (a madame de Warens) e, sob seus cuidados, acaba estudando música e filosofia. Longe de sua protetora, que agora estava em uma situação financeira ruim e com outro amante, ele parte para
Paris, em 1742.
Havia inovado muitas coisas no campo da música, o que lhe rendeu um convite de
Diderot para que escrevesse sobre isso na famosa Enciclopédia. Além disso, obteve sucesso com uma de suas óperas, intitulada O Adivinho da Vila. Aos 37 anos, participando de um concurso da academia de Dijon cujo o tema era: "O restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?", torna-se famoso ao escrever respondendo de forma negativa o Discurso Sobre as Ciências e as Artes, ganhando o prêmio em 1750.
Após isso, Rousseau, então famoso na elite parisiense, é convidado para participar de discussões e jantares para expôr suas idéias. Entretanto, aquele ambiente não o agradava. Ao contrário de seu grande rival Voltaire, que também não tinha o sangue azul, não gostava de tal ambiente.
Rousseau tem 5 filhos com sua amante de Paris, chamada Thérèse Levasseur, porém, acaba por colocá-los todos em um
orfanato. Uma ironia, já que anos depois escreve o livro Emílio, ou Da Educação que ensina sobre como deve-se educar as crianças.
O que escreve como peça mestra do Emílio, a "Profissão de Fé do Vigário Saboiano", acarretar-lhe-á perseguições e retaliações tanto em
Paris como em Genebra. Chega a ter obras queimadas. Rousseau rejeita a religião revelada e é fortemente censurado. Era adepto de uma religião natural, em que o ser humano poderia encontrar Deus em seu próprio coração.
Entretanto, seu romance
A Nova Heloísa mostra-o como defensor da moral e da justiça divina. Apesar de tudo, o filósofo era um espiritualista e terá, por isso e entre outras coisas, como principal inimigo Voltaire, outro grande iluminista. Em sua obra Confissões, responde a muitas acusações de François-Marie Arouet (Voltaire). No fundo, Jean-Jacques Rousseau revela-se um cristão rebelado, desconfiado das interpretações eclesiásticas sobre os Evangelhos. Sempre proferia uma frase: "Quantos homens entre mim e Deus!", o que atraía a ira tanto de católicos como de protestantes.
Politicamente, expõe suas idéias no Contrato Social. Procura um Estado social legítimo, próximo da vontade geral e distante da corrupção. A soberania do poder, para ele, deve estar nas mãos do povo, através do corpo político dos cidadãos. Segundo suas idéias, a população tem que tomar cuidado ao transformar seus direitos naturais em direitos civis, afinal "o homem nasce bom e a sociedade o corrompe".
Depois de toda uma produção intelectual, suas fugas às perseguições e uma vida de aventuras e de errância, Rousseau passa a levar uma vida retirada e solitária. Por opção, ele foge dos outros homens e vive uma vida de certa
misantropia. Nesta época, ele dedica-se à natureza, que sempre foi uma de suas paixões. Seu grande interesse por botânica, o leva a recolher espécie e montar um herbário. Seus relatos desta época estão no livro "Devaneios de Caminhante Solitário".
Rousseau termina por falecer aos 66 anos, onde estava hospedado, no
castelo de Ermenonville. Entretanto, até os dias de hoje, ele ainda é um provocador, que leva muitos a acreditarem na bondade natural do ser humano e de como a sociedade acaba destruindo essa bondade. E, por muitos, não é esquecido por sua forte crítica à propriedade privada, como causa da miséria entre as pessoas. Rousseau foi um iluminista à parte, talvez pelas suas próprias experiências desde a infância.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O nazifascismo na sala de aula: um tema delicado




É comum, quando se analisa o nazifascismo, incorrer na tentação de demonizar os líderes desses movimentos, responsabilizando-os quase exclusivamente pelos males causados por suas delirantes concepções. Essa visão maniqueísta é bastante ressaltada pelos meios de comunicação de massa, e é ela que os alunos trazem para a sala de aula. Não se trata aqui de inocentar Hitler e Mussolini, mas apontar que eles foram agentes que souberam incorporar um sentimento que estava no ar.
Cabe ao professor de história ampliar esse debate, arrolando o feixe de fatores que levaram à ascensão dessas doutrinas políticas radicais. A falência do calitalismo liberal, a incapacidade do sistema democrático em arbitrar os problemas sociais, a onipresença do racismo "científico", que permeava as mentalidades de pessoas do mundo todo, inclusive no Brasil (como o célebre Monteiro Lobato, entusiasta da eugenia). Sem falar no papel do comunismo, também em ascensão no período, levando as elites ao pânico, tornando-as fomentadoras dos radicalismos da ultra-direita. Todas essas considerações podem ser encontradas de maneira mais elaborada na obra de Mark Mazower, intitulada "O Continente Sombrio", que se dedica a apontar os erros e omissões da Europa democrática no período entreguerras.
Clarificar cada um desses pontos serve para enriquecer a discussão.
Também contribui para avivar o debate a análise de trechos das obras de Hitler e de Mussolini, que mostram de maneira contundente as ideologias em ação.
Mas sem dúvida o que mais marca nesse tema é a questão do antissemitismo alemão, fartamente ilustrado em obras cinematográficas belíssimas e impactantes, como "A Lista de Schindler" e "O Pianista". Usá-las como ferramentas pedagógicas, no entanto, exige muito tato, uma vez que trazem passagens chocantes de violência gráfica explícita, que podem indispor os espectadores mais sensíveis. A intenção dos diretores era exatamente esta, creio, uma vez que desejavam expor os horrores do holocausto a uma sociedade que tende ao esquecimento crônico e à repetição dos males e erros passados.
Particularmente, prefiro usar a obra de Roman Polanski, que pelo menos tem um fim positivo e uma mensagem de esperança.
Todos os anos, quando concluo a abordagem desse tema, torço para que ele sirva como uma "vacina", inoculando a aversão à intolerância de todo tipo em nossos jovens.

Possibilidades pedagógicas da nova descoberta...

Descoberto na Alemanha, o fóssil da criatura que viveu há 47 milhões de anos pode subsidiar debates ricos em sala de aula. Essa novidade explicita o caráter de "obra aberta" da História - e das ciências em geral - sempre desafiada a rever conceitos e reorganizar explicações. Oferece um elo com a biologia, servindo para discutir o polêmico tema do evolucionismo, uma confluência da história com a ciência da vida. O fato de ser novidade e estar sendo noticiado maciçamente nos meios de comunicação em massa pode ser aproveitado.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Para tratar da Grécia Antiga...


Esse pequeno texto é parte de um discurso de Péricles, o grande governante de Atenas. Ele versa sobre a democracia, sua natureza e suas possibilidades. É uma boa introdução para o tema Grécia e dá oportunidade para discutir esse sistema político, podendo inclusive subsidiar reflexões sobre os atuais rumos políticos.



Temos um sistema político (...) que se chama democracia, pois se trata de um regime concebido, não para uma minoria, mas para as massas. Em virtude das leis (...) todas as pessoas são cidadãos iguais. Por outro lado, é conforme a consideração de que goza em tal ou qual domínio que cada um é preferido para a gestão dos nossos negócios públicos, menos por causa da sua classe social do que pelo seu mérito. E nada importa a pobreza: se alguém pode prestar serviço à cidade, não é disso impedido pela obscuridade da sua categoria. É como homens livres que administramos o Estado (...). Obedecemos aos magistrados sucessivos, às leis e, sobretudo, às que foram instituídas para socorro dos oprimidos. Para tudo dizer numa só palavra: a nossa cidade, no seu conjunto, é a escola da Grécia.


Dircurso de Péricles, em 430 a.c. In: FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de História. V. 1, Plátano, 1975.p.68

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Dica de Filme: "O Novo Mundo"


Narrada de maneira poética, a saga da fundação de Jamestown serve como pano de fundo para se discutir os contatos entre europeus e indígenas. Como pólos desse contato, temos as figuras de John Smith (Colin Farrell) e Pocahontas (Q'orianka Kilcher).

O filme é uma poderosa ferramenta pedagógica, uma vez que marca claramente as diferenças de concepções de mundo dessas duas culturas em contato. O contraste é gritante, e talvez tenha sido essa a intenção do diretor (Terrence Malick): a sociedade harmoniosa dos índios se choca com a brutalidade e a ganância dos europeus.

Smith e Pocahontas vêem-se diante de um dilema abissal: seguir as tradições de seus povos ou, em nome do amor, abandonar suas antigas crenças e lançar-se ao desconhecido. Ao contrário da amada, Smith permanece fiel a sua cultura...

Usei essa obra como encerramento da SA-4 do 2º ano do Ensino Médio, que tratava dos contatos culturais entre os europeus e outros povos no contexto das grandes navegações, e não me arrependi: debates muito ricos surgiram em função dela.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Ainda sobre a memória...

"Assim que nascemos já começamos a morrer. Cinqüenta, sessenta, oitenta anos, mas tudo é agonia, tudo é ir morrendo pouco a pouco, como se gasta um sabão sem que caiam os pedaços. De repente, um galhinho de espumas se separa e permanece. São as lembranças. Não estão em parte alguma, não tem corpo nem alma, ninguém pode vê-las, e são duras como o ferro. Se quisermos saber de que maneira estamos feitos, temos que olhar nelas como um espelho. Graças ao saber como fomos é que somos. Se não fosse pelas lembranças, não estaríamos aqui nem em parte alguma. O caminho percorrido, esse é o caminho. O que estamos percorrendo nada mais é do que um pedaço de terra debaixo dos pés. Um morto não seria mais que um homem que sai do baile e não volta a entrar, não fosse pelas lembranças, que ficam dando voltas ao redor do vazio que deixou no ar o homem morto. É então quando a gente percebe o que significa um homem. A gente estava acreditando que não era mais do que isso: uma cabeça com o que tem dentro dela assomando pelos olhos, umas mãos se mexendo como aranhas na frente do peito, e uns pés que servem para não ficar sempre olhando a mesma coisa. E não era assim. Não era assim porque tudo aquilo começa a se transformar em carniça quieta, e no entanto o homem continua vivo – com seus sorrisos e suas fomes, e seu modo de dizer que está com frio ou que gosta de fumar em jejum – nas lembranças das pessoas. Você não pode matar o jeito que tinha aquele homem de pôr as mãos sobre a cabeça de seus filhos, enquanto fiquem as cabeças de seus filhos andando pelo mundo. Não pode matar o jeito que tinha de pegar o cigarro entre os lábios, e que sua mulher continua vendo, como se estivesse ali, fumando. "


Trecho do conto “TOBIAS”, de Felix Pita Rodriguez

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sobre a História Oral

"Antes do século XX, o enfoque da História era essencialmente político: uma documentação da luta pelo poder, onde pouca atenção mereceram as vidas das pessoas comuns. O tempo histórico dividia-se segundo reinados e dinastias. Isso acontecia porque os historiadores, eles mesmos pertencentes às classes que administravam e governavam, consideravam que isto era o que mais importava. A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem companheiros de trabalho, traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. Propicia o contato entre pessoas de diferentes classes sociais e diferentes gerações."
Paul Thompson - A Voz do Passado - História Oral

Elite Intelectual Brasileira...

“Aos olhos da população, a imagem do Estado passou a ser a de um monstro perigosíssimo porém meio cego, a de um tirano violento mas meio caduco, de quem se podia rir pelas costas. Os intelectuais, por sua vez, eram poucos; a consciência deles ficava, inevitavelmente, dividida. Liam com simpatia, às vezes com entusiasmo, as doutrinas liberais elaboradas na Europa; no entanto, viviam em ambientes familiares mais ou menos privilegiados, frequentemente servidos por escravos. Eram obrigados a conciliar a adesão a uma ideologia avançada com a aceitação quotidiana de instituições espantosamente retrógradas. Da perspectiva em que se achavam colocados, os intelectuais ficavam praticamente impossibilitados de compreender a fundo as contradições da sociedade em que viviam.”

BARÃO DE ITARARÉ - O HUMORISTA DA DEMOCRACIA - Leandro Konder

Charles Mingus


“Watts tinha sua própria hierarquia social, como qualquer comunidade americana média de negros que trabalhavam[...]. Alguns dos rapazes, três, quatro ou cinco anos mais velhos escolhiam Charles como o excluído dos excluídos porque era uma espécie de mestiço, mais claro que alguns, mas não claro o suficiente para pertencer ao grupo dos negros bonitos e elegantes.[...] Não havia realmente cor de pele como a dele. Então deixou de queimar os cabelos com o pente-quente de alisar da sua mãe e passou a molhá-los para que ficassem enroscados com o ar autêntico, natural e digno, crespo e lanoso. Ninguém o aceitou, cabelos crespos ou não.

O ódio negro que pairava no ar contra o branco era canalizado para ele, um mestiço de merda, falso e amarelado. Outros podiam dar uma de bamba e se chamar de crioulo filho-da-mãe ou negro cabeça de palha de aço, mas não engoliam nenhuma conversa tipo “meu irmão” da parte dele, coisa que descobriu de maneira cruel numa festa quando entrou e cumprimentou Snookum Young com um “Olá, negão!”, e se viu com uma navalha tentando retalhar o seu rosto. Podia ter sido o dia de sua morte. Ficou tão cauteloso que depois disso chamava o quadro-negro de quadro-de-giz.

Sempre que olhava para o espelho e perguntava “O que sou?”, achava que podia ver um número de traços: índio, africano, mexicano, asiático, e uma certa quantidade de branco de uma fonte sobre a qual seu pai se vangloriara. Queria ser uma coisa ou outra, mas era um pouco de tudo, inteiramente nada, de raça alguma, de nenhum, país, bandeira ou amizade.

Então Charles passou a usar cabelos alisados e a circular com outros mestiços, os poucos japoneses, mexicanos, judeus e gregos que havia no Jordan.[...] Eu entendi o que ele estava tentando fazer. Conheci outras poucas pessoas que viviam naquela ilha sem cor.”


“O jazz não foi feito para dar milhões a ninguém, mas é aí que mora o problema. Aqueles que escolheram praticá-lo da maneira mais pura estão na rua da amargura comigo e com Bird, e estamos na chuva para nos encharcar. Eu me dava muito melhor quando ninguém conhecia o meu nome, só os músicos. Pode apostar que deixa de ser jazz quando o submundo entra na jogada e o administra exclusivamente para fazer grana e até tira da jogada os agentes de cor. Calam a tua boca, enganam você na contabilidade das vendas de discos e, se você não chiar, dizem ao mundo que é um verdadeiro gênio. Mas se não se dobrar a eles, vão espalhar que você é um encrenqueiro, como fizeram comigo. E então, se um dono de clube honesto quiser contratá-lo para fazer umas apresentações, vão dizer que você não está disponível, ou que não atrai platéia, ou que vai arrasar o clube como se fosse um gorila. E você não vai ficar sabendo de nada disso, a não ser por acaso.”


SAINDO DA SARJETA - AUTOBIOGRAFIA DE CHARLES MINGUS

Kurt Vonnegut e a História: um jeito diferente de encarar as coisas...


Muitas vezes um literato ou escritor consegue relatar um acontecimento histórico com mais clareza e verdade que os próprios historiadores. Um exemplo é a irônica descrição que Kurt Vonnegut fez do processo de “colonização” da América pelos europeus, transcrito abaixo:
“Professores de crianças escreviam a seguinte data nos quadros-negros ano após ano, dizendo que os alunos a memorizassem com orgulho e alegria: 1492.

Os professores diziam que naquele ano o continente em que vivam havia sido descoberto pelos seres humanos. Na verdade, milhões de seres humanos já estavam vivendo vidas plenas e inventivas no continente em 1492. Esse foi simplesmente o ano em que piratas dos mares começaram a enganá-los, roubá-los e matá-los.

E havia outra tolice ruim que se ensinava às crianças: que os piratas dos mares acabaram criando um governo que se tornou um farol de liberdade a seres humanos de todos os lugares. Havia retratos e estátuas desse suposto farol imaginário para que as crianças vissem. Era como uma casquinha de sorvete pegando fogo. Na verdade, os piratas do mar que tinham mais a ver com a criação do novo governo possuíam escravos humanos. Eles usavam seres humanos como maquinário e, mesmo depois que a escravatura foi abolida, por ser tão constrangedora, eles e seus descendentes seguiram vendo os seres humanos comuns como máquinas. Os piratas do mar eram brancos. As pessoas que já viviam no continente quando os piratas chegaram eram cor de cobre. Quando a escravidão foi introduzida no continente, os escravos eram negros.

Cor era tudo.

Eis como os piratas conseguiram tomar tudo o que quiseram de todas as pessoas: eles tinham os melhores barcos do mundo, eram mais malvados do que qualquer um e tinham a pólvora, que era uma mistura de potássio, carvão e enxofre. Encostavam fogo nesse pó aparentemente inofensivo e ele violentamente se transformava em gás. Esse gás soprava projéteis de dentro de tubos de metal em velocidades incríveis. Os projéteis atravessavam a carne e os ossos com muita facilidade; assim, os piratas podiam destruir os fios, as tripas e os canos de um ser humano teimoso, mesmo quando ele estivesse muito, muito longe.

A principal arma dos piratas do mar, no entanto, era a capacidade de surpreender. Ninguém era capaz de acreditar, até que fosse tarde demais, o quanto eles eram cruéis e gananciosos.”


CAFÉ-DA-MANHÃ DOS CAMPEÕES - Kurt Vonnegut

terça-feira, 12 de maio de 2009

VISÕES DA AMÉRICA DO SUL


“A voz do professor adquiria um ar estranhamente inspirado sempre que falava a respeito de seus índios, a antes rebelde raça aimará, famosa por deter os exércitos incas durante séculos, e mudava para um desânimo profundo quando falava da condição atual dos índios, brutalizados pela civilização moderna. Ou quando falava dos mestiços impuros, seus terríveis inimigos, que se vingam dos aimarás por sua própria posição ambígua, nem peixe nem ave.

Ele nos falou da necessidade de montar escolas para ajudar as pessoas a valorizar seu próprio mundo e capacitá-las a desempenhar um papel digno dentro dele; da importância de se reformar completamente o atual sistema de educação, que, nas raras ocasiões em que oferece aos índios alguma educação (educação, claro está, de acordo com os critérios dos brancos), os preenche apenas com vergonha e ressentimento, deixando-os incapazes de ajudar seus irmãos índios e em uma tremenda desvantagem na sociedade branca, que lhes é hostil e não os quer aceitar.

O destino dessa gente infeliz é vegetar em algum serviço burocrático obscuro e morrer esperando que, graças ao poder milagroso de uma gota de sangue espanhol em suas veias, um ou outro de seus filhos possa, de alguma maneira, chegar ao objetivo aspirado por eles até o fim de seus dias. Enquanto falava, seu punho compulsivamente apertado denunciava o espírito de um homem atormentado por seu próprio infortúnio e por aquele mesmo desejo que ele atribuía a seu exemplo hipotético.

Não era ele, na verdade, o típico produto de uma educação que prejudica a pessoa que a recebe, apenas para demonstrar o poder mágico daquela preciosa ‘gota de sangue’, mesmo que esta tenha vindo de alguma pobre mulher mestiça vendida a um cacique local ou tenha sido resultado do estupro de uma serviçal índia pelo senhor espanhol bêbado?”
"De moto pela América do Sul - Diário de Viagem" Ernesto Guevara de la Sierna

domingo, 10 de maio de 2009

Dica de Filme: A Língua das Borboletas



Dirigido por José Luiz Cuerda, o filme espanhol trata do pouco abordado tema "Guerra Civil Espanhola". A história se passa num pequeno vilarejo da Galícia, às vesperas da guerra. O clima é de liberdade, já que a república está no poder e, pela primeira vez, os espanhóis tem voz ativa nos destinos do país.


Neste cenário nos são apresentados os protagonistas: Moncho, um menino de 7 anos que é filho de um alfaiate republicano, e seu professor Dom Gregório, um livre-pensador anti-autoritário. Destaca-se também a mãe do menino, personagem que está na fronteira entre aderir ao republicanismo, cujos princípios lhe agradam, ou prudentemente se agarrar à onda autoritária, para proteger a família da sanha reacionária.


Do ponto de vista da história, o filme é valioso ao mostrar o contexto pré-guerra civil. Percebemos as contradições entre os que estavam descontentes com o que consideravam "liberdade excessiva", e que seriam os pricipais fomentadores das forças de Franco, e os que abraçaram a República com todas as suas forças. O fillme desenha essa cisão em andamento, que desembocaria na sangrenta guerra fratricida.


Mas o filme vai além, e faz algo muito difícil, raramente atingido por filmes do gênero: consegue tratar com profundidade e coerência tanto o contexto histórico quanto a vida pessoal e familiar (digamos, a microhistória) dos que ali estavam presentes. O diretor nunca deixa de contemplar essas dimensões, talvez porque, intencionalmente, não as trata como duas coisas, mas as vê como intimamente ligadas: são as vidas individuais, escolhas, sentimentos e ações das pessoas que determinam a "história grande", e, em contrapartida, são por ela influenciadas.


Poética, reveladora, e com um final impactante, a obra merece ser vista por professores de História, estudantes e por todos os que gostem de bom cinema.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

LEADBELLY


"A voz que canta neste álbum possui os poderes mais elementares – emoção e humor – e o home à qual pertence foi intimamente familiarizado com as paixões que referiu-se em sua canções. Huddie Ledbetter, conhecido como Leadbelly, nasceu em Louisiana, nos anos de 1880. Morreu em 6 de Dezembro de 1949 no Hospital Bellevue, de Nova Iorque, do mesmo mal que matou Lou Gehring [esclerose lateral amiotrófica]. Durante os 60 anos de intervalo, levou uma vida repleta de violência, depravação, crime, cobiça e numerosos caminhos próximos da morte.
Leadbelly nasceu numa fazenda de seu pai, próximo a Mooringsport, na Louisiana. De acordo com suas próprias palavras, ele foi “um rapaz mau e terrível”. Com 15 anos foi acusado pela filha de um vizinho de ser pai de sua criança. Um ano mais tarde, quando a mesma moça, ainda solteira, engravidou novamente, a ira moral da comunidade forçou Leadbelly a fugir. Com a guitarra sobre o ombro e um Colt preso sob seu braço, Leadbelly foi para a cidade. Tentou Shreveport por algum tempo e depois foi para Dallas. Leadbelly conheceu um padrão de vida agradável. Nos outonos e verões trabalhou nas terras das fazendas ao leste de Dallas, arando e colhendo algodão. Durante os invernos levava uma vida tranqüila, cantando e tocando em salões de baile e casas suspeitas; mas havia a falta de sorte. Seus modos insolentes, seu temperamento agitado e sua maneira de tratar as mulheres deram-lhe inimigos. Numa ocasião, um rival pegou-o desprevenido e rachou sua cabeça com uma garrafa. Outra vez, cantava e dançava num salão, quando um assaltante enfiou uma faca em sua garganta, puxou a metade da lâmina e girou-a em torno do seu pescoço antes que Leadbelly o jogasse longe. Como resultado, uma cicatriz marcou, como um colar, em torno do seu pescoço, pelo resto de sua vida.
As mulheres apareciam em outro tipo de confusões. Como raramente encontrava resistência por parte delas, tornou-se arrogante e exigente ao mesmo tempo. Certa vez, em Marshall, uma delas repeliu-o e ele violentou-a. Por causa disso foi condenado a um ano na cadeia de Harrison County, mas, depois de três dias, pulou uma cerca e correu para a liberdade através de um campo de plantação.
Em outra ocasião, Leadbelly viajava com dois companheiros por um rio. A noite estava escura e eles estavam armados. Um dos rapazes começou a gracejar com o outro, dizendo que Leadbelly havia visto algo de sua garota. O companheiro, vexado, puxou sua arma ameaçadoramente, mas, antes que pudesse usá-la, Leadbelly atirou na sua cabeça. Desta vez pegou uma sentença de trinta anos, e falharam todos seus esforços para escapar. Também falhou uma tentativa de afogar-se num lago. Com o correr do tempo e bom comportamento, conseguiu tornar-se o chefe do melhor grupo dos trabalhadores da penitenciária.
Tornou-se, igualmente, o artista favorito dentre os presos. Nesta época, Leadbelly já tinha uma vasta coleção de blues, canções diversas, work songs, baladas e spirituals, que juntaram-se ao seu repertório de blues de prisão.
Tocando sua guitarra de 12 cordas e cantando com sua voz intensa e áspera, transformou este repertório em algo para ser ouvido. Uma ocasião, visitou a prisão o governador do Texas, Pat M. Neff, do qual diziam jamais ter perdoado qualquer homem. Leadbelly dançou, cantou e tocou para Neff, sua esposa e comitiva. O governador disse: “Leadbelly, vou libertá-lo algum dia, mas terá que ficar e tocar para mim”. Um ou dois dias antes de terminar seu mandato Neff enviou ordens para Leadbelly ser libertado; ele ficara preso 6 anos, sete meses e oito dias.
Dez anos depois Leadbelly foi preso novamente. Desta vez recebeu uma sentença de dez anos na Fazenda Estadual da Louisiana, em Angola, por esfaquear seis homens numa briga de rua (eles queriam tomar-lhe a sua vasilha de refeições para colocarem uísque nela).
Foi nessa ocasião que o conhecido pesquisador folclórico John Lomax, compromissado em gravar canções e diversos cantores para a Biblioteca do Congresso Americano, encontrou-o. Lomax e seu filho Alan trouxeram uma gravação de Leadbelly feita em alumínio, cantando num lado um pedido de perdão e, no outro, “Goodnight Irene” para o governador da Louisiana, O. K. Allen. Logo após, Leadbelly estava livre.
A conduta de Leadbelly na prisão foi exemplar. Os Lomax levaram-no em suas expedições para cantar nas prisões, pelo sul do país. Ele provou ser um companheiro e assistente digno de confiança, gentil e útil, exceto por seus desaparecimentos imprevisíveis, quando saía em busca de uísque e mulheres. De tempos em tempos, John Lomax realizava conferências em Harvard e outros honoráveis estabelecimentos de ensino; o canto e a execução de Leadbelly tornaram-se parte das mesmas. Os bacharelandos sentavam-se fascinados quando ele os advertia num aparte: “Jamais matem mulheres, ou isso será o seu fim”. Os Lomax levaram Leadbelly para Nova Iorque. A imprensa começou a escrever sobre ele, e o resto é história. Nos seus últimos anos, um homem alto e musculoso, de semblante temível e cabelos brancos, apresentou-se em concertos nos Estados Unidos e em Paris.
Em Hollywood, Leadbelly gravou essas doze faixas para a Capitol; cantou e tocou sua guitarra de doze cordas em Goodnight Irene, Take this Hammer, Ella Speed e outras de suas canções famosas. Ele também foi persuadido a gravar duas faixas do seu piano influenciado pelo ragtime, hoje duas raridades.
Poucos anos depois Leadbelly morria. A voz parou, o coração parou, as aflições, a agitação e o humor chegaram a um fim. Deixou como legado sua rara herança de excelentes gravações, entre elas estas 12 faixas importantes.
"


Texto encontrado na contracapa do álbum (LP) Capitol Jazz Classics Vol. 7, lançado no Brasil pela EMI em 1975. Não há referências à autoria do mesmo.



quinta-feira, 7 de maio de 2009

EM TEMPOS DE EPIDEMIA... UMA BOA DICA DE LEITURA


"A assustadora história das pestes e epidemias"


A aproximação de uma epidemia é precedida por um momento de pânico, que cresce na medida que chegam informações desencontradas das partes já infectadas. A proximidade com a morte é desconfortável, e leva a reações extremadas. É nesse momento que o homem mostra o que tem de pior e de melhor. Alguns buscam responsáveis, culpados, promovem banhos de sangue (quase sempre inocente). Outros revestem-se de caridade, compaixão e bons sentimentos e tentam ajudar o próximo, tratando e confortando os doentes e moribundos, mesmo que isso coloque em risco sua própria vida.

Uma vez superada a fase crítica da epidemia, entram em campo os que buscam explicar o ocorrido, tratando de analisar, com os olhos da razão ou da religião, as causas da enfermidade. Em geral, as duas visões se chocam...


O livro em questão traz uma narrativa instigante, que perfaz com maestria os passos tenebrosos de sete doenças infecciosas que acompanham a humanidade: peste bubônica, malária, tuberculose, hanseníase, varíola, cólera e Aids. A autora, Jeanette Farrel, busca mostrar as origens históricas dessas enfermidades e os impactos de sua disseminação entre os humanos. Do ponto de vista formal, o livro congrega vários aspectos que permitiriam classificá-lo como fruto da Nova História: recorre à narrativa, faz levantamentos sobre o imaginário e as mentalidades, apóia-se em outras ciências... É um livro legível, que não sofre do hermetismo, mal que atinge, infelizmente, a maioria das obras históricas.



A obra é recheada de trechos de textos e citações de cientistas, médicos e testemunhas das epidemias, o que a torna extremamente útil como material didático. Este livro está disponível em todas as escolas públicas do Estado de São Paulo, pois faz parte da Biblioteca do Professor.


Alguns trechos comentados:

O holandês Antony van Leeuwenhoek foi o responsável por desenvolver o sistema de lentes capazes de revelar aos olhos humanos a vida das criaturas muito pequenas: o microscópio. Em 9 de outubro de 1676, ele escreveu o trecho abaixo em uma carta:

“No ano de 1675, em meados de setembro... descobri criaturas vivas na água da chuva que ficara estagnada por alguns dias num novo barril... Isso me encorajou a investigar essa água mais atentamente, já que esses animais me pareciam aos olhos mais de dez mil vezes menores do que o animal de nome pulga-d’água, que se pode ver em movimento na água com a vista desarmada.”


Muitas pessoas visitavam o inventor para poderem observar com seus olhos o que liam e ouviam pelas ruas. Nessas ocasiões, van Leeuwenhoek mirava suas lentes para todo tipo de objeto: água do lago, do mar e da chuva, queijo, vinagre:

Vieram várias damas à minha casa, ansiosas para ver as pequenas enguias no vinagre, mas algumas ficavam tão enojadas com o espetáculo que juravam nunca mais usar vinagre. E se alguém contasse a essas pessoas no futuro que há mais dessas criaturas nos resíduos dos dentes da boca de um homem do que o total de homens em todo um reino? Especialmente naqueles que nunca limpavam os dentes.”



domingo, 3 de maio de 2009

A Era Tatcher e a aceitação do mal


Estes textos foram publicados hoje na Folha, e trazem uma análise da herança da Doutrina Tatcher, na Inglaterra, e seus desdobramentos. Explica o que foi essa doutrina e suas consequências.


A pergunta surge inevitavelmente após a leitura desse material: se o legado de Tatcher (neoliberalismo, privatizações, destruição dos sindicatos e da economia tradicional, ênfase na economia financeira, aumento da desigualdade social, etc.) é tão daninho, por que insistir nele?

O analista arrolado pela Folha, Eduardo Giannetti, tem o descaro de dizer que os sindicatos "atrapalhavam a modernização da economia". Ora, é só olhar os dados do quadro estatístico para ver que TODOS os indicadores apontam para uma piora geral na qualidade de vida. Quem se beneficia desse sistema? Com toda a certeza, não é a maioria da sociedade...

Quanto tempo ainda vai levar até que as pessoas percebam que cabe a elas decidir a forma pela qual a sociedade vai ser organizada?

Esta é uma das missões que cabe aos professores cumprir: apontar os absurdos do mundo, e mostrar que é possível revertê-los.









Fonte: Folha de São Paulo - 03/05/2009 - página A21



Thatcherismo resiste à crise que fomentou

Consenso ideológico alcançado pela ex-primeira-ministra, que chegou ao poder há 30 anos, resiste às turbulências atuais do capitalismo

Queda da renda do trabalho e boom financeiro criados por Thatcher, diz analista, explicam padrão de gastos a crédito e sua crise atual

RAFAEL CARIELLODA
REPORTAGEM LOCAL

Quando Margaret Thatcher chegou ao poder, exatamente 30 anos atrás, a inflação caminhava para uma taxa anual de 18%, valor muito alto para os padrões históricos no Reino Unido. A nova primeira-ministra lançou mão, então, de uma das primeiras e mais radicais experiências de controle monetário dos preços.
Cortou drasticamente os gastos públicos e elevou taxas de juros, empurrando o país para uma forte recessão. A reação inicial foi de dúvidas e, mais tarde, de aberta oposição, mesmo dentro de seu partido. Preocupados com seus votos, os conservadores pressionavam.
Em 1980, numa conferência do partido, a Dama de Ferro deu uma resposta pública às expectativas então generalizadas de reversão da política econômica: "Se vocês querem dar meia-volta, que deem. A dama não dá voltas".
Trinta anos e outras tantas reformas depois, o thatcherismo é responsabilizado, mesmo por alguns de seus defensores, por criar as bases econômicas e ideológicas que iniciaram o processo que desaguou na atual crise econômica global.
Exatamente como a sua inspiradora, no entanto, o thatcherismo -o atual consenso sobre a melhor relação possível entre Estado, economia e sociedade- não voltará atrás, dizem economistas e historiadores ouvidos pela Folha.
Com o mesmo fervor com que combateu a inflação, Thatcher levaria adiante políticas de privatização, destruição dos sindicatos e desregulamentação financeira que mudariam a relação dos cidadãos comuns com o mercado.
Um amplo processo de privatizações reduziu a contribuição de empresas estatais para o PIB do país de 9%, em 1979, para 3,5%, em 1990. A venda de ações das novas empresas privadas contribuiu para que a parcela da população adulta com ações de negócios britânicos passasse de 7%, em 1979, para 22% em 1993.
Outro impulso para o mercado financeiro veio em 1986, quando o governo desregulamentou os preços de serviços financeiros na bolsa de valores londrina. O fim do "tabelamento" incentivou a disputa entre bancos e financeiras pelas carteiras dos investidores. Os impostos sobre ganhos financeiros também foram reduzidos.
A soma das novas medidas, diz Tim Leunig, professor de história econômica da London School of Economics, atraiu novos bancos e empresas financeiras para a praça londrina e "os volumes de negócios aumentaram enormemente".
Ao mesmo tempo, reformas na legislação trabalhista restringiram a liberdade de greve e o poder dos sindicatos. "A quebra da espinha do movimento sindical fez a economia voltar a respirar", diz Eduardo Giannetti, professor do Ibmec-SP. "O tipo de bloqueio que faziam à modernização da economia destruía o país".
O economista, no entanto, vê na reforma financeira o calcanhar de Aquiles do thatcherismo. "A desregulamentação foi longe demais. Nesse ponto o "modelo Thatcher", na verdade implementado de maneira incremental [também em outras partes e por outros governos], foi longe demais".
Efeitos combinados
Para Massimo Florio, economista da Universidade de Milão, "as raízes da crise atual se relacionam com a combinação" de algumas políticas de Thatcher, especialmente as reformas sindicais e financeiras.
"O enfraquecimento dos sindicatos pode ter tido algum resultado positivo, já que eles resistiam a reformas corporativas que eram necessárias", diz.
Mas o efeito principal foi contribuir para um decréscimo da renda do trabalho, e para uma distribuição de renda pior. Isso criou as bases para dívidas insustentáveis pelas famílias, que tinham que recorrer a hipotecas e cartões de crédito, que por muitos anos fomentaram um crescimento artificial".
Os efeitos dessa reconfiguração não foram só materiais -para os críticos, a criação de um país mais injusto e desigual; para os seguidores, a revitalização de uma economia antes decadente e paralisada- mas também ideológicos.
"Quando deixei a universidade, nenhum dos meus colegas pensava em trabalhar com negócios. Isso mudou radicalmente", afirma o historiador inglês Kenneth Maxwell. "Não creio que possamos voltar para um modelo de Estado maior."
Segundo Tony Judt, professor da Universidade de Nova York, "as mudanças partidárias foram profundas". "Não há partido político que conte uma história diferente. Mesmo que haja agora maior pressão por gastos do governo, não há a pressuposição de que deve haver uma forte presença do Estado na estrutura da vida econômica."
Também para Giannetti, "não se voltará para o período anterior". "Não há perspectiva. A ideia de que o Estado empresário faz sentido acabou."



Nossa derrota serviu de exemplo político, dizem ex-mineiros grevistas

PEDRO DIAS LEITE

ENVIADO ESPECIAL A BARNSLEY E ORGREAVE

Antes do confronto, eles somavam 200 mil, espalhados por 130 minas de carvão. Vinte cinco anos depois, não passam de 1.800, em apenas seis minas restantes. Nenhuma trajetória expõe tão bem a visão econômica dos anos Thatcher quanto a dos mineiros britânicos, reduzidos a pó depois de uma greve de 16 meses, em 1984 e 1985, que terminou em nada.
Ao quebrar o então mais poderoso sindicato do país, Thatcher fez valer seu programa de fechar as minas, mas conseguiu mais do que isso. Daquele ponto em diante, todos os sindicatos do país sabiam que não era possível contestar o governo, que o neoliberalismo e o enfraquecimento dos direitos trabalhistas estavam ali para ficar.
Nas ruas de casinhas iguais, os tempos difíceis provocados pela recessão dos anos 80 parecem mais distantes, ao menos na superfície. Mas basta surgir o nome de Thatcher para ódios antigos surgirem das profundezas onde estavam enterrados."
A maioria dos sindicatos viu como ela nos destruiu, então perceberam que não havia nada a fazer, porque senão seriam destruídos também", afirma Chris Kitchen, 42, secretário-geral do que restou da NUM (Sindicato Nacional dos Mineiros, na sigla em inglês), na sede da entidade, em Barnsley.
A economia sofreu uma mudança radical, mas os efeitos das mudanças dos anos Thatcher ainda deixam a região comparativamente pior que outras partes do país.
"Algumas partes do país continuam a sofrer dos problemas econômicos resultantes do declínio do emprego tradicional -especialmente em mineração, aço e manufatura. Esses problemas têm raízes profundas e tem havido progresso em remediá-los", dizia um relatório encomendado pelo então premiê, Tony Blair, em 1999.
O quadro não mudou muito, uma década depois. Outro levantamento, do ano passado, mostra que a diferença entre essa região e as outras estava aumentando. O salário semanal por aqui era um terço menor do que no resto do país.
Na sala que reunia centenas de trabalhadores durante a greve, agora vazia, Kitchen relembra com amargor daquele tempo. Então com 16 anos, ele participou de um dos momentos definidores daquela greve, a "Batalha de Orgreave", quando milhares de grevistas e policiais se enfrentaram, há 25 anos."Aquele dia foi o ponto em que me dei conta de que era muito mais do que uma disputa industrial, era uma questão política", diz Kitchen, reclamando da "brutalidade policial" e da "manipulação da mídia".
Descampado
Desde então, o mineiro nunca mais pisou lá. "Não há nada para ver lá."
De fato, no lugar onde milhares de homens trabalhavam em minas de carvão existe hoje apenas um grande descampado, algumas máquinas paradas e meia dúzia de trabalhadores."
O carvão que tinha aqui acabou faz uns dois anos. Depois que fecharam as minas, a empresa que comprou a área tirou o que restava do carvão a céu aberto e agora não há nada", conta Sam Willoughby, 48, um dos homens que cuidam do local, ele próprio há 28 anos na indústria mineradora."
A greve foi muito triste. Quando você saía do colégio, se sua família era de mineiros, só havia uma coisa a fazer, e era ir trabalhar nas minas. Meus dois avós trabalhavam, meu pai, meus tios, meus irmãos. A minha geração é a última, isso acabou", afirma.
Entre os que participaram ativamente da greve, a profissão ficou para trás, mas as lembranças continuam. "É tão estranho, toda vez que vou ao trabalho eu sempre passo por ali, onde trabalhei por 18 anos, não tem como deixar a memória para trás", diz John Bebe, 55, que hoje em dia cuida de crianças autistas. "Passei dois anos sem saber o que fazer, me separei, não sei onde foram parar os amigos. Muita coisa fechou, não é o que costumava ser."
O ódio a Thatcher, comum entre os ex-trabalhadores, só é amenizado pela lembrança da Guerra das Falklands (nessa região ninguém se refere ao conflito como Guerra das Malvinas). "Daquilo eu gostei, a velha Maggie foi lá e protegeu o que era nosso, era uma mulher forte, tipo [Winston] Churchill", defende Martin Wainwright, 58, num pub local.

Estilo da "dama de ferro" refletia embate de classes

Ascensão de nova classe média não sindicalizada explica triunfos e autoritarismo de Thatcher
Vitória britânica na Guerra das Malvinas também ajudou a consolidar poder e imagem de uma governante que tinha "força e decisão"
DA REPORTAGEM LOCAL DE LONDRES
As sucessivas eleições e o estilo duro, quase autoritário, de Margaret Thatcher foram o resultado das conquistas e conflitos -econômicos e sociais- do modelo de país que ela ajudou a enterrar.
Uma dessas conquistas foi o poder dos sindicatos e a elevação do padrão de vida dos trabalhadores britânicos. Entre 1978 e 1979, na tentativa de conter a inflação, o então governo trabalhista determinou limites ao aumento de salários de funcionários públicos.
Ferroviários, motoristas de ambulância, lixeiros e coveiros, entre outros, fizeram paralisações em protesto.
Um dos grupos mais insatisfeitos com a "chantagem" e a "desordem" -como viam a situação- impostas ao país pelos sindicatos era uma nova classe média cuja ascensão social se deu justamente como resultado das conquistas do Estado de bem-estar social britânico, vigente desde a década de 40.
Há um exemplo "clichê", diz Tony Judt, autor de "Pós-Guerra" (Objetiva), do representante dessa nova classe, que em 1979 pendeu para Thatcher. "Um corretor imobiliário, cujo pai havia sido operário numa fábrica de carros, e que agora usa gravata, tem sua própria casa, embora na verdade não tenha lá muito dinheiro."
"Essa classe de pessoas que ascenderam socialmente, que não eram sindicalizadas, e pertenciam majoritariamente ao setor de serviços, compunha a "foto" sociológica do eleitor de Thatcher", ele diz.
O também historiador Kenneth Maxwell diz que havia claramente uma oposição entre os dois grupos.
"Era uma situação de crise, e ela recebeu o mandato para enfrentá-la. Capturou essa fantasia de uma classe média que se acreditava o que havia de melhor no Reino Unido do pós-guerra, e entregou o que prometia -uma política fiscal restritiva, limpar e acabar com o poder dos sindicatos."
É possível entender, assim, que seu estilo de confronto -com sindicatos, com a oposição- fizesse tanto sucesso político com os eleitores.
Mineiros e Malvinas
Assim foi forjada a ideia da "dama de ferro", que em 1984 e 1985 enfrentou uma dura greve de mineiros, que durou um ano, sem fazer concessões. Ao final, a derrota desse grupo, somada a reformas trabalhistas, representou uma pá de cal no movimento operário no país.
A consolidação de sua liderança, dizem os historiadores, viera antes, em 1982, durante a Guerra das Malvinas. A vitória britânica sobre a Argentina, que reclamava como suas as ilhas que eram território do Reino Unido desde o século 19, reforçou não só sua imagem como a do próprio país.
Para Tony Judt, Thatcher usou a guerra como "um símbolo duplo": "Da sua força e decisão, e da recuperação do Reino Unido de sua decadência -econômica e imperial- e fraqueza nos anos 70."
Maxwell vê num "comprometimento pessoal" da primeira-ministra a possibilidade de vitória contra a Argentina. "Quando você pensa que as frotas tiveram que atravessar o Atlântico... . Um outro líder, eu creio, teria cedido. Foi aí que o seu caráter durão funcionou", ele diz. "Depois disso, ela se tornou mais e mais autoritária."
O uso que Thatcher fez do apoio e poder acumulados criou uma espécie de paradoxo entre sua atuação política e seus ideais liberais nos campos social e econômico.
A grande defensora da redução dos poderes do Estado centralizou o poder, limitando e até cassando poderes locais. Sete grandes administrações regionais, todas encabeçadas por trabalhistas, foram extintas em 1986, entre eles o Greater London Council.
Em 2000, já sob governo trabalhista, a figura de um "prefeito" para Londres foi recriada. O eleito de certa forma reassumia o poder, embora formalmente os cargos fossem distintos, já que o trabalhista Ken Livingstone administrava a cidade quando sua função foi extinta, em 1986.
No dia da posse, começou assim o seu discurso para os londrinos: "Como eu estava falando antes de ser tão rudemente interrompido 14 anos atrás...".(RAFAEL CARIELLO E PEDRO DIAS LEITE)


Primeira-ministra restaurou grandeza britânica, diz biógrafo
DE LONDRES
Margaret Thatcher, a mulher mais poderosa do século 20, subiu ao poder muito insegura, para ao longo dos anos 80 se tornar confiante até demais, o que acabou por torná-la arrogante. Hoje, é uma "velhinha" de 83 anos, de memória frágil, mas saúde estabilizada, diz Charles Moore, 52, seu biógrafo autorizado (mas não oficial). Um dos poucos a terem acesso à vida de Thatcher depois que ela deixou o poder, o ex-editor do jornal conservador "Daily Telegraph" conta que a antiga "dama de ferro" sofreu uma série de pequenos derrames e perdeu a prodigiosa capacidade para os detalhes. (PDL)

FOLHA - Qual a importância da infância e do pai para definir a futura baronesa Thatcher?
CHARLES MOORE - Ela vivia numa cidade provinciana, que não estava em contato com o mundo lá fora. Veio de uma família relativamente humilde, porque seu pai, Alfred Roberts, era um dono de quitanda. Quando ela se tornou política, acreditava fortemente que podia aplicar as lições de comandar uma quitanda para a esfera nacional, o que a tornava muito hostil à presença governamental, a grandes negócios e a impostos pesados. Seu pai deu a ela um forte sentimento de acreditar nos pequenos negócios, na liberdade e no que vem de fora da elite.
FOLHA - Nos últimos anos, o senhor teve um acesso raro à vida de Thatcher. O que mudou dos tempos em que ela estava no poder?
MOORE - Quando ela entrou no poder, há 30 anos, era muito nervosa, porque sabia que, se desse errado, ninguém iria salvá-la, porque não fazia parte do establishment conservador. Constantemente temia ser derrubada, o que a tornou extremamente ansiosa e batalhadora para fazer o melhor que pudesse. Mas venceu três eleições, e com o tempo ficou mais autoconfiante. A grande mudança foi quando venceu a Guerra das Falklands. Foi aí que soube que não podia ser derrotada dentro do partido e tinha uma enorme chance de vencer as próximas eleições. Mas isso foi em 1982, e no final dos anos 80 ela se tornou confiante em excesso. Em 1990, quando foi tirada do poder por seus colegas, ficou raivosa e confusa sobre o que fazer. Gradualmente, ela se tornou mais distante da política.
FOLHA - O que o sr. definiria como o legado do governo Thatcher?
MOORE - Ela era obcecada com a ideia de que o Reino Unido tinha fracassado política e economicamente depois da [Segunda] Guerra, e queria restaurar o que ela acreditava serem as qualidades britânicas. De certo modo, não era revolucionária, mas uma restauradora.Acreditava que o Reino Unido tinha grandes qualidades, que estavam perdidas, e por vários ângulos ela foi bem sucedida nisso, em termos de liberdade econômica e oportunidade e coragem em questões globais.


Cena pós-punk pôs Thatcher na mira

Morrissey pediu a cabeça da primeiro-ministra, enquanto outros artistas a culparam pelo desemprego e pela apatia social
Para jornalista, o pop virou manifestação de classe média dirigida ao lucro, alijando uma parcela dos jovens da agitação cultural
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Quando você vai morrer?", perguntava sem rodeios o cantor Morrissey em "Margaret on the Guillotine", faixa de seu primeiro disco-solo, "Viva Hate", de 1988. A mensagem violenta da canção do ex-vocalista dos Smiths estava longe de ser um grito isolado no mundo pop durante a gestão Thatcher."
Eu a odiava com todo o meu coração", contou à Folha Sheryl Garrett, que editou a revista "The Face" nos anos 80, e depois a seção de cultura do jornal "Observer".
Para intelectuais e artistas, Thatcher representava não apenas um governo conservador e autoritário, mas também a principal responsável pelo alto nível de desemprego e por exportar ao mundo a ideia de uma Inglaterra tirânica, que travou uma batalha injusta e desigual contra a Argentina durante a Guerra das Malvinas.
Quando Thatcher tomou posse, o movimento punk já estava em seus estertores. Sua herança, porém, foi expandir o alcance das mensagens que o rock era capaz de transmitir.
Com esse clima favorável ao engajamento político, os grupos de pós-punk, ska e pop tiveram mais liberdade para expressar posições ideológicas.
O ódio contra o regime thatcherista virou então a principal bandeira da música feita nessa época.
No clipe de "Ghost Town" (1981), os integrantes do The Specials passeiam pelas ruas desertas de uma cidade, fazendo referência ao desemprego e à falta de mobilização social.Na letra de "Shipbuilding" (1982), Elvis Costello posicionava-se contra a guerra nas Falklands cantando a partir da perspectiva de operários ingleses que construíam os barcos que levavam o exército até lá.
Uma das principais vozes desse período foi o hoje lendário roqueiro socialista Billy Bragg que, ao lado de Paul Weller (The Jam) e Jimmy Sommerville (Communards), fundou, em 1985, o Red Wedge.
A ideia era arregimentar músicos para tentar engajar os jovens na política. Apoiaram greves e, em 1987, pediram que as pessoas votassem no Partido Trabalhista, para evitar uma nova vitória de Thatcher.
De um modo geral, os anos 80 na Inglaterra marcaram o auge da música de protesto. Um dos álbuns emblemáticos dessa época foi "Sandinista" (1980), do The Clash, cujo título referia-se à guerrilha de esquerda nicaraguense.
Arte classe média
Para Garrett, uma das consequências mais importantes das transformações daquele período foi o fato de a nova ordem ter forçado as artes a virarem negócios rentáveis.
"Antes de Thatcher, era comum haver grupos de punk e de artistas de vanguarda de classes mais baixas. Ela pôs fim a isso. No sistema capitalista e individualista que implementou, a arte tinha de dar dinheiro." Para a jornalista, o brit-pop e a gêneros mais comerciais, como a acid house, viraram coisa de classe média ou alta e os jovens com menos recursos foram alijados do cenário."
Se formos ver com os olhos de hoje, o punk foi um gênero que atingiu diretamente muito pouca gente em números absolutos. Depois dele viriam essas raves para multidões, o pop comercial", explica. Para ela, Thatcher acabou com o espaço para manifestações mais alternativas. "O mal que ela fez está aí até hoje e deve perdurar por muito tempo", conclui.


Para o cineasta Ken Loach, "tudo o que ela fez foi ruim"

DA REPORTAGEM LOCAL

O cineasta britânico Ken Loach, 72, celebrizou-se por suas convicções esquerdistas e pelo teor político que sempre imprimiu a seus filmes.
Exemplos disso são "Terra e Liberdade" (1995), que tratou da Guerra Civil Espanhola, e "Ventos da Liberdade" (2006), sobre o enfrentamento entre rebeldes irlandeses e tropas britânicas, em 1920 -produção que lhe rendeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes.
Mesmo tendo começado sua militância antes do período Thatcher, foi durante esses anos que suas preocupações com as questões sociais da Inglaterra afloraram. Desempregados, sindicalistas e sem-teto passaram a ser tema de seus programas para TV e filmes.Hoje, Loach segue crítico ao legado thatcherista. Continua achando que "tudo o que ela fez foi muito ruim para o país".
Na opinião do cineasta, a pior transformação pela qual a Inglaterra passou no período foi a perda do espírito de colaboração que havia no pós-guerra para dar lugar a um "individualismo capitalista", disse, em entrevista à Folha, por telefone.
Nos anos 80, Loach teve alguns programas de TV impedidos de irem ao ar. Entre eles, um documentário sobre as dificuldades de líderes de sindicatos para conseguir armar protestos, "A Question of Leadership" (uma questão de liderança) e outro sobre a greve dos mineradores de carvão, "Which Side Are You On? (de que lado você está?)".
"Obviamente não sofri uma censura explícita, mas as emissoras foram pressionadas para não exibi-los. E isso só foi possível porque todos estávamos mais vulneráveis. Ela tinha conseguido diluir esforços e protestos coletivos."Filho de operários e membro do Partido Trabalhista desde os anos 60, Loach abandonou-o em meados da década de 90. Hoje, critica os líderes que reconheceram coisas positivas do thatcherismo, como o ministro Peter Mandelson e o ex-premiê Tony Blair. "Quando dizem que herdaram algo dela, estão falando a verdade. O problema é que afirmam isso quase comemorando, quando essa herança foi, na verdade, ruim."
Para ele, Thatcher desvalorizou o trabalho e, por consequência, piorou a vida dos que dele dependiam. "Do ponto de vista dela, valorizar o capital era o caminho, e é verdade que fortaleceu a economia. Mas o preço foi empobrecer os operários e a população em geral."
No que diz respeito ao cinema, Loach acha que a era foi negativa por fazer da Inglaterra um país menos variado culturalmente. "Por que vemos cada vez menos filmes da América do Sul, da Ásia e do resto do mundo? Porque cada vez mais só temos grandes cadeias comerciais de cinema no mercado. E isso só vai piorar. A Inglaterra era rica em promover e consumir coisas de fora. Começamos a nos fechar com ela e seguimos nessa trilha." (SC)